A Terceira Margem – Parte LXXXVI

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LV

Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ VII 

No dia 07.01.1878, navegamos bem com vapor e vela. As refeições estavam um pouco melhores, e, se comparadas aos dias anteriores, podia-se dizer que eram passáveis. Carne de porco, café servido em baldes de madeira, maçã assada, tomates e biscoitos constituíam o menu, mas, a muitas pessoas repugnava servir-se de pratos mal lavados e, mesmo assim, não era fácil conseguir-se um pouco de cada iguaria, tão rapidamente eram elas consumidas. Distribuíram-se cântaros e cada passageiro recebeu uma ração de água, de mais ou menos um litro por dia. Grande parte do precioso líquido era empregada no asseio corporal, pois não nos era possível usar sabonete em água salgada. […]

BARBADOS 

Já estava alto o Sol, na manhã de 17.01.1878, quando fomos despertados por terrível confusão de vozes estranhas, mesmo por baixo de nosso beliche, e pelo entrechocar de remos e de botes batendo uns contra os outros e o costado do navio. Não nos foi difícil perceber, pela vigia, que o navio se movimentava lentamente para dentro do Porto de Bridgetown, seguido de vasta frota de pequenas embarcações, pilotadas por barqueiros escuros, que gritavam, brigavam e vomitavam impropérios pior que os carroceiros de Nova York, convencidos de que no “Mercedita”, com seus 220 passageiros, tinham descoberto uma mina.

Quando o navio atracou e deitamos o olhar para terra, a vista com que deparamos era verdadeiramente encantadora e custava crer que apenas 15 dias antes tremíamos de frio dentro de pesados sobretudos. Ainda de bordo, avistávamos coqueiros esguios e numerosos outros espécimes, para nós desconhecidos, da flora tropical.

No costado do vapor, fomos cercados por barqueiros que nos ofereciam frutas de todas as espécies e se propunham a nos conduzir para terra. Moleques tisnados ([1]) nos divertiam mergulhando a profundidades incríveis, à cata de pequenas moedas que lhes atirávamos. É fácil de se avaliar que tenha sido enorme a quantidade de fruta consumida por todos nós, após duas longas semanas de jejum.

Não sabíamos se teríamos permissão para desembarcar, mas alguns passageiros resolveram a questão facilmente deslizando por cordas até os botes que os esperavam lá embaixo. Vendo a inutilidade da proibição, os oficiais mandaram baixar a escada do portaló e todos nós nos dirigimos para a praia tão depressa quanto os barqueiros nos puderam conduzir. Tão fortemente nos havíamos habituado a nos locomover a bordo, que causava hilaridade verem-se passageiros desembarcar gingando, no trapiche, qual marinheiros. A primeira coisa que saltava à vista do recém-chegado a Bridgetown daquela época era que a grande maioria da população se constituía de indivíduos de cor. As ruas eram quase todas tortas ou em linhas quebradas, muito estreitas e só as mais importantes tinham passeios laterais cuja largura variava de 40 a 60 cm. A fachada das casas ficava tão rente do meio-fio que os beirais cobriam o passeio.

Uma das peculiaridades desta Ilha está que sua formação é coralínea e não vulcânica. O coral fornece pavimentação resistente e durável como o asfalto para as ruas, que se apresentam rigorosamente niveladas. Constitui ele, também, excelente material para construções finas. As casas dos naturais são quase todas de madeira. Não vimos um único tijolo em toda a Ilha. A temperatura é aí deliciosa e pequenas as variações durante o decurso do ano. Ao que nos disseram, no verão a coluna de mercúrio raramente excede 26°C à sombra. Viam-se, frequentemente, pelas ruas, carroças tiradas por jumentos do tamanho de um potrinho de dois meses. Às vezes, um desses animaizinhos passava trotando ligeiro com quatro pessoas no carrinho.

A Ilha tem cerca de 32 km de comprimento por 22 km de largura e o formato aproximado de um presunto. Sua população era então de 165 mil almas, das quais apenas 13 mil brancos. A língua aí falada é o inglês, mas o isolamento em que vive o povo propiciou um dialeto que ingleses e norte-americanos às vezes encontram dificuldade em compreender. Os naturais se apresentavam muito bem vestidos em alvíssimos ternos brancos e chapéus de palha, mas eram piores que judeus para negociar. Pediam um shilling por passageiro para transportá-los à terra, mas, ao chegar ao trapiche, exigiam dois. E era, às vezes, necessário que se perdesse a calma ameaçando de espancá-los ou atirá-los para que deixassem de nos seguir por toda a Cidade na esperança de nos extorquir seis shillings por um servicinho qualquer, sem valor.

Dois de nossos engenheiros, indagando do melhor hotel, tiveram indicação da Casa de Albion. Depois de procurá-la em vão pela Cidade, informados de que ela ficava a 8 km de distância, tomaram um carro que os levasse até lá. Durante duas horas, viajaram pelos arredores – que por sinal eram tão interessantes que o tempo se passou rapidamente – e finalmente chegaram ao hotel que, com grande surpresa, souberam distar apenas 2 minutos a pé, do ponto de onde partiram. Posto que o estabelecimento não tivesse pretensões a grande hotel, nem mesmo fosse o melhor de Bridgetown, a Casa de Albion representava então, para nós, uma miniatura do Waldorf-Astoria. Podermos sentar a uma mesa limpa, repleta de deliciosos pratos – costeletas de carneiro, café, pepino em fatias, bananas, laranjas, tudo isso regado com deliciosa cerveja inglesa e rematado por finíssimos charutos Havana – e, acima de tudo, podermos repousar à noite em camas limpas e firmes, parecia-nos o auge da felicidade. Gastamos grande parte do tempo passeando e apreciando os panoramas.

Despertaram-nos vivo interesse os extensos canaviais que cobrem quase toda a Ilha e a grande variedade de árvores frutíferas e de sombra, muitas das quais inteiramente desconhecidas para nós. De fato, parece-nos mesmo que encontramos em Barbados maior variedade de frutas que durante toda nossa viagem pelo Amazonas e Madeira. Coqueiros esguios, com seus frutos tentadores, forneciam água clara e fresca mesmo no mais cálido dia; fruta-pão, favos de mel, mangas, limas, limões, laranjas, abacaxis e inúmeras outras frutas, sob o toldo de luxuriante folhagem agitada por deliciosa brisa marítima, faziam com que o novo cenário, onde nos achávamos apenas duas semanas após nossa partida dos Estados Unidos, parecesse a obra-prima de algum extraordinário prestidigitador.

Na Casa do Gelo, estabelecimento misto onde havia hotel, restaurante, comércio por atacado e a varejo, e armazéns de suprimentos, encontramos várias pessoas do “Mercedita”, inclusive muitos engenheiros, todos tomados do evidente desejo de reparar, o mais rapidamente possível, os pecados de omissão involuntariamente cometidos a bordo e se fortificarem, a fim de enfrentar semelhantes situações, de futuro. Não poucos indivíduos da Expedição poderiam ser classificados como “calejados”, relíquias de uma geração quase extinta que viveu nos tormentosos dias da Guerra de Secessão e adquiriram a longa prática de que dispunham, na construção das Estradas de Ferro da costa do Pacífico, quando o protótipo do Engenheiro era um misto de construtor de estradas, Vaqueiro e Guerreiro. Não é, portanto, de admirar que o historiador consciencioso se veja forçado a registrar que muitos dos que encontrou na Casa do Gelo estavam visivelmente “tocados” e ainda pediam ao taberneiro mais outra rodada.

Vários de nós fomos convidados para o “Baile da Dignidade”, festa típica em Barbados. Infelizmente não pudemos a ele comparecer, mas, pelo que nos disseram os que foram, não perdemos muito. Em certa praia denominada Hastings, situada a cerca de 5 km da Cidade, onde atualmente se encontra um grande hotel moderno, muitos dos nossos se entregaram ao que se poderia chamar um banho de mar de luxo, entre a praia principal da Ilha e o recife coralíneo que a contorna, pois tiveram de pagar oito pence por pessoa para toalha e sabão.

Na manhã de 18.01.1878, os hóspedes do Albion foram despertados pelo hoteleiro, que fez colocar ao lado de cada cama uma mesinha com café, torradas, frutas e charutos finos. Quando entrou em nosso quarto, percebendo que estávamos acordados, anunciou “a primeira refeição é às 9 horas” e desapareceu. Naquele dia, nosso tempo foi inteiramente tomado em passeios pela Ilha, magníficas refeições e banhos de mar.

Em resultado da festa da noite anterior, alguns dos nossos companheiros estavam de ressaca, mas só três tiveram necessidade de alguém que olhasse por eles. Dois que se dirigiram para o “Mercedita”, em uma catraia, estavam em tal estado que, quando um caiu no mar, o outro não teve força para puxá-lo e o barqueiro, com medo de fazer virar a embarcação, se fosse auxiliá-lo, preferiu prosseguir, enquanto o passageiro, agarrando o náufrago pelo colarinho, o rebocava para bordo.

Quando a vítima chegou ao vapor, já estava quase restabelecida do pileque, mas seu “rebocador”, logo que se pilhou a bordo, pôs-se a comemorar seu feito notável disparando o revólver a esmo pela vigia da cabina, a ponto de espalhar pânico entre os nativos que, em numerosas embarcações, se comprimiam no costado do navio. Felizmente esse divertimento de mau gosto foi interrompido antes que ocasionasse consequências graves.

Na Casa do Gelo, nossos companheiros saboreavam iguarias raras: sopa de tartaruga e peixe-voador. Havia então na Ilha numeroso corpo do exército inglês que servira na campanha dos Achantis. À noite fomos até o quartel onde se achava a tropa, para ouvir um concerto ao ar livre pela banda militar, composta de 40 figuras.

Os passeios que fizéramos foram tão agradáveis que dificilmente poderíamos fazer outros melhores. Entretanto a luz clara da lua cheia, a vegetação luxuriante, os uniformes vistosos da soldadesca, a aura perfumosa que então soprava, e, sobre tudo isso, a marcialidade da música inglesa, produziram tão esplêndido efeito que mal podemos descrever.

Tínhamos sido avisados para que embarcássemos às primeiras horas da noite; contudo os que se deixaram ficar na praia até 22h00 não correram nenhum risco, porque um passageiro precavido, tendo encontrado o capitão Jackaway bêbedo como uma raposa, não teve dúvida em trancá-lo em lugar conveniente, perto do trapiche. Depois disso, tomamos um bote a seis remos e com o capitão cuidadosamente acomodado, rumamos para o navio.

Os escuros remadores possuíam belas vozes e pareciam ter organizado um repertório de canções patrióticas com a finalidade patente de despertar a generosidade do passageiro, qualquer que fosse a nacionalidade, que tivesse a má sorte de cair no barco. Durante o percurso, entoaram a “Marcha através da Geórgia”, e, quando já nos aproximávamos do “Mercedita”, cantaram outra canção que parecia ter sido composta por eles mesmos, e cujo estribilho dizia:

Salve, salve a bandeira azul listada, / A bandeira que nos deu a liberdade.

Às onze horas daquela noite, o barco levantou âncora e, embora pesarosos, despedimo-nos de Barbados. Nossa permanência na Ilha fora a mais agradável possível. Depois que a deixamos, temo-nos perguntado se o lugar é de fato tão agradável quanto nos pareceu, ou se a impressão que nos causou foi, em grande parte, devida ao contraste que apresentou com as privações por que anteriormente passamos.

Sem dúvida o efeito que sua natureza exuberante causou sobre nós, só pode ser comparado à visão que embeveceu o olhar maravilhado de [Jacopo] Peri às portas do Paraíso; e Bridgetown, com seus mergulhadores bronzeados, suas carrocinhas tiradas por jumentos, suas flores e suas frutas deliciosas, permanecerá sempre na memória de todos nós. […]

CONTINUANDO A VIAGEM NO “MERCEDITA” 

De Barbados ao Pará, poucos incidentes dignos de nota nos apresentou a viagem. Teria mesmo sido de­liciosa se as refeições não continuassem a ser motivo de constantes irritações e queixas. O calor era tão agradável que quase todos os passageiros transpor­tavam para o tombadilho seus colchões e aí passa­vam a noite. As únicas novidades que nos chamaram a atenção foram os cardumes de peixes-voadores e, à noite, a fosforescência das águas. (CRAIG)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 12.11.2020 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

CRAIG, Neville B.. Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma Expedição (1947) – Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1947.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Tisnados: bronzeados.

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