A Terceira Margem – Parte CCXXIII

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 1ª Parte – III

Rondon

A Saga de um Notável Desbravador II  

Entre os resultados econômicos de suas investigações, destacam-se a revelação das minas de sulfureto de ferro nas cabeceiras do Rio São Lourenço; o descobrimento das de ouro e diamantes nas cabeceiras do Cabixi e Corumbiara; de jazidas de mercúrio metálico na floresta do Rio Gi; de manganês nas origens do Rio Manuel Correia na serra Pires de Campos e no Vale do Rio Sacre; de gipsita nas cabeceiras do Cautário; de mica no Córrego do Campo, contribuinte do Pimenta Bueno; de ferro no vale do Baixo Garças. Também verificou a existência abundante de ipeca cinzenta ([1]) no vale do Pimenta Bueno e margens do Ji-Paraná até Urupá, do Cautário e do São Miguel, muito ao norte da região onde essa rubiácea foi primeiramente conhecida e industrialmente explorada, na célebre Mata da Poaia do Alto Paraguai. Determinou, finalmente, as regiões em que a. “Hevea”, a “Bertholetia”, e a “Castilloa” vivem em grandes associações ao norte do paralelo de Diamantino, entre os Rios Araguaia e Guaporé. Contavam os contemporâneos de Rondon na Escola Militar que ainda estudante, frequentemente ele se referia a um ideal alimentado desde tenra infância: o de retalhar o seu estado natal por uma rede telegráfica que lhe ligasse todos os povoados, ainda os mais longínquos, à capital.

A sua realização entretanto, ultrapassou os seus sonhos juvenis; não só cobriu o território mato-grossense de linhas telegráficas, como ainda o ligou ao resto do Brasil e – o que é mais “escalou os sertões ínvios desde as remotas plagas do Bororos aos domínios dos Mundurucus, sendo o primeiro a rasgar as misteriosas matas em cujas ásperas dificuldades cinco expedições anteriores se haviam malogrado. De um só passo, estabeleceu uma união territorial, até então tida por inatingível e povoou os ermos que, por centenas de léguas, se estendiam indefinidos, mostrando o alto valor da energia humana, quando guiada por um ideal superior. 

Para tal, desenvolveu durante mais de seis lustros inconcebível atividade física, curtindo por vezes, as torturas da fome e da sede; palmilhando frequentemente léguas e léguas, com o peso de sua própria bagagem, tremendo de febre sob a influência de um acesso palustre: ausentes todos os carinhos e confortos do lar; privado, não por dias, mas por anos e anos, do convívio da família e da sociedade; e só através das nuvens de saudades infindas entrevendo as imagens queridas da esposa e dos filhos”. ([2])

Qu’est-ce qu’une grande vie?” ([3]

Pergunta o cantor de “Eloá” e responde:

Une pensée de la jeunesse exécutée par l’âge mur.” (11

Perante esta definição, que terá sido a vida de Rondon, se foi além, muito além de seus sonhos de moço?

E, realmente não só apresentou opiniões novas sobre o procedimento dos civilizados relativamente aos indígenas, mas ainda pôs em prática essas opiniões, das quais decorria uma nova política a ser adotada nas relações com os últimos autóctones de nossa Pátria.

Essa política pode resumir-se no princípio: “só penetrar no sertão com a paz e jamais com a guerra”. Não consentiu, pois, ao ser flechado no descobrimento do Juruena, exercessem os seus companheiros represálias contra os selvagens, que, atacando-o, usavam do mais natural e legítimo direito de defesa, pois lhes invadia os territórios sem que soubessem quais as suas intensões, que assim como eram boas também podiam ser péssimas, como quatro séculos de martírio haviam evidenciado.

Declarou, por isto, aos seus companheiros que queriam reagir, não haver ido à conquista de índios, mas sim, levar até o Juruena o reconhecimento indispensável à construção da linha telegráfica. Nada restava, pois, fazer, à vista da animosidade dos indígenas, senão retroceder, até que, pacificados lhe permitissem livre trânsito.

E afirmava com inabalável convicção:

Eu, acima de tudo coloco o sentimento de justiça, encarando, com meditada reflexão, os deveres morais impostos pela causa dos aborígenes brasileiros, os quais há quatro séculos, vivem· espicaçados pelo aguilhão do mais requintado egoísmo nosso e dos nossos antepassados. ([4])

Tomou, por isto, como divisa inflexível: “Afrontar todos os perigos até a morte; matar – nunca!” Ecoava lugubremente aos seus ouvidos ‒ nas palavras de Alípio Bandeira um de seus colaboradores:

a voz estrangulada de doze gerações de mártires, bradando contra quatrocentos anos de extermínio. Voz de infortúnio e desespero, vinha das selvas desconhecidas, vinha dos descampados longínquos, das brenhas misteriosas dos nossos sertões, e falava como uma trompa apocalíptica, do sacrifício de alguns milhões de índios que, em vez de terem sido chamados ao convívio da civilização, foram barbaramente imolados aos ditames da ganância, da fereza e até ‒ força é dizê-lo! ‒ da cobardia. Voz sagrada e tempestuosa de vítimas. Clamores de mães, cujos filhos ceifou na infância a crueldade monstruosa; recriminações de esposas que viram os maridos fortes tombar fulminados pela bala do aventureiro; imprecações, queixas e súplicas de velhos, mulheres e crianças trucidados, muitas vezes inutilmente, pelo crime de defenderem a liberdade e a terra sua e de seus avós. ([5])

Desprezando os conselhos de Maquiavel, como indignos de quem se consagra ao bem comum. Rondon empregou, só e exclusivamente, o altruísmo, como força política. E conseguiu assim deter a marcha assoladora de injustiças seculares ao reerguer diversos povos que já haviam entrado na fase da agonia que precede a extinção total, ·abrangendo, numa obra toda de paz conciliação e bondade, onze populações diferentes, nitidamente separadas umas das outras, pelos costumes, idiomas e ritos. Várias tinham-nos por inimigos tradicionais e intransitáveis e de outras nem apenas suspeitávamos a existência.

Transformou, assim, Rondon, em amigas, as nações do gênio belicoso dos Nhambiquaras, Barbados, Quepiqueriuats, Pauatês, Tecuatêps, Ipotiuats, Urunis e Ariquemes como já o havia feito, em 1893, em relação aos Bororos do Rio das Garças.

E implantou, no coração dos Parecis, Bacaeris, Jarus, Urupás e Caripunas a inabalável confiança na lisura e desinteresse de seus propósitos. Tem destarte, o Serviço de Proteção aos Índios que decorreu da Comissão de Linhas Telegráficas, chamado ao campo de sua ação benfazeja, numerosas tribos, umas ainda mais guerreiras, outras já pacíficas. Dos seus nomes, muitos ainda ressoavam, no começo do século, como notas de clarim e clamores de batalha. Os Caingangs, os Botucudos, os Parintins, e tantos outros, lembravam, nas palavras de Rondon:

fulgores de vastos incêndios de duração secular ainda mal extintos”.

De todos os casos, porém, comprovativos da excelência e do acerto do método de pacificação praticado pelo Serviço de Proteção aos Índios, é característico o dos Caingangs de São Paulo, em que Rondon foi coadjuvado pelos então Tenentes Pedro Dantas e Manuel Rabelo, e por Manuel Miranda e Luís Bueno Horta Barbosa. A luta impiedosa, entre Caingangs e civilizados vinha já desde os albores do século passado, e como salienta o professor Horta Barbosa quanto mais durava, mais se amiudavam, de um lado e de outro, os assaltos, e os morticínios, acompanhados de crueldades cada vez maiores.

Em vão colocara o Governo de São Paulo suas esperanças na catequese [subvencionado desde 1903], a cargo dos frades capuchinhos de Campos Novos do Paranapanema. A situação piorava de ano para ano. O reconhecimento e levantamento dos Rios Feio, Aguapeí e Peixe, pela Comissão Geológica do Estado, teve de fazer-se à mão armada, e, ·ainda assim, não se conseguiu evitar o sacrifício de vidas em ambos os campos. A construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, correndo pelo divisor das águas do Feio e Tietê, constituiu nova fonte de hostilidades.

Às batidas dos bugreiros sucediam-se os assaltos, cada vez mais violentos, dos índios contra os trabalhadores da estrada, imperando o pavor por todo o sertão, onde ninguém se encontrava sem uma carabina de repetição, de que usava dia e noite em descargas a esmo, para afugentar o “bugre”. Em 1910 [quando apenas Rondon começa a organizar o Serviço de Proteção aos Índios] tão premente era a situação da Noroeste que o empreito oficiava ao Ministro da Viação avisando-o:

estar na iminência de suspender as obras de construção da estrada pela impossibilidade de conter os silvícolas e fazer parar-lhes as correrias.

Foi quando, depois dos reconhecimentos preliminares dos Tenentes Pedro Dantas e Manuel Rabelo, Rondon resolveu partir para o vale do Aguapeí a fim de estudar a questão em suas fontes diretas e traçar o rumo que conviria seguir de modo a conquistar a amizade dos temidos Caingangs, estabelecendo a paz e a ordem naquele vasto e fértil sertão. Estudada a região, Rondon assentou o plano de pacificação e dele encarregou o então Tenente Manuel Rabelo, tendo como principais auxiliares Tenentes Cândido Sobrinho e Sampaio. Com seis meses de trabalho o Tenente Rabelo deixava o programa de pacificação dos Caingangs, antes tidos como irredutíveis, nitidamente encaminhado para o feliz desfecho, logo após levado a termo por Manuel Miranda e Luís Bueno Horta Barbosa. O que foi o alcance dessa pacificação na imensa zona do estado de São Paulo despovoada em consequência da presença dos Caingangs é fácil avaliar pela respectiva valorização das terras numa época em que não havia inflação. Enquanto, em 1910, dois anos antes da pacificação, o alqueire valia 13$000 em 1914, um biênio depois já valia 100$000, e, em 1919, isto é, apenas 7 anos mais tarde, 200$000.

Não se enganava o Ministro Rodolfo Miranda quando, em março de 1910 escrevia, ao convidar Rondon para chefiar e organizar o Serviço de Proteção aos Índios:

A espontaneidade da escolha do vosso nome é a consagração formal da conduta humanitária e generosa, que tanto vos recomendou à confiança indígena, na longa e heroica jornada que realizastes por zonas até então vedadas aos mais audaciosos exploradores. Quem, denodadamente e com rara abnegação, sacrificou a sua quietude, a calma de seu lar, a sua própria vida, por bem servir à Nação; quem pode fazer do indígena – na plenitude de seu domínio no seio das florestas, defendido dos artifícios da civilização pelas asperezas da vida inculta – um amigo, um guia cuidadoso, reúne, sem dúvida, os requisitos de vontade e altruísmo, que devem caracterizar a campanha que há de redimir do abandono os nossos silvícolas e integrá-los na posse de seus direitos. ([6])

Nada menos estranhável, pois, haja sido a obra de Rondon mais de uma vez calorosamente exaltada na Europa, encontrando imensa repercussão e irrestritos aplausos no Congresso Internacional das Raças, reunido em Londres em 1913.Na América do Norte, era conhecido como “O William Penn ([7]) do Brasil” e a sua obra era apontada “como um exemplo a ser imitado para honra da civilização universal”.

Rondon

Em 1923, o “National Geographic Magazine”, de Washington, assim se expressava sobre ele:

Durante 23 anos o General Rondon trabalhou no longínquo sertão… Mas, o seu serviço mais meritório foi, sem dúvida, o que ele realizou, como diretor do Serviço de Proteção aos Índios do Brasil, cargo no qual a sua política de não hostilizar os índios, nem mesmo em represálias, e de usar com eles de brandura, lhes captou a amizade, preservando-lhes a civilização e constituindo o que se pode chamar a maior conservação de aborígene realizada no Novo Mundo de nossos dias.

Vejamos o que sobre ele escreveu Nordenskjold ([8]):

Rondon realizou uma obra tão importante e grandiosa que dentro destes 50 anos vindouros será única: o meu trabalho bem como o de Roosevelt são apenas seus complementares.

O Presidente Theodore Roosevelt, na longa e íntima convivência que teve com Rondon, de 11.12.1913 a 07.05.1914, partindo da Foz do Rio Apa penetrando no sertão do Norte pelo Rio da Dúvida [hoje Roosevelt] e saindo em Manaus pelo Amazonas num percurso de mais de 3.000 quilômetros, pode, não só admirar de perto a grandeza da realização de Rondon em nossos sertões, mas ainda ver confirmada a verdade do que, sobre ele, escreveu Roquette Pinto:

Há homens que diminuem à medida que deles nos aproximamos; outros de longe, brilham como estrelas e quando nos chegamos, vemos que são mundos ainda maiores de sentimento e de caráter. ([9])

Rondon

Contribuição importante de Rondon à vida pública brasileira foi ainda a missão de Letícia. Quando, em 1934, a Colômbia e o Peru apelaram para o Brasil a fim de lhes demarcar as fronteiras em litígio, foi Rondon aos setenta anos o homem para o qual todos se voltaram. Era uma rude tarefa, mesmo para um sertanista como ele, pois ia, idoso e cansado, para um lugar desprovido de quaisquer recursos, onde passaria mais de quatros anos, e, acometido de glaucoma, perderia uma das vistas, ficando com a outra seriamente comprometida.

Estava, porém, em perigo a paz sul-americana. Não vacilou, e, atendendo ao apelo de Afrânio de Mello Franco, deu desempenho à missão de Letícia, acrescentando mais uma página de glória à cintilante fé de ofício de uma longa vida toda consagrada ao bem público. Contribuiu, assim, de conformidade com seus princípios positivistas, como verdadeiro cidadão do mundo, para o advento desse futuro em que, para um só globo, “tornando em patrimônio universal e em lar comum, haja também uma só Humanidade, uma só grei!” (BOLETIM GEOGRÁFICO VOLUME N° 187)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 25.05.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

Bibliografia 

BOLETIM GEOGRÁFICO N° 187. A Obra de Rondon (Ivan Lins) ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Boletim Geográfico Volume XXIV, n° 187, Julho-agosto de 1965.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;    

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    A ipeca (ou ipecacuanha – Psychotria ipecacuanha, Stokes), pertence à família Rubiaceae, natural da Amazônia, tem um porte rasteiro (de 30 a 40 cm de altura), e ciclo de vida perene. As folhas são oval-lanceoladas, brancas e frutos de cor avermelhada e formato ovoide. (Hiram Reis)

[2]    Vide “Missão Rondon”, páginas 6, 7, 44 e 47. (N.A.)

[3]    O poeta Alfred Vigny perguntou a si mesmo: “O que é uma grande vida?” E ele mesmo responde: “Um sonho juvenil concretizado na maturidade”. (Hiram Reis)

[4]    Vide “Missão Rondon”, página 111. (N.A.)

[5]    Vide Alípio Bandeira: “Coletânea Indígena”, pág. 5, Rio, Tipografia do Jornal do Commercio, 1929. (N.A.)

[6]    Vide “Rumo ao Oeste”, volume avulso da Biblioteca Militar, pág. 60, Rio, 1942. (N.A.)

[7]    O escritor William Penn (1644/1718) foi um dos primeiros membros da “Sociedade Religiosa dos Amigos” (Quakers) e um dos pioneiros a defender os ideais democráticos e a liberdade religiosa e notabilizou-se por promover harmônicas e exitosas relações e tratados com os nativos americanos. (Hiram Reis)

[8]    Nils Otto Gustaf Nordenskjöld (1869/1928): geólogo sueco conhecido universalmente pela expedição que fez à Antártida em 1902 com o navio “Antartic”. (Hiram Reis)

[9]    Roquette Pinto: “Rondônia’, pág. 108 da 3.a edição, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1935. (N.A.)

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