A Terceira Margem – Parte LXXVII

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XLVI

Forte Príncipe da Beira (Itamaraty)

Real Forte do Príncipe da Beira – XIV

Pequena História do Forte

O escritor Manoel Rodrigues Ferreira, “Nas Selvas Amazônicas, 1961”, faz um interessante históri­co do Real Forte Príncipe da Beira.

Há cerca de cem anos, o Barão de Melgaço, que teve em mãos o arquivo do governo de Mato Grosso, escreveu uma história do Real Forte do Príncipe da Beira, que passaremos a reproduzir em seguida, na íntegra, sem o interromper uma vez sequer. Eis, pois, a história do Real Forte do Príncipe da Beira, tal qual a escreveu o Barão de Melgaço:

Foi erigido para substituir a arruinada Fortaleza da Conceição ou Bragança, situada dois quilômetros abaixo. A primeira pedra foi lançada aos 20.06.1776. É um quadrado fortificado pelo sistema de Vauban, revestido de cantaria, e destinado a montar 56 peças de artilharia. É fundado em terreno sólido, e o único que aí não se alaga nas grandes cheias do Guaporé, que neste lugar se elevam a 45 palmos ([1]). Esta construção era uma empresa colossal, em relação aos pouquíssimos recursos da Capitania [de Mato Grosso], em pessoal, material e dinheiro. Foi preciso mandar vir de fora operários, ferro, ferramentas e outros materiais, sem excetuar a cal. Deste gênero [cal] vieram do Pará perto de mil alqueires; veio depois de Cuiabá, da Povoação de Albuquerque, e afinal do Registro do Jauru, por ter-se achado, não longe, pedra calcária.

O Governador Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, que concebera o projeto desta gigantesca obra e fez os maiores esforços para realizá-la, não dissimulava as dificuldades que tinha a superar. Em ofício de 30.11.1778, dirigido ao Ministro, dizia:

Na construção do Forte do Príncipe da Beira […] continuo em fazer prosseguir com todo aquele maior vigor e diligência de que se fazem suscetíveis os escassos meios deste País; aonde, além do dinheiro que é o indispensável instrumento com que se aplainam as dificuldades e adiantam-se semelhantes trabalhos, faltam ainda verdadeiramente vários outros recursos necessários, como sejam os competentes artífices e operários, que se deveriam empregar, de maneira que, sobre alguns remetidos do Pará, depois das mais excessivas delongas e despesas, fui obrigado, por último, a mandar vir um mais considerável número deles, que hão de ser escravos do Rio de Janeiro, onde a referida encomenda, sobre conta da Real Fazenda, se fez há perto de um ano; mas, antes dos fins do corrente de 1779, não poderá chegar a esta Capital [Vila Bela], sendo fácil de calcular por esta demora os obstáculos que quase insuperavelmente se oferecem nestas tão desprovidas como remotas regiões, apesar do grosso cabedal que tudo custa, e por maiores que sejam os esforços de zelo e economia.

Em ofício, de 04.01.1785, relata Cáceres:

O novo Forte do Príncipe da Beira, em cuja regular Fortificação se tem sempre trabalhado desde 1776, ao menos com 200 pessoas, daí para cima, exatamente mantidas e pagas de seus vencimentos até hoje, e combinando-se os mesmos esforços com os diminutos meios e faculdades de que só posso prevalecer-me, de alguma forma se poderia comparar aos de um pigmeu que, com os seus pequenos braços, se propusesse a abarcar algum vasto e mal seguro edifício, no meio dos desertos, sustentando-o e preservando-o das muitas ruínas e desamparos a que precisamente se achasse exposto em semelhantes termos…

O andamento dessas obras afrouxou com a retirada de Luís de Albuquerque, em 1790, para Portugal. Os Generais seus sucessores tiveram de repartir a sua atenção e os poucos recursos de que dispunham, para outros pontos da fronteira de Mato Grosso, e ainda, pela do Baixo Paraguai. O Sargento-mor José Manoel Cardoso da Cunha, mandado ao Forte em 1797, com um reforço de cento e tantos homens, escrevia ao Governador da Capitania de Mato Grosso:

Para se concluir tudo isto se carece de muita cal e muitos obreiros, de mil para cima que, com os que aqui se acham, me parece que nem em 10 anos se acabam as referidas obras.

Em 1824 recaiu em um velho miliciano, José Francisco da Cunha, que, desde havia muito, morava com sua família junto ao Forte. Era um homem de cor e quase analfabeto: não lhe faltavam porém zelo pelo serviço e conhecimento do estado das cousas, como se vê dos seguintes trechos da sua tosca correspondência, que patenteia o mísero estado do Forte. Em 28.02.1824, ele dizia:

Eu vou participar a V. Ex.ª o miserável estado, em que encontrei o armamento desta repartição, que indo mandá-lo limpar, fui achar uns cheios de terra até a boca […] há 11 para 12 anos que se não limpa o armamento de mão […] os aquartelamentos todos descobertos e com falta de ferragens e fechaduras […] Estes (os soldados) todos vivem desgostosos, sem perceberem cousa alguma.

Em 12.03.1830, tornava a escrever:

Será possível, Ex.mo Sr., que estes miseráveis um ano e dois se hão de vestir com quatro oitavas? […] também vou por meio destas, com a maior submissão e respeito, pedir-lhe que me clareie se há alguma ordem para se destruir este Presídio ([2]), pois me vejo cercado de licenças sem que me mandem gente alguma […] mas eu lembro que, há 55 anos, que giro nesta fronteira e me não é oculto o modo por que eram tratados meus antigos predecessores, e que era o brinco dos antigos predecessores de V. Ex.ª este importante Forte, onde se gastaram uns poucos de milhões […]

Eu, Exmo. Sr., sem guarnição alguma, como já propus na presença do Exm° Sr. Governador das armas, por uma relação, a Guarnição que tenho; e esta Guarnição grita, os soldados de 2ª linha choram, o hospital geme, sem eu ter com que os possa curar. As doenças de circunstâncias, eu sou que administro o modo de as curar por não haver cirurgião

A quem se há de dizer, Exm° Sr., que há quatro anos que não vem uma libra de açúcar, nem um frasco de cachaça, e não falemos na farinha, ao menos para atender a esses miseráveis […] já não vem uma onça de remédio, já não vem um meio de sola, já não vem uma libra de sebo […]. Eu não sei, Exmo Sr. o que pretendem sobre isto […]. Com respeito e submissão, vou prostrar-me aos benignos pés de V. Ex.ª, pedir-lhe o meu rendimento, pois há 8 anos, Exm° Sr., a trabalhar com o meu filho para poder subjugar este presídio, sem termos recebido um só vintém!

Falecendo este Comandante em 1830, sucedeu-lhe interinamente seu filho, Capitão de milícias. Este foi submetido por um Alferes do Exército, contra quem se levantou a guarnição, e bem assim contra outro alferes, que foi nomeado Comandante em 1831. Alguns Presidentes deram providências que foram ineficazes por faltarem os meios indispensáveis para acudir às mais necessárias precisões daquele estabelecimento.

Em 1864, o Presidente, General Albino de Carvalho, incumbiu o exame do estado do Forte a um oficial, de cujo relatório consta que:

estão-se desmoronando as muralhas, sobre as quais desde há muito cresce mato e até arvoredo corpulento. O madeiramento dos edifícios, dos reparos de artilharia, da parlamenta e armamento, destruído pelos cupins. Os artigos de metal, carcomidos de ferrugem, tendo sido grande porção de ferragem dos reparos das portas, da palamenta [necessários ao serviço de uma boca-de-fogo], etc., arrancada e vendida aos Bolivianos, a troco de víveres, sem excetuar os gatos de ferro que prendiam a obra de cantaria. O equipamento de artilharia e infantaria inservível: não há um cartucho de artilharia, nem com que fazê-lo; só existem oito libras de pólvora; não há bandeira; só existe uma pequena canoa de montaria pertencente a uma mulher.

A guarnição compõe-se de um Alferes, um Cadete servindo de Sargento e 10 soldados, dos quais 4 estão destacados nas Pedras e 3 no Itonamas, ficando 3 para o serviço do Forte. A Povoação, outrora considerável [mil pelo menos] de mestiços e índios, que moravam nas imediações, está reduzida a poucos indivíduos, que entre todos mal chegam a plantar um alqueire de milho, raros pés de mandioca e nenhum feijão; a semente do algodão até perdeu-se, e alguns tecidos, de que necessitam, são comprados dos índios Mojos, donde tiram também o necessário para o sustento.

Terminava dessa maneira, em 1864, a história escrita à altura desse mesmo ano, pelo Barão de Melgaço. Nessa história, vê-se que o Forte nunca chegou a ficar completamente terminado. Devemos subentender, entretanto, que nunca chegou a ficar completamente equipado e talvez faltando alguma obra complementar, sem maior importância.

Tanto isto é verdade que o historiador Pizarro, escrevendo cerca de 1820 sua “Memória Histórica”, disse do Real Forte do Príncipe da Beira:

Foi construído todo este edifício com pedras de cantaria; e a muralha, escarpada até a cortina, tem de altura 25 palmos ([3]), com um portão majestoso na frente do Norte, sobre o qual, fabricado de abóbada, e com pedra lavrada por canteiro, se colocou a referida inscrição.

Defronte deste portão está um rebelim ([4]) com ponte levadiça, e um famoso fosso, cisterna, casa de pólvora subterrânea, hospitais, armazéns, quartéis para o Governador, e para a guarnição, prisões, e uma Capela decente, sem que algum desses edifícios se veja de fora das muralhas. Logo que se concluiu a obra, passou a habitá-la, no dia 31.08.1783, o Comandante, que era do Forte antigo da Conceição, com todo Trem Militar, e Fazenda de El Rei.

É, porém para lamentar que, construído esse edifício, assaz útil, a tanto custo, e não havendo além disso outro semelhante, à exceção do de São José do Macapá, na Capitania do Pará, de momento a momento se vá arruinando, por se apoderarem os morcegos de todas as casas, e tão abundantemente que, principiando a sair delas uma hora antes da entrada do Sol, o encobrem, como formando uma nuvem densa, pelo espaço dilatado da sua carreira, até as campanhas de Espanha, donde voltam de madrugada.

Dista de Vila Bela 110 léguas em linha reta e pelo Rio 190, por muitas voltas que faz em toda essa extensão. Ocupam este lugar 477 habitan­tes; e aqui termina o Distrito da Cidade do Mato Grosso, dividido pelo Rio Paraguai.

Em 1820, Pizarro afirmava que o Real Forte do Príncipe da Beira ficara concluído em 1783, sendo que, no dia 31 de agosto desse mesmo ano, o Comandante do antigo Forte da Conceição passava a residir nele. (FERREIRA, 1961)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 30.10.2020 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

FERREIRA, Manoel Rodrigues. Nas Selvas Amazônicas – Brasil – São Paulo, SP – Editora Gráfica Biblos Ltdª, 1961.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    45 palmos: 9,9 m.

[2]    Presídio: praça de guerra.

[3]    25 palmos: 5,5 m.

[4]    Rebelim: construção externa de duas faces, que formam ângulo saliente, para defesa.

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