A Terceira Margem – Parte CXLV

Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte XXI  

Alto Juruá.

Francisco D’Ávila e Silva II 

O jornal “Gazeta de Petrópolis”, de 07.12.1904, apresenta um quadro bastante crítico provocado pelos desmandos peruanos que culminou com uma resposta militar por parte do governo brasileiro – o Conflito do Amônea – e uma diplomática com a assinatura do “Modus Vivendi”, no dia 12.07.1904.

Gazeta de Petrópolis, n° 140, Petrópolis, RJ
Quarta-feira, 07.12.1904 

Brasil ‒ Peru 

Telegrama de um nosso ilustre colega:

Manaus ‒ Os passageiros do vapor “José Júlio”, que chegou ontem, procedente do Alto Juruá, trouxeram-nos a notícia de um novo conflito entre brasileiros e os peruanos estabelecidos na Boca do Amônea desde fins de outubro de 1902. O fato; ao que parece, deu-se pela ignorância dos peruanos destacados na Foz do citado Rio, do “Modus Vivendi” ajustado entre o Brasil e o Peru, e em virtude do qual se estabeleceu que a zona central seria unicamente a do Alto Juruá e a do Rio Breu para o Sul, o que excluiu a jurisdição do Peru na região banhada pelo Amônea e na que se estende ao Norte do Rio Breu.

E tendo chegado ao conhecimento do Coronel Thaumaturgo de Azevedo, Prefeito do Alto Juruá, que, não obstante o acordo de 12 de Julho último, a guarnição peruana mantinha as suas posições em território brasileiro, onde punha dificuldades às embarcações que navegavam sob o pavilhão brasileiro, obrigando-as a içarem a bandeira peruana, cobrando, além disso, direitos sobre mercadorias aquela autoridade fez preparar uma Expedição de 50 homens, do 15° Batalhão de Infantaria, os quais, comandados pelo Capitão João Ávila ([1]), embarcaram no vapor “Contreiras”, que seguiu para a Boca do Amônea. Neste ponto o navio foi obrigado a parar, dirigindo-se para bordo um oficial que exigiu o pagamento de direitos. O Capitão João Ávila (6) ponderou ao oficial peruano que as exigências não tinham razão de ser, dado o acordo a que haviam chegado os Governos peruano e brasileiro, e que em virtude desse fato convidava a guarnição peruana a retirar-se, pois ia instalar uma repartição brasileira para exercer jurisdição fiscal na zona. Nada fazia prever que as razoáveis ponderações do militar brasileiro fossem mal cabidas ([2]), e foi com surpresa que a gente embarcada no “Contreiras” viu que de terra partiam as hostilidades, atirando-se contra o navio.

No dia imediato, 02 de novembro, o Capitão João Ávila (6) municiou a força e resolveu operar um desembarque, dirigindo-se para terra em embarcações miúdas. O Comandante peruano mandou abrir fogo contra a tropa brasileira, que então foi obrigada a defender-se, o que fez com denodo, assaltando a ferro frio as trincheiras adversárias, que não resistiram ao ataque, rendendo-se os peruanos.

Um soldado brasileiro caiu morto, e um inferior ([3]) foi gravemente ferido, tendo o Capitão Ávila verificado que a guarnição peruana perdera no combate nove homens. Os peruanos foram mandados para Iquitos, instalando-se a força brasileira na zona do conflito.

As trincheiras peruanas foram construídas nas propriedades da firma comercial do Pará, Mello & C., que teve grandes prejuízos. O Capitão Ávila comunicou o fato ao Cel Thaumaturgo, que mandou um contingente armado e bem municiado para reforçar a primeira Expedição.

Procuramos obter informações mais positivas no quartel do Comando do 1° Distrito Militar, mas aí nos foi dito que o Prefeito do Alto Juruá não havia mandado comunicação do fato pela mala que o “José Júlio” trouxera. (GAZETA DE PETRÓPOLIS, N° 140)

Gazeta de Petrópolis, 07.12.1904

Sem dúvida, um dos mais detalhados relatos do Conflito do Amônea foi o reportado pelo escritor Dr. José Moreira Brandão Castello Branco Sobrinho no artigo:

Peruanos na Região Acreana 

A 15.02.1902, foi criada pelo governo amazonense uma estação fiscal para a “Boca do Breu”, que, por se julgar conveniente, na ocasião, foi instalada abaixo, entre as confluências dos Rios Arara e Amônea, local em que se manteve, provavelmente, até princípio de 1903, por ter sido mandada retirar pelo governo federal, por ato de 18.06.1902, reiterado por um outro de 29 de dezembro do mesmo ano, a pedido do Ministro do Peru.

Neste ano, surgiu no Amônea, vindo do Rio Ucayali, via Tamaia-Amônea, simulando tratar de negócios de caucho, D. Manuel Pablo Vilanueva, que, na verdade, vinha colher dados geográficos acima do trecho levantado pelo Capitão Espinar e avisar aos seus patrícios a vinda de forças para amparar os desejos expansionistas do seu governo, conforme relatou numa Conferência pronunciada em Lima, no dia 27 de dezembro do mesmo ano.

Com efeito, a 21.10.1902, descendo pelo Rio Amônea, apareceu de maneira hostil no Seringal Minas Gerais, sito a Foz do referido Amônea, um destacamento peruano de 20 praças, apoiado por 40 ou 50 caucheiros, devidamente armados, comandados pelo Sargento Juan Bartel, e sob as ordens de Carlos Vasquez Quadros, antigo aviado de Efraim Ruiz, no Juruá, investido da função de Comissário.

Como se apresentassem de forma provocante, os brasileiros, ali residentes, os forçaram a retirar-se para o Lugar Saboeiro, no Rio Amônea, vizinho a fronteira atual com a República do Peru.

Luís Francisco de Melo, proprietário do Seringal Minas Gerais, considerando que cabia ao governo do Brasil, resolver o caso, conseguiu convencer aos brasileiros, a fim de evitar complicações internacionais, de que não deviam opor-se a essa invasão e os chamou, instalando-se o Destacamento, na Foz do Amônea, à margem esquerda deste Rio, no dia 15 de novembro do referido ano, onde também foi inaugurado um Posto Fiscal.

Em 1903, os peruanos deram a esse Posto a denominação de “Nuevo Iquitos”, título dado por Efraim Ruiz às palhoças da Boca do Breu, já extintas na ocasião.

Não sei se Luís de Melo arrependeu-se desse ato tão prejudicial aos interesses do Brasil: sendo certo, porém, que ia acarretar muitos vexames aos moradores da região, perturbações à navegação de barcos brasileiros, humilhação ao pavilhão nacional, inquietação e tribulação aos governos dos dois países, movimentação de tropas e navios de guerra, com grave dano para os cofres públicos do Brasil. Acompanhemos o desdobrar dos acontecimentos.

A 28.02.1903, os habitantes do Alto Juruá e do Rio Tejo, inclusive proprietário e comerciantes, vítimas de violências e constantes depredações por parte dos peruanos e, agora, ameaçados de cobrança de impostos pelo Peru, como acaba de lhes notificar o Comissário peruano Quadros, dirigiram-se ao governo do Estado do Amazonas por meio de um abaixo assinado, em que figuraram 131 assinaturas, reclamando contra a invasão de Força Armada do Exército peruano, em território reconhecidamente brasileiro.

Pormenorizando, diziam os reclamantes que há quase um ano vêm suportando essas arbitrariedades, capitaneadas por um Delegado do referido país, aguardando providências do governo brasileiro, no sentido de garantir-lhes a vida e a propriedade, esperança esta, porém, que se está desvanecendo, pois, os invasores continuam a hastear o seu pavilhão no território brasileiro e presentemente, baixaram um ato ordenando a arrecadação de dois décimos por estrada de seringueiras, além do pagamento do imposto de 15% “ad valorem” ([4]) sobre a exportação da borracha, perturbando, dessa maneira, a vida e o trabalho dos brasileiros.

Terminavam, pedindo ao referido governo prontas e enérgicas providências, a fim de serem expulsos os invasores, acrescentando que jamais se submeteriam ao domínio do Peru, ainda que tenham de lançar mãos de armas para defenderem um território que exploraram e ocuparam, e sempre foi brasileiro em virtude do Tratado de Limites entre o Brasil e o Peru. (SOBRINHO, 1959)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 04.02.2021 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.     

Bibliografia 

GAZETA DE PETRÓPOLIS, N° 140. Brasil ‒ Peru – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Gazeta de Petrópolis, n° 140, 07.12.1904     

SOBRINHO, Dr. José Moreira Brandão Castello Branco. Peruanos na Região Acreana – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Volume 244 – Departamento de Imprensa Nacional 1959.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    João Ávila: Francisco d’Ávila e Silva.

[2]    Cabidas: aceitas.

[3]    Inferior: Sargento.

[4]    “Ad valorem”: tributação imposta ao valor da mercadoria e não sobre seu peso, quantidade ou volume.

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