Coronavírus: O que podemos aprender com um xamã da Amazônia? Parte 3: os conflitos e os xapiri

Os filhos de Omama continuaram se multiplicando. Quando nas festas se formavam casais entre os filhos dos visitantes, aconteciam as escapadas amorosas dos jovens, o que podia irritar aos pais. “É o que os antigos chamavam de hakimuu. Mas não era raro os pais ou maridos se irritarem! Então, começavam brigas e os adversários se alternavam dando socos no peito um do outro com o punho fechado, para acabar com a raiva. Se estivessem muito furiosos mesmo, e não conseguissem se acalmar, então davam bordunadas na cabeça um do outro. Era o único jeito de pôr fim à sua raiva!” (p. 225)

Assim, alternando um golpe um no outro, essa válvula de escape ajudava a liberar a raiva, e eles continuavam vivendo em harmonia. A morte era uma situação em que, se um ancião morresse antes da hora, todos que viviam próximos vinham e choravam juntos.  A causa da morte antes da hora tinha como motivo algum feiticeiro inimigo que havia soprado um pó de feitiçaria na pessoa, ou que o haviam flechado, ou ainda que ele havia sido mordido por cobra, ou algo tinha acontecido com ele que começava a tossir muito sem parar até morrer.

O processo de cura dos doentes estava nas mãos do xamã, o líder espiritual que havia recebido os conhecimentos do primeiro xamã, Yãkoanari, primeiro filho de Omama. Então, para se comunicar com o pai ancestral, o xamã do grupo bebia (aspirava) o pó da yãkoana, e então vinham os xapiri para dançar, cantar e ajudavam a curar as pessoas. O xamã também sabia como fazer o espírito da pessoa dançar, enquanto as mulheres mais velhas esfregavam remédios da floresta no corpo do doente. Também era dado mel para a pessoa ingerir, porque ajudava a curar.

A morte também despertava a raiva e se alguém morresse por causa do ataque de um inimigo, então queimavam o morto e colocavam as cinzas dele no mingau de banana, e depois de se alimentar partiam para a guerra, que era a única forma de aplacar a raiva. Mas a raiva também era traiçoeira, principalmente para o xamã, porque ela atrai os xapiri maléficos que levam à agressão e morte. Por isso, um xamã precisa se manter calmo, para não afugentar os bons espíritos, aqueles que trazem fartura, alegria e paz, afastando, assim, os que trazem conflitos, doença e morte.

“É por isso que os xamãs trabalham tanto pela gente de suas casas. Mas não se deve achar que eles se importam só com seus parentes e com a floresta em que vivem. Não é verdade! Os xapiri se esforçam para defender os brancos tanto quanto a nós. Se o céu escurecer e a terra ficar toda alagada, eles [os brancos] não vão mais poder ficar empoleirados em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões! Se Omoari, o ser do tempo seco se instalar de vez perto deles, eles só terão fios de água para beber e assim vão morrer de sede. É bem possível que isso aconteça mesmo. No entanto, os xapiri continuam lutando com valentia para nos defender a todos, por mais numerosos que sejamos. Fazem isso porque os humanos lhes parecem sós e desamparados. Nós somos mortais e essa fraqueza lhes causa pesar. Eles já nos veem como fantasmas enquanto ainda estamos vivos” (p. 509).

Conhecendo melhor os xapiri  

Expedição Yanomami Okrapomai (Christian Braga/ Midia Ninja/2014)

Os xapiris são as imagens dos ancestrais dos primeiros tempos. Eles ficam ativos somente à noite, enquanto todos estão dormindo. São seres espirituais imortais que descem das montanhas, onde estão enterrados os metais venenosos e se mantêm despertos na floresta somente durante a noite. Ali, eles brincam e dançam, transmitindo mensagens de Omama para os xamãs que são os únicos que conseguem vê-los e com eles se comunicam transmitindo a sabedoria ancestral para os demais do grupo e também fazem curas.

“São minúsculos, como poeira de luz, e são invisíveis para gente comum, que só tem olhos de fantasma. Só os xamãs conseguem vê-los [os xapiri]. Os espelhos sobre os quais dançam são imensos. Seus cantos são magníficos e potentes. Seu pensamento é direito e trabalham com empenho para nos proteger. Porém, se nos comportarmos mal com eles, podem também ficar muito agressivos e nos matar. Por isso às vezes nos dão medo. Também são capazes de devastar as árvores da floresta em sua passagem e até de cortar o céu, por mais imenso que seja. Os verdadeiros xapiri são muito valentes! Apenas alguns deles se mostram fracos e covardes. Estes têm medo dos seres maléficos e da epidemia xawara [nome dado a todas as doenças do branco]” (p.111).

Os xapiri só obedecem aos seus pais, os xamãs. Eles não comem carne de caça como os humanos, nem vivem na fumaça. São seres reluzentes e sempre estão com enfeites no corpo. “Eles são cobertos de tinta fresca de urucum e enfeitados com pinturas de ondulações, linhas e manchas de um preto brilhante” (p. 112). Rejeitam pisar em folhas podres e lama, pois são muito limpos e perfumados e espalham o perfume quando voam. Banham-se apenas nos rios de águas puras. “Mas a pintura dos xapiris é um dos seus bens preciosos. Provêm dos odores misturados das coisas da floresta e não tem o cheiro acre e perigoso do álcool dos perfumes da cidade” (p. 112).

O cabelo dos xapiris é preto, mas os que são mais idosos, e que já dançavam para os ancestrais, “têm cabelos brancos e barba. Alguns têm o crânio quase todo sem cabelo. Até os seres maléficos os temem. São verdadeiros antepassados” (p.112). Os olhos “são negros e límpidos e veem muito longe”, sendo que de suas cabeças “emana uma luminosidade surpreendente que os precede para onde forem” (p.112). Por isso, os xapiri “cintilam como estrelas quando se deslocam pela floresta” (p. 113). Com dentes brilhantes como estilhaços de vidro, no caso de lhes faltar algum dos dentes, colocam pedaços de espelho dados por Omama para se embelezar. “Outros possuem longos caninos, afiados e amedrontadores, com os quais dilaceram os espíritos maléficos. Outros ainda têm olhos atrás da cabeça! São espíritos das florestas longínquas. São mesmo outros!” (p. 113).

Dançando, os xapiri agitam folhas amarelas e brilhantes, desfiadas de uma palmeira, movendo-se acima do solo, como se fossem beija-flores ou abelhas. Sopram tubos de bambus, gritam de alegria e, com uma voz poderosa, cantam vários cantos sem interrupção. Há os que usam as unhas afiadas como apitos.

Seus cantos são retirados das “árvores das línguas sábias”, de onde eles tiram as palavras, coletando o coração das melodias. Elas são tantas que nunca se esgotam. “Esses xapiri são a imagem dos pássaros cujo canto melodioso ouvimos pela manhã e à noite na floresta. […] Os cantos dos xapiri são tão numerosos quanto as folhas de palmeira paa hana que coletamos para cobrir o teto de nossas casas, até mais do que todos os brancos reunidos. Por isso suas palavras são inesgotáveis” (p. 114).

Foi Omama quem plantou as árvores de cantos, de onde os xapiris coletam seus cantos para serem trazidos aos xamãs em grandes cestos. Essas árvores são chamadas de amoa hi, e ficam nos confins da floresta. “São árvores muito grandes, cobertas de penugem brilhante de uma brancura ofuscante. Seus troncos são cobertos de lábios que se movem sem parar, uns em cima dos outros” (p. 114). Delas, saem melodias sem parar, penetrando nos xapiris, que as levam para o xamã cantar e fazer curas. Então, quem ouve os cantos aprende e assim eles se espalham por todas as casas.

Segundo o xamã Davi Kopenawa, os brancos também possuem essas árvores dos cantos e há pessoas que os recebem, mas elas não sabem disso e para se lembrarem dos cantos precisam escrevê-las nas “peles de papel” e usar outros mecanismos para disseminá-las. “Por isso, os brancos escutam tanto rádio e gravadores! Mas nós, xamãs, não precisamos desses papéis de cantos. Preferimos guardar a voz dos espíritos no pensamento” (p. 115).

Esta série de artigos é baseada no livro  “A queda do Céu: palavras de um xamã yanomami”, de autoria de Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert.

Referência: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Por: | 12/05/2020 às 19:48

Leia os artigos da série:

Coronavírus: O que podemos aprender com um xamã da Amazônia? Parte 1: Invasão e mortes na Terra Yanomami

Coronavírus: O que podemos aprender com um xamã da Amazônia? Parte 2: Criação do mundo e a mitologia Yanomami     

A fotografia que abre este artigo é de autoria de Rosa Gauditano/Studio R 

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP).  É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).

PUBLICADO EM: AMAZÔNIA REAL

 

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