Após 18 anos de luta e esforços da Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (Aidesep) e da Organización Regional de los Pueblos Indígenas del Oriente (Orpio), o governo peruano finalmente decretou, no último dia 10 de abril de 2021, a categorização da Reserva Indígena (RI) Yavarí Tapiche, a maior área para proteção de indígenas isolados no Peru, com mais de 1 milhão de hectares e a primeira no departamento de Loreto. O decreto de categorização é a última etapa do processo de regularização administrativa do territórios desses povos naquele país. Contudo, ainda deverá ser elaborado, em um prazo de 60 dias, o Plano de Proteção da RI Yavarí Tapiche, que envolve a participação da sociedade civil interessada e organizações indígenas representativas dos povos isolados da referida RI. Esse Plano de Proteção deverá ser aprovado pelo Ministério de Cultura do Peru.
A categorização da RI Yavarí Tapiche é um passo importante na defesa destes povos que, devido à lentidão do Estado peruano em reconhecer e regularizar essa Reserva Indígena, estiveram expostos à ação de madeireiros e de empresas petrolíferas, além de outros conflitos de interesse relacionados ao uso da terra.
“É um reconhecimento do Estado à existência, à ocupação territorial e aos direitos dos povos indígenas isolados, cuja presença e territorialidade foram negadas de forma interessada ao longo dos anos por funcionários e atores econômicos para poder explorar os recursos sem maiores problemas.”, comenta Beatriz Huertas, antropóloga, membra da equipe técnica da Orpio.
A proposta de criação da Reserva Indígena Yavarí Tapiche tramitava desde 2003, quando Aidesep e Orpio apresentaram ao Estado peruano os primeiros estudos solicitando o seu reconhecimento. A Reserva faz limite com a Terra Indígena Vale do Javari, no lado brasileiro da fronteira, e com a Comunidade Nativa Matsés, no lado peruano. Em 2007, a Comissão Multisetorial responsável pelo reconhecimento dos povos indígenas isolados e seus territórios no Peru aprovou os Estudos Prévios de Reconhecimento da RI Yavarí Tapiche, aprovados em 2017, atestando a presença e circulação de povos indígenas isolados nessa região da fronteira Brasil-Peru e dando início aos trâmites administrativos para reconhecimento da Reserva Indígena. , finalizado com o decreto de estabelecimento da mesma.
Os estudos de reconhecimento e categorização da RI foram elaborados pelo Centro para el Desarrollo del Indígena Amazónico (CEDIA) em cooperação com o Ministério de Cultura do Peru.
O povo Matsés, por meio de suas organizações indígenas, a Organização Geral Mayuruna – OGM, no Brasil, e Comunidad Nativa Matsés – CNM, no Peru, também reivindicava o reconhecimento da existência de povos indígenas isolados na região e a regularização de seus territórios. Desde o princípio da articulação dos Matsés para a gestão compartilhada de seu território – hoje dividido entre os dois países – e para a defesa de seus direitos, a categorização da Reserva Indígena Yavarí Tapiche tem sido uma das pautas prioritárias.
Ameaças aos Povos Indígenas Isolados
Boa parte da área proposta para a RI Yavarí Tapiche encontra-se sobreposta por Áreas Naturais Protegidas (ANP), Concessões Florestais ou lotes petrolíferos.
A partir do ano 2000 foi estabelecido um regime de concessões florestais por meio do qual o Estado peruano tem fomentado a atividade madeireira na Amazônia. Estudos realizados por Hilton Nascimento, ecólogo e colaborador do CTI, apontam que “o sistema de concessões estabelecido em 2000 não coibiu a desordem e informalidade que caracterizou historicamente a atividade madeireira na região, sendo frequentes as práticas de ‘branqueamento’ de madeira retirada fora das áreas concessionadas, de utilização de mão de obra infantil e de trabalho escravo, de emprego de indígenas de recente contato e de lavagem de dinheiro do narcotráfico”. A reserva Yavarí Tapiche encontra-se sobreposta pela concessão florestal conhecida como Zona 1.
Com relação à exploração de petróleo e gás, nos últimos dez anos a área da RI Yavarí Tapiche permaneceu extensamente sobreposta pelos Lotes petrolíferos 135 e 137, concessionados em 2007, durante o governo do presidente Alan Garcia. Desde então, os dois lotes se tornaram a maior preocupação territorial das comunidades Matsés no Peru e no Brasil. Após intensa resistência do povo Matsés à atuação de petrolíferas em seu território e em territórios de indígenas isolados, em julho de 2016 a empresa Pacific Stratus Energy (subsidiária da canadense Pacific E&P no Peru) anunciou o fim de suas atividades no Lote 137. No início de 2017 a mesma companhia se retirou do Lote 135, que se sobrepunha à RI Yavari-Tapiche. Apesar desta importante vitória do povo Matsés, ambas as áreas podem voltar a ser alvo de concessões por parte do Estado peruano. Uma parte menor da RI Yavarí Tapiche ainda se encontra sobreposta pela porção sudeste do Lote 95.
No que se refere às sobreposições com Áreas Naturais Protegidas, a RI Yavarí – Tapiche tem sua maior parte sobreposta pelo Parque Nacional Sierra del Divisor. Em novembro de 2015, a então Zona Reservada Sierra del Divisor foi categorizada como Parque Nacional – categoria de ANP de maior proteção na legislação ambiental do Peru. No entanto, como até então o governo peruano não reconhecia a existência de povos indígenas isolados na região, o Decreto Supremo de Criação do Parque ignorou a presença destes povos em seu interior e o pleito pelo reconhecimento da RI Yavarí Tapiche. Apesar da proteção proporcionada pelo Parque Nacional, a presença de isolados é um aspecto fundamental a ser considerado no seu zoneamento e nos planos e instrumentos de gestão.
Iniciativas transfronteiriças
A luta pelo reconhecimento da Reserva Indígena Yavarí Tapiche capitaneada pela Aidesep e Orpio recebeu, ao longo dos anos, o apoio de organizações indígenas e indigenistas que atuam na defesa dos direitos de povos indígenas isolados em países da América do Sul. O CTI tem participado desde 2007 desse processo, colaborando com a Aidesep e Orpio, e também com o Ministério de Cultura do Peru, órgão responsável por esse tema no país. Essa cooperação envolveu a produção e compartilhamento de informações sobre a presença de indígenas isolados nessa região fronteiriça, o apoio e participação em viagens de campo para o levantamento e atualização dessas informações. Envolveu, ainda, a realização de diversas reuniões, oficinas e outras atividades junto a comunidades e organizações indígenas no Peru e no Brasil, voltadas à proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas isolados.
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