Vale do Javari, no Amazonas, vive dias de apreensão com chegada da Covid-19 e aumento de invasões

Lideranças relatam a presença de pescadores transitando nas proximidades da Base de Proteção Etnoambiental do rio Curuçá, que protege indígenas isolados.

Aldeia Lobo, do povo Matsés (Foto: Elaíze Farias/Amazônia Real)

Manaus (AM) – Isolados por conta própria nas aldeias, os povos indígenas do Vale do Javari se sentem duplamente ameaçados: pela Covid-19 e pelas invasões de seus territórios, que não cessaram mesmo em meio à pandemia. Localizada no estado do Amazonas, fronteira com Peru e Colômbia, a Terra Indígena Vale do Javari é a segunda maior do Brasil e é frequentemente alvo de garimpeiros, pescadores, caçadores, narcotraficantes e organizações religiosas. A população indígena desta região sofre com falta de atendimento médico e de outras ações de proteção do governo brasileiro, registrando altas taxas de doenças como hepatite e malária.

“As medidas de restrição de viagens e a permanência nas aldeias podem ser inúteis se a Funai e as autoridades brasileiras não tomarem medidas de proteção e de fiscalização no território. Não basta apenas ficarmos nas aldeias”, alerta o líder indígena Higson Dias, presidente da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja).

Pescador morreu no Curuçá

Nos últimos dias, lideranças do Vale do Javari relataram à Amazônia Real a existência de focos de invasão de pescadores, caçadores e garimpeiros em diferentes calhas de rios que cortam a região, entre eles os rios Jaquirana, Curuçá, Ituí e Curuena.

Os indígenas também relataram que um pescador foi visto durante a pandemia do coronavírus transitando nas proximidades da Base de Proteção Etnoambiental do rio Curuçá – uma das quatro bases de monitoramento de indígenas isolados do Vale do Javari – com sintomas de gripe e tosse. Ele teria sido levado para um hospital do município de Benjamin Constant, no Alto Rio Solimões, a 17,90 quilômetros de Atalaia do Norte, onde está localizada a TI Vale do Javari.

“Liguei hoje para as aldeias. Todos que ‘subiram’ [viajaram para as aldeias] estão bem, sem sintomas até agora, sem resfriado ou tossindo. Mas um parente falou que morreu um pescador em Benjamin Constant, que passou pelos [rios] Javari e Curuçá. E há outro caso de filhos de pescadores [não indígenas] que morreram e enterraram lá. Tem que investigar isso. O governo tem que ver se não vai dar problema e levar perigo”, disse Marcos Pepe, do povo Matsés, à Amazônia Real no início desta semana. Marcos disse ainda que monitora diariamente as 11 aldeias Matsés.

O líder indígena Clovis Rufino, do povo Marubo, reiterou a informação sobre o pescador. Segundo o indígena, o pescador, que estava irregularmente no território, teria passado “com muita dor e muita gripe” pela Base do Curuçá, levantando a suspeita de que ele poderia estar infectado pelo novo coronavírus.

“Esse pescador foi visto por outros parentes numa área aqui perto da nossa aldeia. O Javari é trânsito livre para invasores. Agora ficou pior, porque temos o medo de nos aproximarmos e pegarmos a doença deles”, disse Rufino, que está na aldeia São Sebastião, e falou com a reportagem da Amazônia Real por meio de um telefone público (orelhão).

Amazônia Real procurou o secretário de saúde do município de Benjamin Constant, identificado como Enfermeiro Lelsoney, para saber a respeito do pescador que teria sido atendido em hospital do município, mas ele não deu retorno ao pedido de informação.

As centenas de rios que cortam a Terra Indígena Vale do Javari servem como marcos territoriais para as cerca de 6 mil pessoas de povos de recente contato e de grupos isolados sem nomeação específica, como Marubo, Matsés (Mayoruna), Matís, Kulina Pano, Tüküna (Kanamari), Tsohom Djapá e Korubo. O contexto de ameaça territorial, social e sanitário coloca os indígenas do território em risco elevado para a Covid-19. Assim, os indígenas assumiram a responsabilidade de manter uma vigilância diária. Eles montaram, inclusive, uma operação de comunicação com uso de radiofonia e telefones públicos (orelhão) instalados em algumas aldeias.

Um documento elaborado pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) no início desta semana para ser encaminhado à Fundação Nacional do Índio (Funai) alerta para a situação extremamente vulnerável dos povos daquela região. “Se chegar [o coronavírus] nas nossas aldeias, pode acabar com os povos indígenas do Javari”, resume o coordenador geral da organização, Paulo Marubo, em entrevista à Amazônia Real.

“No contexto de pandemia, a T.I Vale do Javari, por ser foco permanente de invasões de pescadores e caçadores, presença de garimpo próximos das aldeias, áreas fronteiriças ou pela presença de grupos isolados (povos livres), é considerada uma área vulnerável”, diz o documento.

A Univaja alerta também que “lideranças indígenas, preocupadas, relatam a grande movimentação de colombianos, peruanos e brasileiros que costumam pescar e caçar próximo às aldeias”.

Segundo a Univaja, relatos vindos das aldeias afirmam que um avião chegou a sobrevoar a região e pode ter pousado próximo das aldeias. “Por se tratar de um local com a presença constante do narcotráfico, é importante que ocorra uma investigação por parte dos órgãos competentes. Também, há grupos religiosos conhecidos como Israelitas do Peru realizando cultos em aldeias indígenas.”

A Univaja afirma ainda que, no rio Jaquirana, área de acesso às aldeias do povo Matsés, não existe um bloqueio permanente na fronteira, possibilitando o contágio na região, pois os indígenas viajam para a cidade de Angamos, Estado de Loreto (Peru) para realizar compras de produtos alimentícios, gasolina e para visitar a seus familiares.

Segundo a Univaja, na aldeia Jarinal, os povos Tyowük-Dyapa (Tsohom Djapá), de recente contato, e Tüküna, encontram-se permanentemente ameaçados pela presença de garimpo e entrada e saída de missionários que costumam visitar a aldeia.

O documento informa também que aldeias localizadas no rio Itacoaí e Médio Javari denunciam que aumentou o ingresso de pescadores ilegais. “Moradores da aldeia Massapê, do povo Tüküna, viram vestígios de pescadores nos lagos localizados acima da boca do rio Branco. Este rio é trânsito dos povos Matis e Tüküna”, diz trecho.

O risco para os povos de recente contato

As lideranças indígenas do Vale do Javari alertam que o monitoramento e a fiscalização territorial são fundamentais para preservar, sobretudo, os indígenas isolados, como o grupo Korubo contatado pela Funai em 2019.

“Se um possível contágio atingir nas aldeias Matis o povo Korubo pode ser afetado e dizimado”, denuncia o documento da Univaja. Há diversos grupos de isolados na região do Jandiatuba, cabeceira do rio Branco, do Barrigudo e do Jutaí.

Paulo Marubo afirmou à Amazônia Real que o documento relatando o contexto territorial fará parte de um plano de contingência mais abrangente para cobrar das autoridades brasileiras diferentes frentes de atuação: desde a atenção médica, caso a doença chegue nas aldeias, até a busca por insumos de apoio às comunidades.

“Como vamos lidar com o parente caso ele seja contaminado? Onde vamos levar esse parente? Se chegar a contaminação, se pegar, onde esse parente vai ficar? Vai permanecer na aldeia? Tem estratégias?”, questiona Marubo. “Antigamente era assim: se um parente pegasse gripe, ele não chegava na aldeia. Tinha uma roça próxima e ele passava um ou dois meses lá até passar a gripe.”

Outro planejamento a ser feito é quanto à sustentabilidade dos indígenas neste período para que eles possam permanecer nas comunidades, sem necessidade de retorno à cidade. “Estamos correndo atrás de coisas que estão precisando mais. Se a gente for mandar somente cesta básica, eles vão criar dependência”, afirma.

O panorama da pandemia na região  

A cidade referência da Terra Indígena Vale do Javari é Atalaia do Norte (a 1.138 de Manaus), onde vive grande parte dos indígenas que se deslocam até a sede do município para estudar ou ter acesso a atendimento de saúde. Com o início da pandemia, ocorreu um retorno em massa de grande parte destes moradores para as aldeias, na esperança de evitar os impactos da pandemia. Segundo dados da Univaja, pelo menos 700 indígenas decidiram retornar para as aldeias.

O líder e vereador César Mayoruna (PSL) contou à Amazônia Real que, com o início da pandemia, 45 indígenas de seu povo que moravam na sede de Atalaia do Norte voltaram para as aldeias com o propósito de evitar o contágio da doença. Mas ele também se disse assustado com informações sobre infecção de indígenas que continuaram na cidade.

“Continuam entrando pescadores nas terras indígenas de Vale do Javari. Até agora a doença não chegou nas aldeias. Mas não sabemos como será daqui por diante, porque quem está aqui na cidade está pegando. A Funai não está preocupada, até agora não fez nada aqui para proteger as aldeias. Se está fazendo algo, não sabemos o que é, porque não nos comunicam”, protesta César Mayoruna.

Segundo a liderança, há cinco indígenas do Vale do Javari que tiveram testes confirmados para Covid-19. Conforme César, três são do povo Matsés/Mayoruna que moram na zona urbana de Atalaia do Norte, sendo que um deles é funcionário do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Vale do Javari. Outros dois são um indígena do povo Marubo e um ancião do povo Matís que está na Casa de Saúde Indígena (Casai) no município de Tabatinga, no Alto Rio Solimões que havia sido encaminhado para tratamento de outra doença. Essas informações, porém, divergem dos dados oficiais dos órgãos governamentais.

A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculado ao Ministério da Saúde, solicitando esclarecimentos sobre as notificações de Covid-19 no Vale do Javari, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.

De acordo com o boletim epidemiológico da Sesai, publicado no site do órgão, o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Vale do Javari registrou até o momento apenas um caso confirmado de Covid-19. O boletim não informa a etnia do paciente, mas diz que ele está com a infecção ativa, “que ainda não completou 14 dias em isolamento domiciliar, a contar da data de início dos sintomas, ou, em caso de internação hospitalar, que ainda não recebeu alta médica”.

Já o Boletim Epidemiológico da Prefeitura de Atalaia do Norte informou nesta quinta (28) que a cidade tem oito casos confirmados de Covid-19 – sendo dois em indígenas – mas também não foi informada a etnia destes pacientes.

Em entrevista à agência, a liderança e vereador Marcelo Make Turu Matís (PSDB) afirmou que a informação sobre o ancião Matís infectado chegou a ele na segunda-feira (25). “Soube há pouco, estamos muito tristes nesse momento”, afirmou. Segundo Make Matís, há outros cinco Matís na Casai de Tabatinga.

Make contou que, quando a notícia da pandemia chegou à Atalaia do Norte, ele ajudou na viabilização no retorno de 49 indígenas de sua etnia para as quatro aldeias Matís, à margem do rio Branco, em uma viagem de barco que levou seis dias. Antes do retorno, os Matís ficaram em quarentena e foram vacinados em ações do Dsei Vale do Javari. Durante a viagem pelos rios, Make e outros Matís avistaram presença de invasores.

“Quando subi nessa viagem às aldeias, vi alguns pescadores [invasores]. Nosso canoão era grande, ficou difícil parar para ver. Na volta, conversei com a Funai, procurei alguns indígenas que trabalham lá, falei que a Funai não está se preocupando para ter fiscalização nesse momento de Covid-19. Estão entrando muito [invasores]. Os funcionários me falam que não tem apoio logístico, mas a Funai representa o povos indígenas aqui do Javari. Tem que fazer articulação e ação com a Polícia Federal, com os parceiros, com o movimento indígena”, diz.

“Entre os Matís que estão nas aldeias não tem caso de Covid-19, estão bem isolados, mas a gente se preocupa, porque falam que é uma doença muito perigosa”, acrescenta ele, que retornou à sede de Atalaia do Norte.

Uma das principais preocupações dele e de outras lideranças ouvidas pela Amazônia Real é com a necessidade de equipamentos de pesca, caça e implementos agrícolas para os roçados. “Eles estão na quarentena. Vamos ver daqui até setembro, como vai ficar. Nesse momento eles não estão manifestando vontade de descer para a cidade. Nós estamos preocupados de como a gente vai mandar cartucho para caçar e [outros] materiais que eles precisam”, disse.

No boletim divulgado neste dia 28 de maio, a Sesai informa que há 1.119 casos confirmados entre indígenas no Brasil. Destes, 775 são na Amazônia Legal, incluindo Maranhão. A taxa mais elevada é registrada pelo Dsei Alto Solimões, também no Amazonas, com 319 casos e 19 óbitos. O principal município do Alto Solimões é Tabatinga, que até nesta quinta-feira (28) registrava 760 casos de Covid-19, segundo o boletim da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), do governo do Amazonas. Tabatinga fica a 32,47 quilômetros de Atalaia do Norte.

A taxa de Covid-19 em indígenas, contudo, é muito maior porque a Sesai contabiliza apenas os casos notificados em aldeias demarcadas e cobertas pelas 34 unidades do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) no país. Indígenas que estão em contexto urbano não são incluídos na contagem.

Falta transparência, diz liderança Tüküna 

O presidente da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaka), Higson Dias, contou à Amazônia Real que, desde a pandemia, 150 pessoas do povo Tüküna (como também são chamados os Kanamari) voltaram para as aldeias, localizadas no rio Itacoaí. Ele é um dos poucos da etnia que permaneceu em Atalaia do Norte, em isolamento social. Higson afirmou que recebe poucas informações dos gestores públicos sobre as ações de prevenção à Covid-19.

“Soubemos que a Funai recebeu recursos para ações no Vale do Javari, mas a coordenação do órgão aqui em Atalaia não dialoga com as organizações, não é transparente. Eu não sei o valor que o órgão recebeu. A Funai fica lá, fica aqui, mas no fundo não faz nada”, cobrou Higson Dias.

A preocupação de Higson é também quanto ao tempo em que os Tüküna vão permanecer nas aldeias à medida que insumos como anzol e malhadeira escassearem. “Procuro falar com todos das aldeias, dou apoio na conscientização. Queremos que eles continuem nas aldeias até setembro, outubro, ou quando as autoridades de saúde derem outra orientação, sem precisarem vir para a cidade para comprar produtos como sal e gasolina”, disse ele.

Clovis Rufino, do povo Marubo, que está na aldeia São Sebastião, tem a mesma preocupação. Ele disse que cerca de 110 pessoas de sua etnia retornaram às aldeias no início da pandemia na capital amazonense e reiniciaram os plantios e roçados junto com os que já estavam na aldeia. Ele afirmou que muitos, com receio da doença, decidiram adentrar para áreas mais profundas da floresta.

“Temos grande necessidade de anzol, malhadeira, linha de pesca, óleo, gasolina, implementos agrícolas para os roçados. Nem todos vão querer esperar. A qualquer momento alguém pode querer sair para buscar na cidade”, afirmou ele.

O que diz a Funai?

A reportagem enviou à Assessoria de Comunicação da Fundação Nacional do Índio (Funai), por e-mail, questionamentos sobre as ações de fiscalização, proteção e monitoramento na Terra Indígena Vale do Javari. O órgão enviou respostas genéricas sobre orçamentos, mas não mencionou as ações e assistência no Vale do Javari e nas bases.

Assessoria da Funai disse que o órgão conta com mais de 20 milhões de reais para ações de proteção aos povos indígenas no contexto da epidemia da covid-19. Já teriam sido liberados cerca de 10 milhões de reais, originários de suplementação orçamentária, e outros 3 milhões de reais de recursos próprios.

Segundo o órgão, esses recursos estão sendo utilizados para a compra de alimentos para áreas de extrema vulnerabilidade social, o deslocamento de equipes às Frentes de Proteção de povos isolados ou de recente contato e até a compra de veículos e embarcações, permitindo o transporte de servidores até as aldeias.

“Uma das primeiras ações da Funai frente à expansão da covid-19 no território nacional foi a recomendação do isolamento social coletivo nas comunidades indígenas”, informou o órgão, sem mencionar que esta medida foi tomada pelos próprios indígenas antes mesmo de receberem qualquer orientação.

“Por meio dos seus 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas, a Secretaria Especial de Saúde Indígena tem apoiado as ações emergências de segurança alimentar realizadas pelas Funai. A Sesai fornece os equipamentos de proteção individual para as 39 Coordenações Regionais da Fundação e 11 Frentes de Proteção Etnoambiental. Durante a distribuição de cestas básicas, a Sesai realiza a higienização e descontaminação das cestas. Além de atuar com o suporte logístico de algumas ações”, informa a Funai.

Atualização de resposta

Após a publicação da reportagem, a assessoria de imprensa da Funai enviou uma nova resposta, que postamos abaixo:

“Os indígenas que foram para as suas aldeias tiveram o apoio logístico e de insumos de primeira necessidade da Funai. Há um Plano de Contingência pactuado entre as unidades da Sesai e a Funai locais. Quanto aos insumos agrícolas, a Coordenação Regional Vale do Javari se prepara para atender aos pedidos de recursos, elaboração de contratos emergenciais, trâmites administrativos dentro do prazo de até o final de junho para realizar o atendimento nas aldeias.

Quanto às invasões, são lamentavelmente público e notório os atos ilícitos reiterados de alguns indivíduos da região. Todavia solicitamos apoio de outras instâncias no acesso e controle dos limites da Terra Indígena Javari e estamos aguardando retorno.”

PUBLICADO EM:         AMAZÔNIA REAL