A Terceira Margem – Parte CVI

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LXXVI

Manicoré, AM

Descendo o Rio Madeira ‒ VII  

Estada em Manicoré, AM   

Só se ama as coisas que se conhece e entende… Só lutamos e defendemos o que amamos.
(Thiago de Mello)

Manicoré (02.01.2012) 

Nossa recepção em Manicoré foi bastante diferente de Humaitá. Imediatamente procurei entrar em contato com nossos amigos Policiais Militares (PM). A população ainda confunde as duas polícias, nos deram a orientação errada, e fomos parar na Polícia Civil. Finalmente, encontramos o Quartel da PM cujas instalações contrastavam muito com as de seus coirmãos da Civil. A situação de abandono das viaturas e do imóvel era chocante. É pena que os Policiais Militares que realmente enfrentam os meliantes colocando suas vidas em jogo não sejam valorizados como deveriam ser. A tônica tem sido instalações deterioradas, viaturas sucateadas, equipamentos ultrapassados e falta de material de comunicação. Os PM entraram em contato com o repórter investigativo Walter de Azevedo Filho, da Rede Amazônica – TV Amazonas/Manicoré, filiada à Rede Globo que imediatamente nos procurou, ficou de contatar as autoridades locais e marcou uma entrevista para as 07h30 na Praça da Matriz.

Eu e o João Paulo compramos uma coleira e uma corrente para nosso canino amigo, o “coxinha”, e nos instalamos no hotel dos irmãos “Macaxeira”.

Manicoré (03.01.2012)

Às 07h30, o Walter Filho iniciou as tomadas na Praça Matriz de Manicoré e depois no Rio Madeira para dar continuidade à matéria. Às dez horas, fomos conhecer a simpática Secretária de Cultura do Município, Professora Maria Madalena, que agendou uma entrevista para as 15 horas do dia seguinte. Às onze horas, fomos visitar o Tiro de Guerra 12-002, comandado pelo Capitão De Souza. Uma parceria que, realmente, deu certo entre o Exército Brasileiro e a Prefeitura Municipal, vamos repercutir uma matéria exclusiva do TG no próximo capítulo.

À noite, fomos até a casa do Prefeito interino de Manicoré, Lúcio Flávio, um jovem e entusiasta Engenheiro civil que há mais de duas décadas vem se dedicando às causas públicas. O Prefeito se interessou pelo nosso projeto e determinou que fosse colocada uma viatura de apoio à nossa disposição.

Manicoré (04.01.2012) 

Novamente o Walter Filho fez mais algumas tomadas para a matéria que irá ao ar na Rede Amazônica e, às quinze horas, realizamos uma entrevista com a Professora Maria Madalena. Fiquei impressionado com a exposição feita pela querida professora em relação à pesquisa que está fazendo a respeito da história de sua Cidade.

Como verdadeira historiadora, ela estendeu suas pesquisas documentais aos mais importantes acervos existentes na “terra brasilis”, confrontando estes dados com os relatos orais colhidos em diversas comunidades locais. A sua postura corajosa de enfrentar colocações tradicionais que não possuem o devido embasamento mostram que Maria Madalena é uma historiadora com a alma de uma repórter investigativa à caça da verdadeira história de sua gente e da sua terra. Estaremos, ansiosamente, aguardando a edição de seu livro. A postura da Professora me leva a querer fazer aqui uma pequena dilação histórica.

Viajantes de outrora, oriundos da Europa e Norte América, fossem naturalistas, pesquisadores, negociantes ou simplesmente turistas olhavam com desdém nossos amazônidas. Consideravam-se no topo da pirâmide da intelectualidade, achavam-se superiores aos nossos indígenas e caboclos e os olhavam com total desdém.

Volta e meia ouço pronunciamentos de autoridades, intelectuais e estudantes que, em breves visitas à região, assumem a mesma postura crítica de antanho. Por isso, acho cada vez mais importante nosso trabalho de divulgar as coisas e as gentes da Amazônia. Estes “intelectualoides” de araque não são capazes de absorver a sabedoria de um pescador entregue ao seu labor diário. Descrevi, encantado, no meu livro “Descendo o Rio Solimões” uma dessas passagens:

Seu Joaquim, leve e silenciosamente, afundava o remo na água e manobrava a canoa por entre vegetações aquáticas do cano do Mamirauá. Viu, ou sentiu, o leve movimento das águas e, sem pressa, pressentiu a direção seguida pelo cardume de aruanãs, ergueu o braço empunhando a haste e, num impulso rápido e preciso, lançou o arpão a alguns palmos à frente da leve ondulação na superfície (siriringa).

Seu Joaquim sabia que a “siriringa” era provocada pelo cardume que nadava próximo a superfície.

A haste fincou o bico de ferro em forma de flecha no corpo da aruanã, mantendo preso o formoso peixe às farpas do bico de ferro do arpão que se soltou da haste. O animal foi recolhido com a mesma destreza com que fora arpoado.

Novamente atento aos mais leves movimentos na água, ele se aproximou de um grande aglomerado de capim memeca com a intenção de pescar um tambaqui. Usando um “enganador”, um tosco caniço com um peso amarrado na ponta da linha, batia na água simulando a queda da “arati”, frutinha que é o objeto de desejo do saboroso peixe.

Na outra mão usava, num igualmente tosco caniço, a frágil “arati” como isca. Se usasse a delicada “arati” para atrair o peixe, ela se desprenderia do anzol.

Não demorou muito para que um grande tambaqui fosse puxado para a canoa pelo seu Joaquim. (Desafiando o Rio-mar ‒ Descendo o Solimões)

As poesias sempre me arrebataram desde a mais tenra idade. Lia encantado Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães, Manoel Bandeira, Mario Quintana, Vinícius de Morais e tantos outros artesãos das palavras conhecidos pela maioria dos brasileiros.

Nas minhas pesquisas e andanças pela misteriosa e encantadora Amazônia, fui garimpando, com humildade, o fruto da inspiração dos poetas da selva e maravilhado descobri um Thiago de Mello a quem tive o privilégio e a honra de conhecer pessoalmente.

Palmilhei, extasiado, estrofes encantadas de poetas amazônidas como Aldísio Gomes Filgueiras, Almino Álvares Affonso, Antônio Mavignier de Castro, Arnaldo Garcez Teixeira, Barreto Sobrinho, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, Ernesto da Silva Penafort, Hemetério Cabrinha, Joaquim de Alencar e Silva, Jonas Fontenelle da Silva, Jorge de Lima, José Joaquim da Luz, Luiz Augusto de Lima Ruas, Sérgio Luiz Pereira, cujas produções fiz questão de reproduzir em meus livros.

Sempre busquei romances que tenham como pano de fundo a história, aprecio uma boa leitura, mas gosto de aprender ao mesmo tempo. Descobri, em Óbidos, “Os Dias Recurvos” de Ildefonso Guimarães onde ele relata magistralmente a Revolta que culminou com a Batalha de Itacoatiara. Deixo estas pequenas divagações para chamar a atenção daqueles “intelectualoides” que, vindo de outras plagas para esta bendita terra das águas, se acham mais capazes que a boa gente daqui.

Meu escritor preferido foi e sempre será Euclides da Cunha. Não só pela sua invulgar sagacidade e magia no trato com as letras, mas também, pelo exemplo de vida e dedicação à pátria.

Subindo o Purus para realizar uma missão, essencialmente técnica, de demarcação de fronteiras, o grande Euclides, sem perder o foco de seu principal objetivo, consegue, graças à sua visão holística invulgar, fazer comentários de cunho antropológico, aspectos do relevo, solo, fauna, flora, clima da região e sobre o caráter divagante do Rio Purus, baseado na concepção do “ciclo vital”.

Durante a viagem teve, ainda, o cuidado de recolher amostras de fósseis e rochas, posteriormente encaminhadas ao Museu do Pará (atualmente Emílio Goeldi). Depois de chefiar a “Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus”, seu inquebrantável apego pela justiça determinou que voltasse os olhos para a questão da demarcação das fronteiras entre a Bolívia e o Peru. Assumindo, apaixonadamente, partido da Bolívia, tornando-se o “Cavaleiro andante da Bolívia contra o Peru”, conforme ele mesmo se definia.

Muitos talvez não compreendam que, numa época de cerrado utilitarismo, alguém se demasie em tanto esforço numa advocacia romântica e cavalheiresca, sem visar um lucro, ou interesse indiretos. Tanto pior para os que não o compreendam. Falham à primeira condição prática, positiva e utilitária da vida, que é aformoseá-la… (Euclides da Cunha)

Nas minhas eternas perambulações intelectuais amazônicas, descobri o primor literário de Raymundo Moraes que nos reporta ao grande Euclides da Cunha de quem era grande admirador e discípulo sem, contudo, se deixar influenciar ou perder seu modo próprio de dizer as coisas, de interpretar as matizes telúricas carregadas de amazônico nativismo. Seus líricos relatos, carregados de emoção, são flagrantes que vivenciou e paisagens que impregnaram sua alma durante quase trinta anos. São crônicas de quem apreendeu com as águas e as gentes, com os seres da floresta, os ventos e as chuvas.

O escritor Raymundo Moraes interrompeu cedo os estudos, havia concluído apenas o curso primário, para acompanhar Miguel Quintiliano, prático de navios no Rio Madeira. O fascínio e a magia de navegar pelas artérias vivas da hileia fizeram-no seguir a carreira do pai, chegando a Comandante dos “gaiolas”. As infindas jornadas despertaram seu amor pela leitura. Autodidata de invulgar inteligência e sensibilidade aliou o conhecimento científico e literário adquirido com as experiências que recolhia e anotava nas suas viagens. Raymundo Moraes é um dos melhores exemplos que existe para se caracterizar a diferença entre a cultura e a sabedoria. A falta de estudo não o impediu, absolutamente, de visualizar as belezas que o cercavam e de ser capaz de reportá-las com a sagacidade de um sábio. Raymundo teve, como mestres, a natureza, as águas e o Grande Arquiteto. Infelizmente, nossos “intelectualoides” de hoje mais parecem experimentos de laboratório que, de suas gaiolas, apartados das vivências mundanas, são capazes apenas de reproduzir aquilo que já leram, ouviram ou que alguém já constatou. Serão eles, um dia, capazes de entender e respeitar a sabedoria dessa maravilhosa gente da terra das águas independentemente de sua posição geográfica ou grau de escolaridade?

Manicoré (05.01.2012)    

Neste dia, tivemos a oportunidade de conhecer o amigo gaúcho Valter que nos levou até a sua propriedade onde tem uma bela horta e cultiva diversas espécies de frutíferas e fizemos uma visita à COPEMA que comercializa produtos extrativistas como a castanha, banana e o óleo de copaíba.

Manicoré (06.01.2012)    

Fomos almoçar no Tiro de Guerra onde o pessoal aproveitou para comemorar o meu aniversário. À tarde, fomos visitar o banho do Ademir para descontrair um pouco e, à noite, comemoramos, novamente, o meu aniversário com o João Paulo e a tripulação do Piquiatuba.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 10.12.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.      

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].