A Terceira Margem – Parte CLXVII

Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte XLIII   

Furo do Cavado e a Sincronicidade de Jung

Ipixuna, AM – Eirunepé, AM II 

13.01.2013 – Partida para a Comunidade São José  

Comunidade Condor – Com. São José, AM.

Depois de remar durante 4 horas, avistamos a Comunidade S. Maria. Em todo esse percurso, de 40 km, avistamos somente uma pequena Aldeia Culina às margens do Igarapé Penedo próxima de sua Foz no Juruá. Ao ultrapassarmos o Rio Gregório, fomos informados da existência de um Furo próximo à Com. Cordeiro. Depois de certificar-me de que não havia nenhum acidente natural ou Comunidade no laço que deixaríamos para trás, decidi experimentar o Furo na forma de um “S” muito aberto. A correnteza obviamente era forte já que, em vez dos quase 07 km, percorreríamos pouco mais de cem metros. O Marçal levou uma queda, mas agilmente montou no caiaque e continuou a navegação. Passamos a chamar o local de “Furo do Marçal” ([1]) já que este ainda não tinha sido batizado. Fomos informados do Furo Cavado ([2]), próximo à Comunidade São José e partimos para ele. O Furo localiza-se no final de um enorme “M” invertido. O Furo, pelo Google, estava localizado na margem direita e próximo ao meio da curva à esquerda mas, considerando que os Rios de terras baixas mudam constantemente, enveredamos pelo primeiro furo que achamos, um pouco mais a montante do “Cavado”.

Comunidade Condor – Com. São José, AM

Era na realidade o Igarapé do Pinheiro que dá acesso a um Lago interior coberto de canaranas e a um Igapó que mais parece um infinito labirinto arbóreo. Retiramos os troncos que bloqueavam a entrada e enveredamos pela estreita montanha russa fluvial. Enganchamos, eu e o Marçal, sob um enorme tronco, o Marçal caiu do caiaque e empurrou o meu que estava trancado sobre enormes toras. Liberado, não consegui frear e fui levado pela rápida correnteza, o trajeto lembrava um toboágua natural, passei por cima e por baixo de troncos de árvores caídas e desviei das espinhentas palmeiras javaris (Astrocaryum javari). Depois de diversas curvas, cheguei a um escuro e enorme igapó, à direita de minha rota uma claridade chamou minha atenção e rumei para lá. Chamei, em vão, pelo Marçal, perdera minhas cartas na descida abrupta e não encontrava meus óculos, eu estava desorientado. Achei que, se seguisse a correnteza, poderia sair daquele medonho labirinto.

Comunidade Condor – Com. São José, AM

Lago Maldito ‒ Canaranas

(Jonas Fontenelle da Silva) 

[…] Lago em que havia à superfície esparsas

Grandes vitórias-régias e falenas

E em que hoje existe a canarana apenas … […]

Morre aos venenos do timbó medonho…

– Assim tombei nas lutas desumanas,

Tal a Descrença envenenou-me o Sonho!

Esperei pelo companheiro e nada, naveguei pelo enorme Lago em forma de meia lua sobre as canaranas, cujas afiadas bordas cortavam e enchiam minha pele de minúsculas farpas, enquanto meu caiaque enroscava nos intransponíveis cipós tiriricas.

Comunidade São José, AM

Meu colossal caiaque “Cabo Horn” não fora projetado para aquelas paragens, o suporte do leme enroscava na vegetação aquática – o esforço era sobre-humano. Fui forçado a passar por cima de enormes vitórias amazônicas ([3]) e depois de me arrastar por uns 500 m que mais pareceram dezenas de quilômetros, desisti de encontrar caminho pelo maldito Lago do Pinheiro. Voltei até o ponto de onde abandonara o igapó e tentei navegar entre as árvores submersas e, novamente, a progressão era dificultada pelo tamanho do “Cabo Horn”, depois dessa frustrada tentativa voltei para o Lago para descansar.

Recuperei o fôlego e tentei, novamente, achar o caminho pelo igapó, desta vez caminhando a pé por entre as árvores e rebocando o caiaque. Exausto, voltei para o Lago e decidi me preparar para dormir naquele local e tentar encontrar uma saída no dia seguinte. Tentei pernoitar em um local seguro me amarrando a uma árvore conhecida como pau-de-novato ([4]) para dormir, mas ao esbarrar numa de suas bromélias fui expulso pelas terríveis tachi ([5]), desci da árvore e voltei, pois, para uma área limpa do Lago e me preparei para pernoitar a bordo do caiaque.

Fiz uma limpeza sumária no caiaque, vesti o salva-vidas e coloquei sobre a embarcação um material alaranjado que o Angonese comprara para servir de acento e que poderia ser avistado à distância. Era uma temerária decisão já que o Lago era infestado de jacarés-açus, mas eu estava esgotado, fraco, a musculatura enrijecida, cada contração muscular doía, cada atividade física exigia um enorme esforço e consumia uma considerável energia. O Sol já estava quase sobre o horizonte quando ouvi, ou senti, o ruído de uma rabeta. Depois de alguns minutos, avistei ao longe a silhueta do Marçal, com sua tradicional camiseta vermelha de navegação, de pé em uma voadeira – o suplício terminara. O Sr. Francisco de Assis Cassiano da Costa e seu filho Antônio José da Silva Costa colocaram o caiaque atravessado sobre a voadeira e com extrema habilidade me conduziram, contra a corrente, pelo mesmo Igarapé em que eu entrara. Enquanto o Antônio, na popa, mane­java a rabeta com muita agilidade, seu pai Francisco, na proa, corrigia habilmente o rumo com o remo.

Um final feliz para um dia de pouca progressão, mas que servirá de ensinamento para o resto da vida de cada um de nós. Seja em operações militares ou mesmo nos deslocamentos de ribeirinhos, os Furos devem ser usados com muita cautela, tendo em vista as radicais modificações a que estão sujeitos. Da noite para o dia, seu curso pode ser interrompido ou obstaculizado por árvores caídas. Nos deslocamentos onde se utilizem diversas embarcações, devem-se empregar precursores devidamente assessorados por hablocs ([6]). A economia de tempo e combustível determina que estes atalhos sejam utilizados devidamente.

Não há condições de se manter atualizadas as informações sobre cada um deles, tendo em vista a inconstância tumultuária do Rio Juruá, basta ver a quantidade de arrombados, sacados e furos que são criados continuamente. O Mário, preocupado conosco, desencadeara uma verdadeira operação de resgate. Abastecera as rabetas dos ribeirinhos da Comunidade São José e do Boia (senhores Daniel Gomes da Silva e Francisco Gomes de Souza) com nossa reserva de combustível e, graças a isso, não tivemos de experimentar um solitário e perigoso pernoite no Lago do Pinheiro, povoado pelos temíveis e monstruosos jacarés-açus que já tinham vitimado alguns ribeirinhos em circunstâncias similares.

Ficamos hospedados, naquela noite, na sala da residência do Sr. Francisco de Assis Cassiano ([7]) e o Marçal preparou um saboroso carreteiro para treze pessoas, nosso anfitrião tem quatro filhos homens e quatro mulheres. Durante a refeição, comentei com ele que o Santo Padroeiro da Engenharia Militar é São Francisco de Assis ([8]), seu homônimo, e que meu pai se chamava Cassiano, uma interessante e agradável sincronicidade. Graças à ação da equipe de apoio eu sobrevivera a este perigoso incidente e esta equipe me acompanhava graças à intervenção oportuna e determinante de meu Amigo e Ir:. General Avena.

14.01.2013 – Partida para a Com. Praia do Hilário   

Comunidade do Hilário, AM

Chegamos à graciosa Comunidade Praia do Hilário ([9]) cedo, depois de percorrer 43 km, o dia anterior tinha exigido por demais de nossos corpos e precisávamos recuperar nossas energias antes de nos atirarmos a uma longa jornada. Dizem que a primeira impressão é que conta e, esta, foi a mais agradável possível. As residências da Comunidade estão perfeitamente alinhadas e ostentam, à sua frente, uma bela passarela de madeira construída pela Prefeitura de Eirunepé e a Escolinha embora careça de manutenção, é muito melhor projetada que as dos Municípios de Guajará e Ipixuna.

Comunidade do Hilário, AM

O único problema que vimos foi novamente porcos perambulando soltos. O Sr. Francisco, líder da Comunidade, gentilmente convidou-nos para jantar. Durante a refeição os porcos alojados sob a sua casa, faziam o maior estardalhaço e ele nos confiou que os animais eram do vizinho e que não reclamava para não abalar a amizade entre eles. A grande reivindicação da Comunidade era a respeito da Escola Nossa Sr.ª da Auxiliadora que precisava de dedetização para desalojar morcegos e formigas e que fosse concluída a instalação dos sanitários.

Comunidade do Hilário, AM

15.01.2013 – Partida para a Comunidade Miriti   

Comunidade do Hilário – Com. Miriti, AM

Recuperados, decidimos remar uns 100 km para deixar pouco mais de 80 para o último dia. Novamente os botos tucuxis deram seu ar de graça e um casal deu um show à parte executando piruetas com seus belos corpos cinzentos totalmente fora d’água.

Comunidade do Hilário – Com. Miriti, AM

Chegamos bastante cansados à Comunidade Miriti ([10]), da família Evangelista de Souza depois de remar 101 km. Os Evangelistas permitiram que ocupássemos as instalações do templo (Assembleia de Deus). A gurizada se encantou com os filmetes de nossa amazônica jornada mostrados, no meu computador, pelo Mário.

Comunidade Miriti, AM
Comunidade Miriti, AM.

16.01.2013 – Partida para a Eirunepé  

Comunidade Miriti – Eirunepé, AM

Partimos cedo e nossa jornada foi abreviada por conta de mais um destes “arrombados” do Juruá. Logo que a operadora do celular deu sinal, liguei para o Tenente PM Ricardo pedindo apoio.

Comunidade Miriti – Eirunepé, AM

16 a 20.01.2013 – Eirunepé    

Remamos 85 km até Eirunepé ([11]) onde fomos recepcionados cordialmente pela Guarda Municipal, que nos acolheu e indicou-nos uma área para aportar temporariamente as embarcações, até que o Comandante da Polícia Militar, 1° Ten PM Ricardo chegasse com seus homens e viaturas. Deixamos nosso material nas instalações da PM e nos encaminharam ao Hotel Líder, onde fomos acomodados confortavelmente, no primeiro andar, pela sua querida gerente Eny Martins de Alencar que tratou-nos com muita cordialidade e simpatia. Depois do banho, fomos convidados gentilmente pela simpática Sr.ª Eny para almoçar, apesar do adiantado da hora. Logo em seguida apareceu o Venerável Francisco Djanir da Grande Loja Maçônica de Eirunepé e tentamos, juntos, localizar, em vão, o Prefeito.

Eirunepé, AM

Foi muito bom desfrutar novamente de instalações sanitárias descentes e tomar banho com água inodora e incolor. O Ir:. Francisco Djanir, Venerável da loja Maçônica Luz e Ordem do Juruá n° 14 veio até o hotel nos cumprimentar logo depois do almoço. Partimos em busca do jovem Prefeito Joaquim Bara Neto. Eu tinha ficado impressionado com os relatos dos ribeirinhos sobre ele e queria conhecê-lo pessoalmente. Conheci também nesse dia o Sr. Pedro, parente do TCel Pastor que se prontificou a nos ajudar no que precisássemos.

Prefeito Bara

“Ser Pobre e Humilde Não é Defeito,
Queremos Bara Para Prefeito”

Só conseguimos encontrar o Prefeito no dia seguinte e me surpreendi quando me apontaram um trabalhador carregando um carrinho de cimento que me garantiram se tratar do Prefeito Bara. O carismático líder estava no comando e na execução da operação “tapa-buracos”, da via que dá acesso à Universidade do Estado do Amazonas (UEA), preocupado em concluir a operação antes do início das aulas. No dia seguinte, encontramos novamente o Prefeito capitaneando um mutirão cívico-sanitário e dali fomos juntos a um restaurante mais reservado onde pude, finalmente, entrevistá-lo.

O Prefeito foi pescador e agricultor e tornou-se mais tarde Vereador de Eirunepé. Nas últimas eleições, resolveu candidatar-se Prefeito com o intuito de auxiliar o então Prefeito Dissica que tentava a reeleição. Sua intenção era captar parte dos votos do adversário de Dissica, mas o que aconteceu é que Bara acabou se elegendo por uma diferença de 396 votos.

O Prefeito cercou-se de um secretariado capacitado, competente e comprometido com a causa pública com o qual tivemos oportunidade de conviver nesses poucos dias. O Sr. Ribamar, Secretário da Cultura, ex-ativista da UNE, franqueou-nos as instalações da UEA para que pudéssemos atualizar nossas informações e proporcionou-nos uma visita prazerosa ao Lago dos Portugueses que banha a sua Cidade.

Agradecimentos   

Eirunepé foi a primeira Cidade do Juruá em que pudemos contar com o apoio irrestrito de representantes dos segmentos mais importantes da sociedade. Guardaremos, com muito carinho, os bons momentos que desfrutamos com cada um deles.

²Total Parcial:  Ipixuna ‒ Eirunepé =                     554,0 km

²Total Geral:    Foz do Breu ‒ Eirunepé =           1.283,5 km

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.03.2021 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Furo do Marçal: 06°49’07,5” S / 70°36’56,3” O.

[2]    Furo Cavado: 06°47’36,5” S / 70°32’16,2” O.

[3]    Vitórias amazônicas: antigamente denominadas vitórias régias.

[4]    Pau-de-novato: Tachigali paniculata Aubl.

[5]    Os troncos ocos das “Tachigalia” servem de moradia para as temíveis e ferocíssimas formigas conhecidas na Região Norte como “tachi” que pertencem ao gênero Pseudomyrmex. O botânico alemão Richard Moritz Schomburgk descreve seu primeiro contato com esses pequeninos seres, nos idos de 1844, na antiga Guiana Britânica: “Estava tentando quebrar um de seus galhos quando centenas desses insetos começaram a correr para fora de pequenas aberturas no tronco, me cobriram completamente e no auge da fúria dominaram minha pele com suas mandíbulas e, vomitando um líquido branco, enterraram seus terríveis ferrões em meus músculos. Devo confessar que depois disso um horror misterioso me invadia toda vez que cruzávamos com uma dessas árvores”. (SCHOMBURGK)

[6]    Hablocs: habitantes locais.

[7]    Residência do Sr. Francisco de Assis Cassiano: 06°47’15,0” S / 70°31’25,2” O.

[8]    São Francisco de Assis: nasceu em Assis, Itália, em 1182, filho de um mercador italiano e de uma nobre francesa. Em 1202, participou das lutas entre Perúgia e Assis e, mais tarde, contra a região da Púglia. A missão de Francisco nestes conflitos era eliminar os obstáculos inimigos que dificultavam a progressão das forças de Assis e construir os meios de transposição necessários para que suas tropas prosse­guissem sua marcha.

[9]    Comunidade Praia do Hilário: 06°44’20,4” S / 70°23’54,6” O.

[10]  Comunidade Miriti: 06°42’47,7” S / 70°05’59,1” O.

[11]  Eirunepé: 06°42’47,7” S / 70°05’59,1” O.

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