Indígenas Munduruku do Planalto, no Pará, lançam plano de gestão e uso do território

Caciques Munduruku do Planalto convidaram várias instituições parceiras para o evento de lançamento, entre as quais o MPF

Cacique Josenildo Munduruku e a publicação no lançamento online – Publicada em: MPF PA

Os indígenas Munduruku do Planalto lançaram, no último dia 22, o plano de gestão e uso do seu território, localizado em Santarém, no oeste do Pará. O documento apresenta um diagnóstico da situação das quatro aldeias, indicando os principais problemas vivenciados pelos indígenas, caminhos para soluções, e as regras de uso responsável dos bens naturais com respeito ao meio ambiente e às tradições indígenas. A publicação pode ser solicitada pelo e-mail .

“Embora ainda estejamos lutando para a demarcação deste território, não temos nenhuma dúvida de que ele nos pertence e que nós pertencemos a ele também. Para melhorar nossa vida, nos desafiamos a pensar sobre como estamos vivendo aqui para decidir como podemos melhorar nossas ações políticas, produtivas e de convivência interna e externa e assim caminhar em direção a um futuro melhor para nosso povo”, diz trecho da apresentação da publicação.

O documento está previsto no Decreto nº 7747/2012, de instituição da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), com o objetivo de garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural.

A publicação foi lançada em evento com a participação do cacique coordenador do Conselho Munduruku do Planalto, Manoel Munduruku, da aldeia de Ipaupixuna, e do cacique Josenildo Munduruku, da aldeia Açaizal. Também participaram a antropóloga Luana Kumaruara, liderança indígena no baixo Tapajós e integrante do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita), a professora Judith Vieira, do curso de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), o procurador da República Gustavo Kenner Alcântara, da unidade do Ministério Público Federal (MPF) em Santarém, o representante coordenação técnica local de Santarém da Fundação Nacional do Índio (Funai), Geraldo Dias, e o coordenador regional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Gilson Rego.

Ferramenta de conhecimento e defesa – Segundo o cacique Manoel Munduruku, os indígenas entenderam que esse plano seria uma forma de fortalecimento do território, e então, em 2018, deram início à elaboração do documento, por meio de uma série de encontros, oficinas e reuniões nas aldeias. “Foi muito significativo. É uma forma que encontramos de manter o nosso próprio povo dentro do território. De fortalecer os estudos do nosso território. De nós termos autonomia, de manter nossos próprios lugares sagrados, nossa floresta, nossa caça, nossa pesca, nosso rio, e pensar no futuro o grande fortalecimento dos nossos filhos, dos nossos netos. É a forma que encontramos de nos reorganizar e buscar nossos benefícios sociais que possamos manter em relação à nossa cultura e à nossa organização”, explica o cacique. “Nossa resistência é permanente, e sempre vai ser”, reforça.

O cacique Josenildo Munduruku lembrou que o documento é um dos primeiros planos de gestão e uso de território indígena da região do baixo Tapajós, e, apesar da série de violações de direitos que os Munduruku do Planalto vêm sofrendo, “ainda encontramos forças para resistir e dizer que estamos no planalto, nos afirmamos, e para passar essa energia para nossos parentes.” Josenildo Munduruku destacou que o plano é fundamental na proteção e defesa do território indígena, e convidou os demais povos indígenas da região a prosseguirem nessa luta. “Que todos os indígenas do baixo Tapajós se unam. E vamos nos unir porque esta é nossa luta, esta é nossa casa e ninguém pode mandar. Quem tem o direito de mandar somos nós povos indígenas daqui. Porque nós sabemos como é que devemos cuidar do nosso quintal. Então quem tem o direito de mandar somos nós”.

A antropóloga Luana Kumaruara ressaltou que o avanço do agronegócio em direção ao território dos Munduruku do Planalto foi muito preocupante, e que o plano de gestão vai servir de modelo para outros povos. “A cartilha pode estar sendo lançada agora, mas a gente já percebe que está sendo executada dentro do território, que essa conscientização está vindo dos parentes [como indígenas se referem a outros indígenas], e que não precisa negociar com sojeiro para trabalhar, e que não precisam sair dos seus territórios para viver”, observa. “Com certeza isso ainda vai se expandir para outros territórios. A gente precisa disso. Tem áreas que estão sendo ameaçadas com cooperativas madeireiras e também precisam dessa conscientização comunitária dos parentes, que não precisamos vender nossa madeira, não precisamos vender as nossas terras para viver, que a gente pode continuar fazendo usufruto exclusivo e comunitário da nossa terra”, relata a antropóloga, que conta ter sofrido diretamente pressão por defender o território Munduruku Planalto, assim como várias lideranças indígenas sofreram ameaças.

Força de lei – Para o procurador da República Gustavo Kenner Alcântara, é muito simbólico e muito efetivo o lançamento de um instrumento jurídico criado pelos próprios indígenas em um momento em que o país vive uma estagnação dos processos demarcatórios de terras indígenas – incluindo o processo do próprio território Munduruku do Planalto (em 2018, o MPF ajuizou ação com pedido urgente para que a Justiça obrigasse a União e a Funai a iniciarem os estudos de identificação e delimitação do território. No mesmo ano a Justiça homologou acordo que estabelecia prazo até dezembro de 2020 para a conclusão do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, mas esse prazo vem sendo descumprido).

O plano de gestão e uso do território, segundo o membro do MPF, “é importantíssimo, porque mostra que o protagonismo é dos índios e sempre foi assim. Mostra que, mesmo nesse estado de inércia estatal, os índios não estão parados, os direitos dos índios não estão em nenhum momento deixados de ser assegurados por eles próprios, e esse instrumento, nesse espaço jurídico que nós temos em nosso sistema estatal, ele vem em igual status como qualquer outra lei. O que eu vejo, a partir do plano de gestão hoje anunciado e construído com tanto esforço, é que temos ali sistema jurídico que agora tem que ser apresentado para além da comunidade e também para os órgãos de Estado, e para terceiros que não representam a comunidade. Ele tem que ser respeitado enquanto lei. E isso forma um sistema jurídico extremamente importante para a gente defender judicialmente, para a gente demostrar judicialmente que, apesar da paralisação do Estado, não há uma paralisação dos indígenas nessa defesa dos seus territórios. Não há paralisação no reconhecimento originário”.

“Um instrumento como esse, que se pauta pelo protagonismo indígena, pela autonomia, pela valorização das suas organizações, é um instrumento extremamente relevante, para a defesa dos territórios pelos próprios indígenas e também para as demais instituições que têm o dever de zelar pelos seus direitos, como o Ministério Público Federal. Então dentro desse histórico que eu posso dizer que é uma lei que é publicada, e que o Ministério Público, junto com os indígenas, fará de tudo para que ela seja rigorosamente cumprida por todos aqueles que eventualmente tenham alguma necessidade de ingressar no território, de se relacionar com os indígenas”, registra o procurador da República.

Diálogo com outros direitos – A professora Judith Vieira, que teve a oportunidade de acompanhar várias fases da elaboração do plano e registrou que o trabalho entre os indígenas foi bastante participativo, destacou que o documento é um instrumento que dialoga com outros direitos indígenas já reconhecidos, e ressaltou um deles: a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por trazer “uma série de dispositivos que tratam do respeito à autonomia indígena e principalmente da autonomia indígena em relação a seu território, de dizer como deve ser feito o uso desse território, quem tem o poder de definir a melhor forma de desenvolver esse território, do que seja o desenvolvimento para cada povo, que é cada povo que tem que definir.”

Assim, o plano é um mecanismo que traduz para o Estado, para organizações parceiras e para outras organizações que atuam na defesa de direitos indígenas o que os Munduruku do Planalto estão querendo, quais são suas principais demandas, e suas expectativas em relação a outros sujeitos não indígenas, explica a professora. “O plano de gestão tem essa finalidade de se antecipar e levantar quais são os problemas, levantar um diagnóstico sobre a situação de políticas públicas implementadas em território indígena, e também apresentar propostas e prioridades”, complementa. “No caso dos Munduruku do Planalto, além dessa questão de enfatizar as suas demandas, e as perspectivas de como é pensado o desenvolvimento para o seu território, ou quais medidas são necessárias e urgentes para a proteção ambiental do território, dos açaizeiros, do lago do Maicá, da pesca, da extração irregular de minérios, o plano de gestão Munduruku trouxe movimentos interessantes que valem ser pensados para quando for discutida a finalidade de um plano de gestão: a finalidade não é só mostrar para o Estado os problemas e as potencialidades do território, mas serviu de maneira muito importante para que os próprios Munduruku se apropriassem da forma como cada aldeia via seu território, e então essa ideia de coletividade foi fortalecida, do conhecer o território, de discutir as prioridades de cada aldeia, os desafios de cada aldeia, então esse momento de construção do plano serviu nessa articulação interna que gera um fortalecimento da própria organização do Planalto enquanto um território que articula diferentes visões e diferentes vivências dentro desse território”, acrescenta.

O representante da Funai, Geraldo Dias, também reforçou o potencial da iniciativa como instrumento de diálogo intercultural entre pessoas e entidades. “O plano de gestão é um instrumento de diálogo que vai ajudar não só na construção da política pública socioambiental mas também na relação com os órgãos municipais, estaduais e federais responsáveis por essas políticas”, apontou. Assim como foi com o protocolo de consulta prévia, livre e informada elaborado pelos Munduruku do Planalto – um dos primeiros protocolos desse tipo publicados na região e que incentivou outros territórios a também elaborarem esses documentos, sublinhou Dias –, ele espera que o lançamento desse plano de gestão também incentive outros territórios a elaborarem o documento, que pode ajudar os povos a planejar como a educação pode melhorar, auxiliar instituições públicas na elaboração projetos de geração de emprego e renda, entre outras melhorias, explica Dias.

Íntegra do evento de lançamento do plano de gestão e uso do território Munduruku do Planalto

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