A Terceira Margem – Parte CCXLII

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  1ª Parte – XXII 

Capitão Rondon na Gruta Ricardo Franco (1903)

Forte Coimbra – IV 

João Severiano da Fonseca (1875) – (Continuação) 

Desse trajeto não é difícil a primeira metade, e faz-se parte dela ainda à luz amortecida dos archotes, amortecida pela deficiência do ar respirável; a segunda, porém, é tão custosa, que somente a vista do claro da saída poderia influir à percorrerem-na de todo e não voltarem atrás os primeiros e intrépidos visitantes. Termina em uma grande sala tão baixa, nos seus três a quatro metros de altura, que, com a lôbrega luz que aí reina, divisa-se suficientemente o abobadado calcário do teto, cheio de pequenas e finas estalactites de moderna formação, que já vão aparecendo entre os restos informes das antigas, devastadas.

É que, sendo raros os curiosos que visitam a gruta, raríssimos são os que transpõem o túnel; e, pois, essa segunda parte da fadárica ([1]) estância é a mais rica e aprimorada de ornato. Notei mais clara esta sala do que as outras, seja por um efeito natural qualquer, seja porque meus olhos já estivessem acostumados à escuridade. Abundavam os mesmos torsos e volutas, as mesmas colunas, as mesmas cortinas revestindo as entradas das outras salas, intrincado labirinto onde nos vimos quase perdidos.

Havia de mais as novas concreções que do teto pendiam em forma de mil agulhetas e pequeninas pirâmides. A estalagmite afetava em geral a forma de uma alfombra ([2]) que atapetava todo o solo; à esquerda da saída do túnel elevava-se mais, assemelhando-se à um pitoresco canapé, estofado, bastante áspero nos seus coxins de rocha, mas em que sentei-me com gosto por alguns instantes.

Antigos visitantes tinham trazido um fio de “merlim” ou barbante grosso, para guiá-los nessa viagem subterrânea. Já no túnel havíamos encontrado e agora víamo-lo estendido sob a água que, aqui, conservava um bom palmo de altura. Sua direção era no prolongamento do túnel à porta fronteira.

Gruta Ricardo Franco

O “canapé” era um índice apreciável para a orientação deste, assim não descurei de notá-lo, bem como sua posição em relação ao fio. Seguimos a sua direção e entramos na primeira sala, tendo antes observado, ou melhor espiado, apenas duas entradas, duas ou três outras salas que com aquela se comunicavam e que pouco diferiam entre si.

Aquela para onde o fio se dirigia era a mais extensa de todas as que vi, sem excetuar mesmo o salão, e mais estreita em relação ao tamanho. Mediria uns quatro metros de largo: a largura foi-me impossível de estimar. Parecia um longo corredor, ou antes galeria, cercada de colunadas e de todas essas fantásticas e caprichosas produções da natureza. No chão encontramos imensas raízes de gameleira [ficus doliaria], que suponho da que ensombra a entrada da gruta: e que, sendo assim, indica que essas salas não estão tão afastadas da entrada, como parecem.

Uma circunstância nos privou de continuarmos nossa visita e privou-me do prazer de melhor observar a formosa galeria, que é cheia de socavões e recônditos de um e outro lado, e dignos sem dúvida da mais detida contemplação: notamos, à princípio descuidados mas depois com algum temor, que o fio tão satisfatoriamente encontrado e no qual depositamos cega confiança, nos traíra, estando partido em vários pedaços, que se moviam, tomando ora uma, ora outra direção, levados pelo movimento da água, que remexíamos andando.

Os soldados tinham-se adiantado e penetrado nos outros recessos, em busca de mais mimosas e delicadas concreções, tais como só aí se encontram. A nós faltou já a vontade de prosseguir: todo nosso fito foi a volta; e mesmo uma espécie de terror nos enfraquecera os ânimos, lembrando-nos de que, segundo nos haviam contado, pouco tempo havia que um oficial de marinha aí se perdera e só ao cabo de longas horas conseguira sair desse dédalo. Buscávamos orientar o fio; embalde ([3])! O que víamos quieto e marcando uma direção, já tinha tido outras, que novo movimento das águas mudara.

Entravamos ora aqui, ora ali, num socavão, numa sala; estranhávamos, não a conhecíamos: voltávamos, passávamos à outras; ou ainda não as tínhamos visto, ou pelo menos tal se nos afigurava: buscávamos outra saída, dávamos noutra caverna que ainda era nova para nós, ou porque realmente assim seria, ou por efeitos do medo, que nos assaltara, de perdermo-nos nesse intrincado labirinto, afastando-nos cada vez mais da saída. Entramos por vezes na sala do “canapé”, vimo-lo, reconhecemo-lo e ficamos alegres e como que tranquilos: mas debalde procurávamos a entrada do túnel, apesar de supormo-la bem assinalada: não a encontrávamos, e só novas salas e novos recônditos.

Desanimados voltamos à galeria para esperarmos os soldados, que eram práticos. Já não tínhamos olhos para contemplar as magnificências que nos rodeavam. E talvez que essa parte da gruta seja a mais bela, como é a mais conservada, por não ser tão accessível como as outras, e ter menos sofrido da mão insaciável e devastadora dos curiosos que as visitam.

Já estávamos na gruta havia mais de cinco horas. Era meio-dia e as nossas embarcações deviam sair às 14h00. Chegaram os soldados, e renascida a confiança tratamos da retirada. Mas, em pouco esmorecemos de novo, e desta vez quase de todo, vendo-os, eles os práticos, nossa única esperança, confusos confessarem que não atinavam com o caminho. Ao cabo de não sei que tempo, séculos de ansiedade, sempre esperançados no cordel e sempre ludibriados; já seguindo um troço, já outro que ficava perpendicular ao primeiro; entrando ora aqui, ora ali; entregamo-nos, afinal ao acaso e passamos a revistar todas as salas e buracos mais próximos.

Gruta Ricardo Franco

Entramos, uma última vez, na sala do canapé: vimo-lo, reconhecemo-lo de novo; e só a custo os soldados descobriram a boca do túnel, que já muitas vezes tínhamos visto, mas não reconhecido, por parecer-nos mais estreita, mais baixa e sem fundo! Quase seis horas depois da nossa descida chegávamos à sala da entrada e encontramos os companheiros, já aflitos com a nossa demora. Haviam chamado e gritado por nós, sem que os ouvíssemos; e um deles chegou a disparar os seis tiros do seu revolver junto a boca do túnel, com o mesmo resultado; esquecendo-se de que, querendo fazer-nos bem, podia, com esse modo de avisar, fechar-nos a porta do abismo. (FONSECA)

Gruta Ricardo Franco

Cândido M. da Silva Rondon (1903) 

03.03.1903: Afinal, beirando o Rio Paraguai, chegamos à tarde ao Forte de Coimbra onde se achava o 25° Batalhão do qual fora Cabo o Ex-presidente Getúlio Vargas.

Aproveitei para visitar a Gruta do Inferno. A entrada da gruta é um simples buraco que dá acesso à antessala de um verdadeiro “Palácio de conto de Fadas”.

Ensombra-a uma grande figueira de folha larga, Ficus doliaria, cujas raízes penetram pelas frestas e gretas das pedras soltas, semiengastadas no maciço que constitui o Morro do “Buraco Soturno” ou “Gruta do Inferno”. Há aí uma escada que permite descer para a antessala. Vê-se ao lado direito da entrada um segundo buraco por onde é iluminado o compartimento, constituído por grandes pedaços de pedras soltas, atirados desordenadamente aqui e ali e, entre eles, depósitos de carbonato de cálcio, verdadeira argamassa feita por mão inteligente.

Para lá chegar, é necessário passar por dentro d’água, nadando, e com luzes, porque a escuridão é completa. Assim se passa de salão em salão, e há verdadeiro deslumbramento quando a luz se reflete nas estalactites e estalagmites de cristal, raras na antessala. É um palácio encantado que os séculos construíram, com a concreção sucessiva de cada gota.

Observamos, entretanto, consternados que a selvageria de alguns visitantes, sob pretexto de colecionar minerais, destruíra à alavanca e martelo grande parte das estalactites. Será necessário proteger tão maravilhosa beleza natural contra tais vândalos. (VIVEIROS)

Gruta Ricardo Franco

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 21.06.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Filmete:  https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU

Bibliografia   

FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878 (Tomo I) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia de Pinheiro & C., 1880-1881.

VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta sua Vida ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Livraria São José, 1958.    

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.  

[1]   Fadárica: afanosa.

[2]    Alfombra: tapete espesso e muito macio.

[3]    Embalde: debalde.

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