A Terceira Margem – Parte CC

Navegando o Tapajós ‒ Parte XIV  

O Canoeiro

Cerâmica Santarena I  

Cerâmica, Cultura na Ponta dos Dedos   

Havia nesse povoado uma casa de reuniões, dentro da qual encontramos louças dos mais variados feitios: havia vasos, cântaros enormes, de mais de 25 arrobas e outras vasilhas pequenas, como pratos, tigelas e castiçais, de uma louça melhor que já se viu no mundo; mesmo a de Málaga não se iguala a ela, porque é toda vitrificada e esmaltada com todas as cores, tão vivas que espantavam, apresentando, além disso, desenhos e figuras tão compassadas, que naturalmente eles trabalhavam e desenhavam como os romanos. (CARVAJAL)

A primeira notícia a respeito de artefatos de Cerâmica na Bacia do Rio Amazonas foi transmitida pelo Frei Gaspar de Carvajal, em maio de 1542, no seu “Relatório do Novo Descobrimento do Famoso Rio Grande Descoberto pelo Capitão Francisco de Orellana”, quando o clérigo espanhol comparou o grau de perfeição das figuras e desenhos encontrados nas louças do Rio da Trindade ([1]) a dos romanos. A Bacia do Rio-Mar foi, em tempos pretéritos, um caminho natural utilizado por diversos agrupamentos humanos que deixaram, nas suas margens, sinais definitivos de sua passagem, de sua história, crenças, costumes e grau de desenvolvimento através da Cerâmica.

Os estudos destes sítios arqueológicos vêm permitindo que sejam reconstituídas algumas dessas rotas migratórias bem como as relações que estes povos mantinham entre si. Tenho procurado, sistematica­mente, encontrar vestígios de antigas culturas materia­lizados na arte da Cerâmica nos museus e coleções particulares e considero, dentre todas, a mais criativa, mais elaborada e mais intrigante a dos Tapajó. As peças mais sofisticadas desta cultura eram empregadas em complexos cerimoniais religiosos e funerários. Cada peça moldada a mão era única, decorada com maestria e cuja riqueza de detalhes antropomorfos e zoomorfos me levaram a apelidá-la de “Cerâmica Barroca Tupiniquim”.

A Arte da Cerâmica  

Qualquer que seja o seu nome – Mãe-Terra, Avó da Argila, Senhora da Argila e dos Potes de Barro, etc. –, a padroeira da Cerâmica é uma benfeitora, já que os homens lhe devem, dependendo da versão, a preciosa matéria-prima, as técnicas cerâmicas ou a arte de decorar os potes. Mas, ao mesmo tempo, os mitos considerados mostram que ela tem um temperamento ciumento e rabugento. Em um mito Jivaro [povos aborígenes peruanos e equatorianos], ela é a causa do ciúme conjugal. Em outro mito, também dos Jivaro, cobra caro o seu auxílio. Mostra-se carinhosa e ciumenta em relação às suas alunas, prendendo-as sob a terra para mantê-las ao seu lado, ou então impõe numerosas restrições quanto ao período do ano, o momento do mês ou do dia em que lhes é permitido extrair argila. (LÉVI–STRAUSS)

A arte do barro imerge o ceramista no âmago da mãe terra, uma torrente telúrica migra das terras e das águas para suas hábeis mãos, as energias planetárias inspiram-no, seduzem-no, e ele abandona o casulo da criatura, ganha asas e se transforma no criador, por breves momentos ele tem a oportunidade de se sentir um pequeno deus. O ceramista inicia seu labor, impregnado dessas forças mágicas, concentra-se e parte para a confecção de sua obra com segurança graças ao conhecimento dos materiais e das técnicas a serem empregadas, herdadas dos seus ancestrais.

Na Cerâmica, essencialmente combinamos: terra, água, ar e fogo, mas não somos alquimistas. Somos empiristas. Ombreamos uma picareta e saímos por aí, à procura de barro. Um buraco aqui, outro ali e vamos enchendo a carroça deste, daquele e do outro tipo. Arregaçamos as mangas e vamos preparando a massa até chegar a uma certa maneabilidade. Aí começa a fecundação: formas vão se criando. Orgasmos se prolongam entre uma e outra relação e o espaço vai se adornando de princípios intuitivos, forma-se uma coletividade que pacientemente aguarda o fogo do forno. O forno é a grande mãe, ora aborta, ora dá filhos sadios e bonitos. O fogo é a eternidade, é o êxtase da comemoração, é lá que se rompe a casca do ovo, que se transpira o sangue e reflete o poder das forças da natureza em expansão latente. A chama incute a vida às formas na cor do Sol mais quente, no movimento que vibra e irradia emoção intensa. Terminada a queima, resfriado o forno, abrem-se as portas das câmaras e visualiza-se o estonteante milagre da transformação dos materiais, que morre para viver outra vez. A verdadeira arte, entre outros alimentos, é um alívio para a fatigada humanidade, essa imensidão de seres palpitantes que rolam pelos ermos da esfacelada Terra. A Cerâmica já não é mais Cerâmica ou arte: é cabeça, corpo e coração que se envolvem numa ânsia elástica. (BITAR)

O seu envolvimento, porém, inicia-se muito antes do trabalho nas oficinas com a escolha da jazida, da argila adequada e da seleção dos elementos de liga. A coleta da argila é realizada nas barrancas, margens ou leito de Rios ou Igarapés no período da vazante.

São retiradas três camadas do solo: a primeira orgânica, rica em detritos de origem vegetal e a segunda camada, um pouco mais limpa, são descartadas; a escavação continua até se chegar à terceira camada onde se encontra o “barro bom”.

Normalmente os artífices só exploram as jazidas uma única vez para não perturbar as entidades do barro. Esta fase demanda grande esforço físico e, por isso mesmo, é, normalmente, atribuída aos homens. A verificação da qualidade do material é feita na própria mina através do tato, moldando pequenos roletes de argila, ou pelo paladar.

Depois de transportado para as “oficinas”, o produto é minuciosamente examinado para que se retirem fragmentos de origem orgânica ou mineral e, depois disso é, habitualmente, deixado em repouso por alguns dias em cestos ou folhas de palmeira, em locais frescos para evitar seu ressecamento.

Liga 

Para que a Cerâmica possa ser levada ao fogo, sem o risco de sofrer deformações e rupturas, são misturados a ela substâncias:

      • –  orgânicas: fibras vegetais, raízes, conchas, ossos, estrume;
      • –  inorgânicas: areia, terra, mica, pedras calcárias, grãos de quartzo, feldspato;
      • –  biominerais: cascas de árvores ricas em sílica [caripé], cauxi;
      • –  cacos de Cerâmica triturados.
Cauxi

Caripé (Licania Octandra)  

As cinzas de sua casca, misturadas à argila, aumentam a resistência da peça confeccionada. A árvore é cortada e sua casca retirada e levada ao fogo. As cinzas são piladas e coadas, resultando num pó fino de coloração cinza escuro.

Cauxi (Porifera, Demospongiae)  

As esponjas de água doce pertencem à classe Demospongiae (Tubella reticulata e Parmula batesii), têm como característica básica a produção de um esqueleto de espículas de Óxido de Sílica. As espículas possuem um aspecto de agulhas transparentes ou opacas, com extremidades ligeiramente curvas. Essas espículas, devido à sua constituição mineral, após a morte e putrefação das esponjas, são liberadas da matriz de colágeno, que as mantém unidas em feixes estruturais e, assim permanecem nos sedimentos, disponíveis até que os banzeiros as propaguem no meio líquido.

Dr. Alfredo da Matta (DA MATTA) faz a seguinte consideração a respeito do espongiário:

Ora, por que o sagaz e astuto caboclo, ou o nordestino observador já identificado com o meio amazonense, não entra em Rio que tenha cauxi, nele não se banha e não bebe a água daí retirada?

Porque o silvícola, através gerações, ensinou a cada qual que “i cai tara”, isto é, ele se queima n’água ou a água lhe queima! E com propriedade tão irritante para a epiderme, mais pronunciada ainda ela se torna quando a água é ingerida, porque a inflamação da mucosa gastrointestinal poderá por vezes apresentar sintomas alarmantes. Por tal motivo o silvícola dizia: – “cai igaure”, isto é, queima, bebedor d’água.

A Cerâmica dos Tapajó, no longínquo pretérito, usava como elemento antiplástico mais importante o cauxi, que era empregado como único elemento de liga ou associado a pequenas porções de pedras calcárias, areia e, raramente, a cacos de Cerâmica triturados. Em virtude dos problemas causados pelo contato do corpo humano com as finas espículas, a utilização do cauxi foi, com o passar dos anos, abandonada.

Moldagem   

Primeiramente é moldado o fundo do vaso, obtido pela compressão da massa sobre uma superfície plana e lisa (tábua, esteira ou casco de quelônio), até formar uma base achatada, homogênea e circular. Concluída esta etapa, partia-se para a preparação dos roletes de argila que, de acordo com o tamanho, eram comprimidos entre as mãos, sobre a coxa, ou uma tábua e sobrepostos de forma circular um sobre o outro a partir de uma base, em forma de anéis ou espirais para a elevação da parede do recipiente. A cada rolete acrescentado, as peças recebiam um acabamento interna e externamente para eliminar os vestígios deixados pela técnica do acordelado ([2]), tornando as paredes mais lisas e finas.

Depois de devidamente modelada, a peça era levada para secar em local fresco e arejado à sombra; dependendo da espessura das paredes, este processo podia levar vários dias. A secagem à sombra era uma fase importante, pois uma exposição direta ao Sol ou ao forno ocasionaria danos à peça. Depois de parcialmente seca, tem início a raspagem, quando se procura eliminar as asperezas com o auxílio de sementes, conchas, pedaços de cabaça, seixos rolados, cocos (palmeira inajá – Maximiliana Maripa Aublet Drude), ou outros materiais disponíveis.

Depois de raspada, ela é lixada com a folha áspera de algum arbusto (Dileniacea sp.). Procede-se, então, à decoração da peça: são feitas incisões geralmente com motivos geométricos e, somente agora, são aplicados os apêndices tais como alças, asas, figuras zoomorfas e antropomorfas. É necessária, então, uma segunda secagem para enrijecer a Cerâmica dos apliques, antes de se partir para a queima.

Queima    

Uma diferença insignificante na escolha das argilas, das coberturas, dos pigmentos ou das temperaturas de cozimento podem reduzir a nada a obra de uma semana ou até mesmo de um mês. Desse modo, a preocupação com a segurança induz o ceramista a reproduzir fielmente os materiais e os modos de fabricação que ele sabe por experiência que são os mais apropriados para evitar um desastre. Tudo leva o artesão a seguir um caminho direto e definido. Afastar-se dele para um lado ou para o outro pode trazer consequências trágicas no plano econômico… Daí um espírito profundamente conservador, uma desconfiança em relação a todas as inovações que repercute na visão global do mundo e da vida. (LÉVI–STRAUSS)

A queima geralmente antecede à decoração pintada. Para queima, arma-se uma fogueira, cujo tamanho varia em função da peça a ser queimada, em geral usa-se lenha e casca de árvores em arranjo cônico envolvendo o artefato; isto garante uma queima mais uniforme. As peças grandes são queimadas individualmente e as pequenas em grupo, emborcadas no interior da fogueira, apoiadas em três pedras onde são totalmente envolvidas pelo fogo durante uma ou duas horas. Eventualmente os vasos são reposicionados de modo a queimar por igual.

A queima é realizada ao ar livre e a impermeabilização da superfície é feita com a seiva da entrecasca de árvores (Ingá spp.). Os grafismos são pintados com pigmentos orgânicos e inorgânicos através de variadas técnicas, como a incisão, a marcação com malha, a inserção de apliques, entre outros. O tom vermelho pode ser obtido com o uso do urucum, o branco com o caulim, o preto com o jenipapo, o carvão ou fuligem. A vitrificação do vasilhame era obtida com a aplicação de resinas vegetais como o breu de jutaí, a resina de jatobá ou o leite de sorva ([3]).

Arqueologia e Cerâmica 

Os Índios Pueblo acreditam que todas as suas peças de Cerâmica possuem alma; também as consideram como seres personalizados. Os potes passam a ter essa essência espiritual assim que são modelados e antes de serem cozidos, e por isso dentro do forno são colocadas oferendas ao lado do pote a ser cozido. Quando o pote quebra devido ao calor, emite um ruído que provém do ser vivo que escapa. (LÉVI–STRAUSS)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 22.04.2021 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

BITAR, Rosana. Arte e Transcendência a Obra de Ruy Meira ‒ Brasil ‒ Belém, PA ‒ Estacon Engenharia, 1991.

CARVAJAL, Gaspar de. Relatório do Novo Descobrimento do Famoso Rio Grande Descoberto pelo Capitão Francisco de Orellana – Brasil – São Paulo, SP – Consejería de Educación – Embajada de España – Editorial Scritta, 1992.

DA MATTA, Alfredo. Cai e Cauxi – Brasil – Manaus, AM – Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, 1934.

LÉVI–STRAUSS, Claude. A Oleira Ciumenta – Brasil – São Paulo, SP – Editora Brasiliense, 1986.     

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Rio da Trindade: Purus.

[2]    Acordelado: roletes.

[3]    Sorva: Couma utilis.

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