Justiça reconhece interferência nos modos de vida dos indígenas afetados por Belo Monte e ordena mudanças

Decisão atende pedidos do MPF em ação judicial de 2015 que apontou ação etnocida da Norte Energia

Arte: Ascom/MPF/AM

A Justiça Federal em Altamira (PA) reconheceu que as medidas de compensação e mitigação socioambiental promovidas pela Norte Energia desde o início das obras da usina de Belo Monte provocaram interferências significativas “nos traços culturais, modo de vida e uso das terras pelos povos indígenas, causando relevante instabilidade nas relações intra e interétnicas”.

A decisão foi enviada às partes na última sexta (13) e ordena mudanças na execução do Plano Básico Ambiental Indígena de Belo Monte, atendendo parcialmente aos pedidos feitos pelo Ministério Público Federal (MPF) em ação judicial iniciada em 2015, em que apontou ação etnocida dos responsáveis pelo projeto da hidrelétrica.

Além das mudanças, a liminar ordena que a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) apresentem no prazo de 90 dias um cronograma para conclusão dos processos de regularização fundiária das terras indígenas Paquiçamba, do povo Juruna Yudjá, e Cachoeira Seca, do povo Arara.

As mudanças ordenadas pela decisão judicial são no sentido de garantir participação e controle social por parte dos povos indígenas na execução das ações de mitigação e compensação socioambiental de Belo Monte. Para isso, a Norte Energia passa a ser responsável pela execução do Programa Médio Xingu, deverá instalar um Conselho Deliberativo, um Comitê Indígena e um Plano de Gestão, com presença de representantes dos nove povos indígenas afetados e da Funai.

Também será criada uma Comissão Externa de Acompanhamento e Avaliação, a ser composta pelo MPF, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e representantes de organizações não indígenas da sociedade civil que atuem na região do médio Xingu. Essa comissão deverá elaborar relatórios periódicos sobre o andamento das ações socioambientais de Belo Monte.

A decisão judicial foi emitida após tentativa de negociação em que chegou a ser constituída uma Câmara de Conciliação, com a participação do governo federal, da empresa Norte Energia, dos indígenas e do MPF. Mas não houve concordância das partes em implementar as mudanças necessárias.

Para a Justiça, a situação dos povos atingidos por Belo Monte é de vulnerabilidade e vem se agravando pela demora em se corrigir os rumos – incorretos – dos projetos de compensação e mitigação. A liminar afirma que “as ações executadas até o presente momento revelaram-se insuficientes” e por isso são necessárias medidas urgentes.

A decisão atual é apenas parcial, em regime de urgência, atendendo a alguns dos pedidos que o MPF fez na ação, mas os outros ainda serão apreciados, o que pode levar a auditoria do componente indígena do licenciamento de Belo Monte, assim como estudos complementares e perícias antropológicas para mensurar os danos aos povos indígenas afetados.

Danos – Durante a tramitação do processo judicial o MPF comprovou, com base inclusive nas informações técnicas e manifestações oficiais da Funai, que, apesar de destinarem-se a estabilizar a região para o início das obras da hidrelétrica, as ações emergenciais antecipatórias promovidas pelo governo federal e pela Norte Energia “causaram diversos conflitos e danos aos povos indígenas”

A decisão lista uma série de danos: “desunião dos povos indígenas, com o surgimento de novas aldeias, a fim de se obter a verba de R$ 30 mil/mês, paga por aldeia; instalações sanitárias e equipamentos públicos inadequados nas novas aldeias; mudanças nos hábitos alimentares dos indígenas, provocadas pelo sistema de ‘listas’; aumento no consumo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas; subnutrição das crianças indígenas em virtude do abandono da agricultura de subsistência; aumento de doenças crônicas (diabetes, obesidade, pressão arterial); aumento de doenças sexualmente transmissíveis e de casos de prostituição entre índias, estimulado pela aproximação constante da população indígena do centro urbano, em momento de expansão populacional; facilidade de acesso dos índios à cidade, implicando em sobrecarga da capacidade de atendimento da Casa de Saúde Indígena; aumento no consumo de produtos industrializados (refrigerantes, biscoitos, salgadinhos) e, consequentemente, do lixo produzido nas aldeias; inadequação das casas construídas pela NESA; doação de bens de manutenção inviável pelos índios (caminhonetes, embarcações a motor; motosserras etc.)”

Para a Justiça “as ações antecipatórias parecem ter agravado os prognósticos dos estudos de impacto ambiental, provocando efeitos deletérios contrários à geração de renda, ao fortalecimento das atividades e conhecimentos tradicionais, ao protagonismo indígena, à manutenção do ecossistema em equilíbrio e à fixação dos membros da comunidade nas aldeias”.

A liminar chama atenção também para a ausência de qualquer manifestação por parte da Funai no processo de licenciamento de Belo Monte após a concessão da Licença de Operação pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, que ocorreu em 26 de novembro de 2015. O órgão indigenista, diz a decisão, demonstrou incapacidade para “fazer frente ao incremento de demandas relacionadas à fiscalização do componente indígena de Belo Monte”

Entenda o caso – No total, a ação do MPF faz 16 pedidos liminares à Justiça para mudanças na condução de Belo Monte, incluindo estudos complementares para os novos impactos causados pelas ilegalidades do licenciamento e a obrigação de arcar com medidas de reparação por perdas sociais e culturais, assim como pelos abalos causados aos povos indígenas impactados. A Justiça pode determinar perícias antropológicas em todas etnias afetadas para determinar que tipo de reparação é necessária para cada povo.

A ação judicial foi concluída após longa investigação em que estiveram envolvidos procuradores da República e peritos do MPF em várias áreas. No total, o processo tem 50 volumes de documentos e dados que comprovam os efeitos trágicos de Belo Monte sobre os povos indígenas afetados e demonstram como, em vez de ser protegidos, eles foram violados em suas tradições culturais e enfrentam a possibilidade concreta de desaparecimento, pela forma como o licenciamento ambiental foi conduzido, mesmo que tais riscos e danos já estivessem indicados no Eia-Rima e expressamente mencionados no licenciamento.

Para o MPF, a ação etnocida suportada pelos nove povos indígenas afetados por Belo Monte foi causada, de um lado, pela falta de rigor do governo no licenciamento da usina: sob o manto do interesse nacional, as obrigações foram postergadas ou modificadas de acordo com a conveniência da empresa responsável pelo empreendimento, a Norte Energia S.A. Por outro lado, o próprio governo, ao deixar de cumprir as suas obrigações – como fortalecer a Funai e o Ibama e retirar invasores de terras indígenas – contribuiu diretamente para a destruição cultural das etnias.

Processo nº 0003017-82.2015.4.01.3903 – Justiça Federal em Altamira (PA)

Íntegra da decisão

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