A Terceira Margem – Parte IV

O Despertar de um Canoeiro

Projeto-aventura Desafiando o Rio-mar

9° B E Cmb (1987/89) – Aquidauana, MS

Até hoje agradeço ao Grande Arquiteto e ao Ministro Leônidas, minha transferência compulsória para Aquidauana que me permitiu estabelecer novas amizades e robustecer antigas. Tivemos, sem sombra, de dúvida um grande responsável pelo incrível ambiente de trabalho que reinava no 9° B E Cmb e a salutar integração com a sociedade aquidauanense que frequentava o Clube Militar, sem quaisquer restrições. Os civis participavam ativamente de diversos eventos que eram coordenados em conjunto com o Batalhão. A grande figura humana, o artífice de todo este processo foi, sem sombra de dúvida, o General de Divisão Nelson Borges Molinari, na época Coronel Comandante do 9° B E Cmb com quem assumimos uma eterna e impagável dívida de gratidão.

Quando me apresentei, em dezembro de 1986, em Aquidauana achei que tendo sido preso e deportado pelo então Ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves o Comandante do Batalhão não me veria com bons olhos. O então Coronel Molinari imediatamente desfez esta imagem convidando-nos para passar o Natal em sua residência.

Rio Aquidauana, MS

O Rio Aquidauana e o Taquarussu me seduziram e navegava extasiado curtindo as paisagens. No final de 1987, participei, pela primeira vez, de uma prova de canoagem, desta feita do “1° Santa Delfina”, uma descida de 60 Km desde Palmeiras, Distrito de Dois Irmãos do Buriti, até a Ponte Velha-Prainha, em Santo Anastácio, MS, cidade vizinha de Aquidauana.

Cheguei em terceiro lugar na prova, mas perdi uma colocação, passando para 4° lugar, por ter desviado de uma das cachoeiras, à pedido da esposa. Quando o resultado foi divulgado pela imprensa local fui estimulado por empresários da região (Chevrolet, Skoll e Farmácia Princesa do Sul) a me tornar canoísta profissional e posteriormente, graças a isso, sagrar-me campeão Mato-grossense, por antecipação, em 1989. Em 1988, tinha participado, como oficial de engenharia, da “Operação Guavira” deixando de participar de três provas do Circuito de Canoagem perdendo, em virtude disso, o campeonato.

Aquidauana, 1989 (1º lugar nas 3 categorias)

Volta e meia, engarupado na memória das minhas lembranças mais recentes, gineteando ilusões rompo as barreiras temporais, ultrapasso fronteiras e vislumbro, por fim, a fantástica serra de Maracaju e além dela minha cara e saudosa Aquidauana, debruçada à margem direita do homônimo Rio, onde como Capitão e Major de Engenharia tive a ventura de integrar, os quadros do glorioso 9° Batalhão de Engenharia de Combate (9° B E Cmb) ‒ Batalhão Carlos Camisão. Deus escreve certo por linhas tortas, um atropelamento, uma punição e uma transferência a bem da disciplina mostraram-me uma nova rota, a da canoagem esportiva e um consequente maior apego, ainda, à natureza.

Projeto Desafiando o Rio-mar – Treinamento

Em 2008, depois da medicina esgotar todos os recursos possíveis para recuperar a saúde da esposa que sofrera, no dia 08.01.2004, uma AVC hemorragia, agravada mais tarde por uma imperícia médica acobertada por seus comparsas profissionais civis e militares do HGPA (hoje HMAPA), concluí que havia chegado o momento de apelar à intervenção divina, de abandonar, ainda que tempora­riamente, o púlpito e abraçar a causa amazônica com mais determinação. Desejava ver de perto novamente aquelas paragens, sua natureza pujante, sentir as necessidades dos povos da floresta e perquirir sua riqueza cultural.

Queria trazer a realidade Amazônica sem mistificações, sem a mácula dos derrotistas, contrapondo-me às notícias vinculadas pela mídia nacional e estrangeira muitas vezes sensacionalista e irresponsável, denunciando não só as agressões ao meio ambiente e aos povos da floresta, mas trazendo a público os projetos que estão sendo desenvolvidos pelos governos regionais e instituições federais e que servem de modelo para outros países. Para colocar isto em prática decidi aliar minha vivência amazônica e a canoagem.

Irmão Guaíba, Minha Raia

Ama as águas! Não te afastes delas! Aprende o que te ensinam! Ah, sim! Ele queria aprender delas, queria escutar a sua mensagem. Quem entendesse a água e seus arcanos – assim lhe parecia – compreenderia muita coisa ainda, muitos mistérios, todos os mistérios. (HESSE)

Sidarta (Hermann Hesse)

O Rio Guaíba me acolheu, desde o início, com carinho e embalado por suas vagas, nem sempre ternas, naveguei por quase dois anos solitariamente. Foram mais de 2.000 horas usufruindo das suas belezas naturais e enfrentando todo tipo de obstáculos. Com humildade aprendi com as águas, com os ventos, comecei a entender suas mensagens sutis observando as nuvens, os pássaros e os insetos. Aprendi a reconhecer minha capacidade e minhas limitações, a fazer companhia a mim mesmo e me alegrar com isso, a refletir sobre minhas ações e omissões. A declamar poesias enquanto navego, educando a respiração enquanto pico a voga.

Meu pai, carioca de nascimento e gaúcho de coração, me presenteou, no meu aniversário de 7 anos, com a 1ª edição do livro “De fogão em fogão” (1958) em que o Jayme Caetano Braun ensinava, através de sua gaudéria poesia, a beleza da vida campeira, a altivez dos gaúchos e as maravilhas da natureza local.

De Fogão em Fogão (Jayme Caetano Braum)

Desde então as poesias do “Payador” tem me acompanhado nas minhas rotas infindas e me inspirou para colocar no logotipo do projeto a imagem do “Galo de Rinha”, minha poesia preferida, mas me pareceu que nos dias de hoje, o símbolo podia ser mal interpretado pelos talibãs da seita do “politicamente correto”. O símbolo mostraria a força do “guasca vestido de penas” e não seria, jamais, uma apologia às brigas de rinha. Identifico-me, por demais, com a última estrofe do “Galo de Rinha” e acho que esta poesia do “Andarengo” tem uma energia muito grande que eu gostaria de ter usado no projeto.

Porque na rinha da vida

Já me bastava um empate!

Pois cheguei no arremate

Batido, sem bico e torto

E só me resta o conforto

Como a ti, galo de rinha

Que se alguém dobrar-me a espinha

Há de ser depois de morto!

Depois de pesar os prós e os contras, aderimos à imagem do quero-quero, o Sentinela dos Pampas, que também é lembrado na poesia do inspirado poeta.

O próprio Deus Rio-grandense

Que te deu esse penacho

E a parada de índio macho

Que tão soberano ostentas,

Fez o pampa onde sentas

Das revoadas interminas,

Que fez o rancho e as chinas

A tapera e o umbu,

Não fez outro como tu,

Velho guardião das campinas!

Foram intermináveis horas de aprendizado com o Rio e sempre, em cada momento, senti a presença de uma “Força” mágica me conduzindo e apoiando. Não raras vezes, depois de remar de 40 a 50 km, de 5 a 7 horas, encontrava energia para, nos últimos 10, acelerar o ritmo procurando melhorar o tempo. Era como se a “Força” canalizasse os ventos para a popa do caiaque e me impulsionasse! Sentia uma estranha energia fluindo do casco para o convés, me envolvendo, e afastando de mim o cansaço e o desânimo. Como posso temer algo se “Ele” está comigo e, em última instância, se alguma fatalidade acontecesse, acho que seria uma boa morte e em boas companhias.

Ao realizar minhas viagens solitárias pelos ermos dos sem fim, consigo entender os mistérios da minha alma, desvendar os segredos mais ocultos de meu ser, afogar minhas mágoas nas amigas águas e compreender o incompreensível de meu cotidiano. Amada mãe Terra navegando pelos caminhos que andam, afasto-me do mundo real e mergulho na tua essência mística, deixo o limitado pragmatismo de lado e penetro na tua fluidez infinita. Meu nível de consciência se altera, afastando de mim o cotidiano insano e permito que as ondas me conduzam a uma nova realidade materializada pelas cálidas vagas que me embalam. Uma estranha solidão invade meu íntimo e a onírica experiência faz com que assumas uma nova forma de vida.

De repente, se estabelece uma relação única entre nós e, tu e eu, somos um só. Sinto como se regredíssemos ao útero da mãe Terra, um morno e profundo silêncio nos envolve e ao longe avistamos, por trás da bruma que se desfaz – a Terceira Margem. Nas tuas águas, meu amigo e irmão, afogo meus desesperares, meus desencantos, meus amores sofridos. No aconchegante embalo de tuas ondas encontrei forças para perseverar e enfrentar minhas angústias e meu desânimo. Tua imensidão me abraça e conforta, tuas tranquilas águas me acalmam e me aproximam da Terceira Margem.

Tuas águas revoltas mostram a rota da humildade que devo seguir e a névoa que te cobre nas manhãs de inverno trazem sinais de esperança nos horizontes que aos poucos se revelam.

Bibliografia

BRAUN, Jayme Caetano. De Fogão em Fogão – Brasil – Porto Alegre, RS – Editora Sulina, 1958.

 HESSE, Hermann. Sidarta – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Ed. Record, 2000.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 21.07.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;     

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS); 
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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