A Terceira Margem – Parte I

Amigos e amigas, muito especiais, volta e meia, me perguntam curiosos à respeito da tal “Terceira Margem” que menciono sistematicamente em meus apontamentos.

Minha querida “irmãzinha” Quelen Cassini Guedes, ex-aluna do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) e colega de meu filho caçula João Paulo, hoje professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), ao final de uma palestra on-line para o Curso de Relações Internacionais, indagou-me, também, a respeito. A explicação que dei, na oportunidade, foi curta, o tempo era escasso e não me permitia maiores divagações.

Façamos um breve recuo cronológico até os rincões de Bernardino de Campos (SP) quando um jovem, recém alfabetizado, devorava a coleção de Monteiro Lobato sentado nos galhos de uma enorme mangueira no quintal de sua casa.

Monteiro Lobato

O homem, guardião de toda beleza, é o sacerdote para quem o mundo é um templo grandioso onde a sua verdadeira religião é o culto do enigma indecifrável da existência: a Natureza. (Fritz Kahn)

Fritz Kahn com seus pais em Berlim

Aos nove anos de idade, ganhei, de minha madrinha, a “Enciclopédia da Natureza”, de Fritz Kahn, que despertou na alma daquele infante curioso a vontade de conhecer os mistérios e as leis da natureza e do universo. Li com extrema avidez o Volume I (O Firmamento, A Terra, A Vida), o Volume II (O Vegetal, O Inseto, O Animal) e o Volume III (O Animal, O Homem, O Átomo), cada vez mais maravilhado ao constatar que as imutáveis leis da natureza não se aplicavam somente ao nosso planeta mas à todo universo.

Enciclopédia da Natureza

Aprendi com meu pai, quando acampávamos, o nome de cada planta e a identificar as espécies de pássaros, à distância, pelo bater das asas e pelas curiosas e organizadas formações que os bandos usavam para consumir menos energia ao percorrer longas distâncias… Quanto mais conhecia as peculiaridades do reino animal e vegetal mais crescia meu amor e respeito por todos seres vivos.

Iniciação nos Mistérios Teosóficos

No final da década de sessenta, o então aluno Reis, do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA), perambulava pelos sebos de Porto Alegre à procura de sua literatura teosófica preferida: Helena Petrovna Blavatsky, Éliphas Lévi, Papus (Gérard Anaclet Vincent Encausse); de romances iniciáticos: Edward Bulwer-Lytton, Jorge Enrique Adoum e obras literárias: Herman Karl Hesse, Lobsang Rampa (Cyril Hoskins), Gibran Khalil Gibran, dentre outros.

Nessas leituras um tema, em especial, despertou a atenção daquele jovem inquisitivo ‒ o Registro Akáshico, a Memória Ancestral da Humanidade. Foi então que tomei conhecimento, também, da teoria de Carl Gustav Jung denominada “Inconsciente Coletivo” ‒ um reservatório de imagens latentes, primordiais, ou melhor, arquétipos, que cada ser humano herda de seus antepassados. Entusiasmado com Jung e reconhecendo na sua teoria, apartada apenas de uma sutil semântica, os mesmos fundamentos do Registro Akáshico tibetano continuei pesquisando até chegar à teoria da “Sincronicidade”. Na “Sincronicidade” de Jung o significado dos eventos deve ser profundo, não apenas meras coincidências, algo que amplie nossa consciência mostrando-nos um novo caminho a ser percorrido, um novo objetivo a ser alcançado. Tive a oportunidade de encontrar os chamados arquétipos de Jung, que representam os mais profundos sentimentos místicos da consciência universal, mais tarde, nas minhas infindas jornadas amazônicas, em diversas pinturas rupestres e petróglifos.

Paixão pela Amazônia

9° BECnst – Cuiabá, MT (BR-070 e BR-364)

Nos idos de 1978/79, como Tenente de Engenharia, chefe da equipe de terraplenagem do 9° Batalhão de Engenharia de Construção (9° BECnst), participei da restauração da BR-364 (Cuiabá, MT – Porto Velho, RO) e da construção da BR-070 (Cuiabá – Cáceres). O expediente iniciava às 06h00 e se estendia até às 22h00, de segunda a domingo, além de dois serviços semanais com ronda aos canteiros de obras às 24h00, 02h00 e 04h00. Uma carga horária semanal exaustiva de 128 horas plenamente compen­sada pelo resultado obtido – uma estrada asfaltada de pri­meira categoria. Os recursos em equipamentos e pessoal eram mais do que suficientes para o cumprimento da missão antes do prazo estipulado e dentro dos mais altos padrões técnicos. No 9° BEC, era recém-casado, sem filhos, e podia concentrar todo meu esforço no trabalho, não raras vezes, nos fins de semana, minha esposa Neiva me acompanhava até o trecho para que eu pudesse desfrutar, ainda que por breves momentos, de sua companhia.

9° BECnst (Cuiabá, MT)

Foi meu primeiro “caso” com a Amazônia Brasileira.

6° BECnst – Boa Vista , RR (Abonari, AM)

Este “caso” transformou-se em “amor” quando retornei, voluntariamente, à frente de trabalho, em 1982/83, como Capitão, comandante da 1ª Companhia de Engenharia de Construção do 6° Batalhão de Engenharia de Construção – 6° BECnst (RR), participando da conserva da BR–174 (Manaus – Boa Vista). No 6° BEC, a realidade era bastante diversa do 9° BEC, a Companhia estava sediada no Abonari (AM) com a responsabilidade de manter o tráfego da BR-174 de Manaus (AM) até o Rio Jauaperi (RR), um trecho de 423 km, 120 km dos quais dentro da reserva Waimiri-Atroari, única via de acesso terrestre ao então Território Federal de Roraima.

A Companhia ocupava derruídas e precárias instalações no Km 202, da Br-174, que graças ao apoio da Mineração Taboca e Eletronorte (os recursos do Ministério dos Transportes eram ínfimos), fomos aos poucos incrementando melhorias. Construímos um Centro de Lazer para os familiares dos militares destacados, alojamento para praças solteiros, escolinha comunitária, instalamos um segundo gerador e refizemos toda a instalação elétrica da Companhia. Instalamos uma Central de TV, com gravações de uma rede de Manaus, que retransmitia seu sinal para toda Companhia e arredores, e para um telão instalado no “Clubinho” onde as famílias se reuniam para confraternizar. As acariquaras, a palha de ubim, o cimento, a geladeira e a televisão do Centro de Lazer (Clubinho) foram doadas pela Mineração Taboca. O atendimento médico proporcionado pelo Dr. Leônidas Sales Sampaio e depois pelo Dr. Alexandre Augusto Stehling era de alto padrão e estendido às aldeias dos Waimiri-Atroari com que mantínhamos um salutar contato. Alguns casos mais delicados, lembro-me, da esposa do “Elza”, um dos filhos do Tuxaua Comprido, que levou a esposa grávida de nove meses para ser atendida pelo Dr. Sampaio. O “Elza” e a esposa permaneceram mais de uma semana na sede da Companhia onde ele fazia questão de nos ajudar nas lides do rancho. Perambulando pela Companhia ele ficou encantado com nossa criação de porcos e prometi-lhe que doaria à sua aldeia um cachaço e três leitoas de uns 4 meses, o que foi feito logo depois do nascimento de sua filha Sônia. Na época, um dos líderes dos WA era o Tuxaua Viana, inteligente, empreendedor e muito amigo dos militares a quem entreguei, em várias oportunidades, livros didáticos. O Viana era um aficionado pela Matemática e resolvíamos, juntos, alguns exercícios atendendo às suas solicitações. Nas minhas inspeções ao trecho, eu visitava cada uma das aldeias localizadas ao longo da estrada e fazia um salutar comércio com as lideranças, trocando a farinha que eles produziam por gêneros diversos e pequenos animais que criávamos na Companhia, ensinando-lhes os procedimentos corretos que deveriam adotar para mantê-los.

6° BECnst (Boa Vista, RR)

Os Doutores Leônidas Sales Sampaio e Alexandre Augusto Stehling, valorosos oficiais médico R/2 aceitaram de bom grado a incumbência de vacinar todos os WA da reserva, cuja área corresponde a um quarto do estado de Santa Catarina. Muitas vezes eles tinham que arrastar ou carregar nas costas a canoa, que os apoiava, através das pedras do Rio Abonari e do Rio Alalau e afluentes para chegar às aldeias mais distantes. Era um trabalho voluntário e eles não tinham nenhuma obrigação de fazê-lo. A vacinação intensiva dos WA iniciou-se com o Dr. Sampaio e não com o “Programa WA”. Recebíamos atenciosamente, por diversas vezes, na sede da Companhia, os nativos para atendimento médico e odontológico. O relacionamento era extremamente amigável e éramos muito bem recebidos nas Aldeias, que visitava frequentemente acompanhado de minha esposa Neiva, minhas filhas, Danielle de três meses e Vanessa de um ano e meio.

23ª Bda Inf Sl, Marabá (PA) e CIGS (AM)

Desde os tempos de aluno do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) que acalentei o sonho de um dia me tornar um Guerreiro de Selva. Fui inspirado pelo então Capitão Cav Francisco de Paula Barcellos da Silva, chefe da seção de Educação Física e instrutor do Curso de Infantaria do CMPA. Nos exercícios de campo, eu e os demais alunos, ouvíamos atentos seus relatos sobre o Curso e sonhávamos um dia, quem sabe, ostentar o “Brevê da Onça”. Por diversas vezes (17) tive minha matrícula indeferida. Por vezes a legislação impunha que o militar estivesse servindo no Comando Militar da Amazônia e eu estava servindo nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul; em outras priorizava os oficiais mais antigos e eu era moderno; outras aos mais modernos e eu era antigo… Quando passei a chefia do 1° Centro de Telemática, em Porto Alegre, RS, em 1999, consegui, a pedido, ser transferido para a 23ª Brigada de Infantaria de Selva (23ª Bda Inf Sl), Marabá, PA, com um único objetivo, tentar, pela última vez, concretizar meu ideal.

Treinei exaustivamente durante sete meses e, apesar do Comandante da 23ª Bda Inf Sl, General Bda Edson Sá Rocha, ter dado parecer negativo ao meu requerimento, e embora eu afirmasse, no mesmo, que iria para a reserva logo após a conclusão do curso, condições que, normalmente, invalidariam de imediato a proposta, tive minha matrícula aprovada. Havia uma determinação para que o efetivo mínimo para o funcionamento do Curso fosse de vinte oficiais e esse número não estava sendo alcançado. Foram chamados seis capitães com EsAO, um Major da Polícia Militar do Estado do Amazonas, dois oficiais, de outros Comandos Militares que tinham sido classificados no CMA atingindo um total de dezenove estagiários. Graças à falta de outros voluntários, portanto, é que consegui que meu requerimento fosse aprovado. Foi uma das experiências mais gratificantes de toda a carreira. A superação de limites aliada a um companheirismo sem precedentes gravou, de maneira indelével na minha memória, a imagem daqueles indômitos camaradas.

A passagem mais marcante de todo o Curso foi, sem dúvida, a de ver o então Tenente Coronel André Thiago Salgado Chrispim carregando duas mochilas de 25 kg durante quase todo o curso para impedir que um colega, que tinha sofrido um grave problema na coluna, viesse a ser desligado. Na formatura de conclusão do curso, como xerife do grupamento, indiquei, o Chrispim para fazer a “Oração do Guerreiro de Selva”. Por ocasião da brevetação, o General Luiz Gonzaga Schroeder LESSA, meu ex-Diretor de Informática e então Comandante Militar da Amazônia (CMA), insistiu para que eu assumisse o compromisso de levar ao povo do Rio Grande do Sul uma visão mais realista das questões que afligem a Região Amazônica. Desde o ano de 2000 que viemos cumprindo este acordo computando até o dia de hoje mais de 600 palestras realizadas.

CIGS (Manaus, AM)

O “amor” converteu-se em “paixão” quando conclui o Curso de Operações de Selva em novembro de 1999.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 16.07.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com

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