Por que a Igreja se preocupa com a Amazônia?

Com a narração da criação, vemos que o papel da humanidade neste mundo é governar a terra. Isso significa usufruir de tudo com responsabilidade, reconhecendo-se parte integrante, interligados e dependentes. É necessário tomar consciência de que, a partir deste “dado”, somos chamados a planejar responsavelmente a nossa história relacional, a crescer em humanidade.

A Igreja tem os seus olhos e a sua atenção voltada para todas as realidades humanas, porque  ela “caminha na história, faz parte dela segundo o desígnio de Deus” (Bento XVI, Audiência 2012). Papa Francisco já na introdução da sua Exortação Apostólica “Querida Amazonía”, apresenta a Amazônia “aos olhos do mundo com todo o seu esplendor, o seu drama e o seu mistério”. Porém mesmo sabendo que a Igreja deve ser fermento e sal no mundo, e que deve ajudar a humanidade no cuidado com a criação de Deus, podemos algumas vezes nos perguntar: de onde vem esse interesse de preocupar-se com a Amazônia?  Para responder esta e outras inquietações, é necessário antes irmos às fontes que norteiam os caminhos da Igreja. Em primeiro lugar olhar o que diz a Palavra de Deus.

Se nos debruçamos sobre o Livro do Gênesis, veremos que ele nos recorda exatamente a responsabilidade humana com a Criação. “Deus Disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra (Gn 1,26)”.

Ser criado à imagem de Deus comporta uma participação na responsabilidade em conhecer, amar e cuidar. Porém nos concentremos especificamente  sobre o domínio que a humanidade (Adam)  exerce sobre o mundo criado por Deus. Ser à imagem de Deus é exercer domínio sobre os animais, ou seja, governar o mundo como um pastor. Assim como Deus exerce o senhorio sobre as forças do caos através da sua palavra, fazendo emergir um mundo ordeiro sem violência, assim o ser humano é chamado a exercer o senhorio sobre toda a criação com doçura.

Com a narração da criação, vemos que o papel da humanidade neste mundo é governar a terra. Isso significa usufruir de tudo com responsabilidade, reconhecendo-se parte integrante,  interligados e dependentes

É necessário tomar consciência de que, a partir deste “dado”, somos chamados a planejar responsavelmente a nossa história relacional, a crescer em humanidade. A pessoa entra neste caminho de humanização quando compreende o chamado para superar seus instintos de ganância e aprende a olhar o mundo não como presa, mas como esfera na qual deve crescer nas relações fraternas. Aqui está o ponto central da antropologia bíblica: contestando o falso humanismo do ter, do poder e do aparecer, afirma que existir é perceber o chamado de Deus que, no coração dos apelos da humanidade sofredora, nos chama a sair de nós mesmos, a cuidar dos outros e da “casa comum”.

Seguindo esta breve reflexão deste versículo da Sagrada Escritura, recordamos alguns pontos dos principais documentos do Magistério da Igreja, o Catecismo da Igreja Católica e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Eles norteiam em síntese a natureza da Igreja, sua missão e os seus desafios.  Por meio deles, muitos outros documentos, homilias e mensagens foram escritos para relembrar  que “tudo o que a Igreja oferece deve encarnar-se de maneira original em cada lugar do mundo, para que a Esposa de Cristo adquira rostos multiformes que manifestem melhor a riqueza inesgotável da graça” (Papa Francisco Exortação Apostólica Querida Amazonía).

Catecismo da Igreja Católica: 

339. Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. Acerca de cada uma das obras dos «seis dias» está escrito: «E Deus viu que era bom». «Foi em virtude da própria criação que todas as coisas foram estabelecidas segundo a sua consistência, a sua verdade, a sua excelência própria, com o seu ordenamento e leis específicas» (206). As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas, que despreza o Criador e traz consigo consequências nefastas para os homens e para o seu meio ambiente.

340. A interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o espetáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente, no serviço umas das outras.

Compêndio da Doutrina Social da Igreja

Número 60 – A Igreja, partícipe das alegrias e esperanças, das angústias e das tristezas dos homens, é solidária com todo homem e a toda a mulher, de todo lugar e de todo tempo, e leva-lhes a Boa Nova do Reino de Deus, que com Jesus Cristo veio e vem em meio a eles. A Igreja é, na humanidade e no mundo, o sacramento do amor de Deus e, por isso mesmo, da esperança maior, que ativa e sustém todo autêntico projeto e empenho de libertação e promoção humana. É, em meio aos homens, a tenda da companhia de Deus ― «o tabernáculo de Deus com os homens» (Ap 21, 3) ― de modo que o homem não se encontra só, perdido ou transtornado no seu empenho de humanizar o mundo, mas encontra amparo no amor redentor de Cristo. Ela é ministra de salvação, não em abstrato ou em sentido meramente espiritual, mas no contexto da história e do mundo em que o homem vir, onde o alcançam o amor de Deus e a vocação a corresponder ao projeto divino.

Número 81– A doutrina social comporta também um dever de denúncia, em presença do pecado: é o pecado de injustiça e de violência que de vário modo atravessa a sociedade e nela toma corpo. Tal denúncia se faz juízo e defesa dos direitos ignorados e violados, especialmente dos direitos dos pobres, dos pequenos, dos fracos, e tanto mais se intensifica quanto mais as injustiças e as violências se estendem, envolvendo inteiras categorias de pessoas e amplas áreas geográficas do mundo, e dão lugar a questões sociais, ou seja, a opressões e desequilíbrios que conturbam as sociedades. Boa parte do ensinamento social da Igreja é solicitado e determinado pelas grandes questões sociais, de que quer ser resposta de justiça social.

Papas

Ao longo das história da Igreja, os pontífices dedicaram-se também as necessidades da Amazônia.  São João Paulo II, Papa Bento XVI e Papa Francisco, em muitas ocasiões animaram os fiéis, pastores e povos destas regiões, mas também exortaram e chamaram a atenção para os reais perigos e necessidades dos povos da Amazônia.

Com estas palavras dos Sumos Pontífices, recordamos mais uma vez, que o domínio que os homens exercem sobre este mundo é baseado na autoridade dada pelo Criador, por isso deve ser exercido com responsabilidade e generosidade, pensando sobretudo aos mais fracos e esquecidos. Grandes foram as contribuições deixada pelos papas, para nos lembrar também que este  zelo pela “casa comum”, é missão de todo batizado e todos os homens e mulheres de bem.

João Paulo II 

Encontro com os índios da Amazônia – 12/07/1980

O que lhes vou dizer? Que lhes posso dizer? Começo por repetir o que talvez já tenham ouvido dizer aqui pelos seus amigos missionários: que a Igreja e o Papa vos estimam, estimam muito por aquilo que vocês são e por aquilo que vocês representam. Vocês representam pessoas humanas e “chamados a ser de Jesus Cristo” (Cf. Rm 1, 6), vocês representam também os filhos de Deus. A Igreja procura dedicar-se hoje a vocês como se dedicou desde a descoberta do Brasil a vossos antepassados. O bem-aventurado José de Anchieta, é neste sentido o pioneiro, de certo modo o modelo de gerações e gerações de missionários jesuítas, salesianos, franciscanos, dominicanos, missionários do Espírito Santo ou do Preciosíssimo Sangue, capuchinhos, beneditinos e tantos outros – totalmente devotados a vocês. Com meritória constância eles procuraram comunicar-lhes com o Evangelho toda ajuda possível em vista de sua promoção humana.

Confio aos Poderes Públicos e outros responsáveis os votos que, neste encontro com vocês, eu faço de todo coração em nome do Senhor: que a vocês, cujos antepassados foram os primeiros habitantes desta terra, tendo sobre ela um particular jus ao longo de gerações, seja reconhecido o direito de habitá-la na paz e na serenidade, sem o temor – verdadeiro pesadelo – de serem desalojados em benefício de outrem, mas seguros de um espaço vital que será base não somente para a sua sobrevivência, mas para a preservação de sua identidade como grupo humano, como verdadeiro povo e nação. A esta questão complexa e espinhosa almejo que se dê uma resposta ponderada, oportuna, inteligente, para o benefício de todos. Assim se respeitará e favorecerá a dignidade e a liberdade de cada um de vocês como pessoa humana e de todos vocês como um povo e uma nação.

Encontro com os Índios no Perú – 1985

Seguindo os passos dos missionários abnegados, que desde o início da evangelização vieram para anunciar a Boa Nova do Evangelho, o Papa vem até vocês hoje. O mandato de Jesus continua a ressoar em meu coração: “Ide e fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28,18). Entre aqueles a quem se dirige a mensagem de Jesus Cristo estão vocês, porque para o Papa e para a Igreja não há distinção de raça ou cultura, pois diante de Deus não há grego, nem judeu, nem escravo, nem livre, mas Cristo é tudo em todos.

Eu sei que vocês estão sofrendo; porque sendo detentores pacíficos desde tempos imemoriais destas florestas e “cochas”, vocês muitas vezes veem a ganância dos recém-chegados despertar, ameaçando suas reservas, sabendo que muitos de vocês não têm títulos escritos em favor de suas comunidades, e garantindo legalmente suas terras. De acordo com as leis do Peru e com os vossos direitos ancestrais, faço também meu o pedido feito pelos vossos Bispos, para que vos sejam concedidos – sem qualquer ónus ou atraso indevido – os títulos que vos correspondem

Audiência Geral – Brasil 1991

Por estas razões, peço aos governantes, em nome da vossa dignidade, uma legislação eficaz, cada vez mais adequada, que vos proteja eficazmente dos abusos e vos proporcione o ambiente e os meios necessários para o vosso desenvolvimento normal.

Sei também, e entristece-me profundamente, a atenção insuficiente que podem prestar à vossa saúde física devido à falta de médicos e de meios para manterem as vossas vidas saudáveis. Gostaria, portanto, de pedir ao resto do país para não esquecer esta área, que necessita de tantos profissionais para promover o seu progresso espiritual e material (cf. Libertatis Nuntius, XI, 14). Ainda há muito a fazer nestas imensas áreas para o bem de todos.

Para todos estes grupos, tão diversos, a Igreja continua a ser um ponto de encontro. E é também um ponto de encontro – e pode-se dizer, de forma notável – para os primeiros habitantes deste território, os índios do Brasil, que defendem seus direitos étnicos e, sobretudo, o direito à terra.

Bento XVI

Mensagem pela Campanha da Fraternidade de 2007

A proposta para este ano destina-se a promover a fraternidade efetiva com as populações amazônicas, defendendo e promovendo a vida que se manifesta com tanta exuberância na Amazônia. Por sua vez, esta mesma preocupação se insere no amplo tema da defesa do ambiente, para o qual este vasto território constitui um patrimônio comum que, por sua realidade humana, sociopolítica, econômica e ambiental, requer especial atenção da Igreja e da sociedade brasileira.

Neste contexto, insere-se, porém, de maneira determinante a ação eclesial dirigida a fomentar um processo de ampla evangelização que estimule a missionariedade e crie condições favoráveis para a descoberta e o crescimento da fé de toda a população amazônica. Em continuidade com os meus Veneráveis predecessores, desejo fazer um preito de gratidão a todos aqueles corajosos missionários, que se consagraram e se consagram, à custa inclusive da própria vida, em levar a fé católica nas cidades e aldeias da região; homens e mulheres que, por amor a Deus, entregaram-se de corpo e alma para extensão do Reino de Deus nesta Terra da Santa Cruz.

Encontro com os Jovens no Pacaembu – SP – 2007

Nunca podemos dizer basta, pois a caridade de Deus é infinita e o Senhor nos pede, ou melhor, nos exige dilatar nossos corações para que neles caiba sempre mais amor, mais bondade, mais compreensão pelos nossos semelhantes e pelos problemas que envolvem não só a convivência humana, mas também a efetiva preservação e conservação da natureza, da qual todos fazem parte. “Nossos bosques têm mais vida”: não deixeis que se apague esta chama de esperança que o vosso Hino Nacional põe em vossos lábios. A devastação ambiental da Amazônia e as ameaças à dignidade humana de suas populações requerem um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação que a sociedade vem solicitando

Papa Francisco

Viagem apostólica ao Chile a ao Peru – Puerto Maldonado – 2018

Provavelmente os povos nativos da Amazônia nunca estiveram tão ameaçados em seus territórios como estão agora. A Amazônia é uma terra disputada em várias frentes: por um lado, o neo-extractivismo e a forte pressão de grandes interesses econômicos que apontam para sua ganância por petróleo, gás, madeira, ouro, monoculturas agroindustriais. Por outro lado, a ameaça contra seus territórios também vem da perversão de certas políticas que promovem a “conservação” da natureza sem levar em conta o ser humano e, especificamente, você, os irmãos e irmãs amazônicos que ali vivem. Conhecemos movimentos que, em nome da conservação da floresta, monopolizam grandes extensões de floresta e negociam com eles, gerando situações de opressão dos povos nativos para quem, desta forma, o território e os recursos naturais dentro dele se tornam inacessíveis. Este problema provoca a sufocação de seus povos e a migração de novas gerações, na ausência de alternativas locais. Devemos romper com o paradigma histórico que considera a Amazônia como uma inesgotável despensa dos Estados sem levar em conta seus habitantes.

Considero essencial fazer esforços para gerar espaços institucionais de respeito, reconhecimento e diálogo com os povos nativos; assumindo e resgatando a sua própria cultura, língua, tradições, direitos e espiritualidade. Um diálogo intercultural no qual vocês são os “principais interlocutores, sobretudo quando se trata de avançar em grandes projetos que afetam os vossos espaços” [1]. O reconhecimento e o diálogo serão a melhor forma de transformar as relações históricas marcadas pela exclusão e pela discriminação.

Missa na conclusão do Sínodo dos Bispos – 2019

Quanta superioridade presumida, que se transforma em opressão e exploração, mesmo hoje! Vimo-lo no Sínodo, quando falávamos da exploração da criação, da população, dos habitantes da Amazónia, da exploração das pessoas, do tráfico das pessoas! Os erros do passado não foram suficientes para deixarmos de saquear os outros e causar ferimentos aos nossos irmãos e à nossa irmã terra: vimo-lo no rosto dilacerado da Amazónia.

Exortação Apostólica Querida Amazonia

Sonho com uma Amazonia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida.

Sonho com uma Amazonia que preserve a riqueza cultural que a carateriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.

Sonho com uma Amazonia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.

Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazónia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazónicos.

*O título da Exortação Pós-Sinodal “Querida Amazonia” segue a grafia do texto original em língua espanhola.

Padre Arnaldo Rodrigues – Cidade do Vaticano

FONTE: VATICAN NEWS

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