Em Rondônia, intercâmbio dos recém contatados Kanoé fortalece a sobrevivência da etnia

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Purá Kanoé, em processo inicial de aquisição da forma escrita da língua Portuguesa. Foto: Acervo Funai.

O intercâmbio, que aconteceu na TI Rio Branco, foi acompanhado por uma equipe da Funai. O evento se dedicou principalmente a atividades de valorização das formas oral e escrita das línguas Kanoé e Portuguesa – esta última, uma demanda apresentada pelo grupo do Rio Omerê, dada a importância do domínio do idioma nacional para lidar com questões externas que interfiram em seu cotidiano. Além das oficinas de aquisição linguística mediadas por professores Kanoé, o intercâmbio também fomentou a troca de conhecimentos tradicionais e o fortalecimento de laços entre os dois grupos.

“Esse intercâmbio já aconteceu em 2014 e 2018. É um evento delicado, dado que o pequeno grupo Kanoé do Rio Omerê tem um conhecimento bastante incipiente dos códigos e modos de organização social fora de sua comunidade. Após a morte de Tutuá (a ña mũj, mãe de Txinamãty e Purá) em 2003, a família se fechou bastante em seu universo. Alguns anos depois perceberam que, apesar da barreira cultural e linguística, buscar relações com outros grupos é alimentar a expectativa de continuidade do grupo – especialmente em atenção a Bukwá, que tem apenas 17 anos. Garantir o apoio da Funai aos intercâmbios é imprescindível, tendo em vista que essas aproximações são a única alternativa de sobrevivência do grupo do Rio Omerê”, afirma Altair Algayer, chefe da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé.

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Bukwá Kanoé participa, junto a crianças Kanoé da TI Rio Branco, de atividade de troca de palavras em Kanoé e em Português. Foto: Acervo Funai.

As questões linguística e histórica têm extrema importância no atendimento aos povos de recente contato porque remonta à salvaguarda de diversos outros aspectos de sua dignidade e bem viver. Em outras palavras, reafirma-se que o reconhecimento de sua organização social e de sua cultura é fator determinante para a garantia dos demais direitos constitucionais que lhes são reservados, incluída a atenção às suas especificidades (no caso específico dos Kanoé do Rio Omerê, ressalta-se suas vulnerabilidades quanto à reprodução física e cultural). Assim, além de atividades como a do intercâmbio, a Funai também contribui com o registro do Kanoé a partir de iniciativas como o Projeto de Documentação de Línguas Indígenas, realizado pelo Museu do Índio.

Neide Siqueira, servidora na Coordenação de Políticas para Povos de Recente Contato, destaca que dentre as realizações e encaminhamentos institucionais discutidos no Intercâmbio Kanoé está a solicitação de contratação de professora Kanoé (TI Rio Branco) escolhida pelos indígenas para atuar junto ao grupo residente na TI Rio Omerê. “No período de três meses a cada semestre ela ensinará a língua Portuguesa enquanto aprende (reaviva) a língua Kanoé, que será ensinada como segunda língua para as crianças da TI Rio Branco (monolíngues em Português). A atuação da professora funcionará, portanto, como uma continuidade do Intercâmbio”, explica a servidora da Funai.

A Coordenação de Políticas para Povos de Recente Contato (COPIRC/CGIIRC) também aproveitou a ocasião para coletar dados e informações para elaboração do Programa Akuntsu/Kanoé, instrumento específico para a garantia da realização de articulações interinstitucionais em favor do atendimento às especificidades desses povos indígenas de Recente Contato (ações de atenção à saúde, aos processos educativos, à gestão sustentável de seu território e segurança alimentar, e à sua governança).

Histórico

 

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Purá Kanoé conversa com o professor Fernando Kanoé durante oficina de escrita da língua Portuguesa. Foto: Acervo Funai.

O povo Kanoé (lê-se “Kanoê”) habita hoje diversos locais das regiões sul e sudoeste do estado de Rondônia, como as Terras Indígenas Rio Guaporé, Sagarana, Rio Branco, Pacaás-Novas e Rio Omeré, além de outros territórios habitados em decorrência de casamentos com outras etnias. Grande parte dos Kanoé que conseguiram se refugiar das tentativas de colonização foram contatados já na primeira metade do século XX. Esses contatos foram ocasionados por fatores como a travessia de Rondon pela região, a exploração da borracha no contexto da Segunda Guerra ou ainda o trabalho das extintas Frentes de Atração da Funai.

As relações que se desenvolveram com a sociedade envolvente a partir daí tiveram grande influência dos paradigmas norteadores das políticas de Estado antes da Constituição de 1988, que não buscavam garantir o respeito à cultura e à organização social indígenas. O entendimento da língua Kanoé como isolada já no final da década de 1980 pode ser apontado como uma das diversas consequências que o modelo assimilacionista trouxe à cultura do autodenominado “povo que veio da água, do barro”.

Após o período de extração da borracha, as atividades agropecuária e madeireira se instalaram na região. Mesmo assim, indícios e relatos de 1940 sobre a existência de povos isolados nas imediações do Rio Omeré persistiam. A intensificação das evidências na década de 1980 motivaram a Funai a dar início às expedições de localização. A denúncia de moradores locais acerca da extrema vulnerabilidade da pequena população sobrevivente fez o órgão indigenista interditar a área, em 1986, para confirmar a presença desses indígenas.

Os confrontos jurídicos relativos à interdição trouxeram sérios impedimentos à atuação da Funai. As suspensões e restaurações dos efeitos da Portaria de Interdição se revezaram por cerca de oito meses até a decisão de desinterdição da área. Mesmo assim, acreditando na possibilidade da existência do grupo nas matas remanescentes, os indigenistas Marcelo dos Santos e Altair Algayer continuaram as expedições.

Finalmente, em 1995, essas incursões culminaram no encontro de dois grupos de isolados à margem esquerda do Rio Omerê. Sua identificação etnolinguística requereu um trabalho meticuloso, visto que a língua que falavam praticamente não era conhecida no entorno. Após pesquisa envolvendo diversos atores, descobriu-se que se tratava de famílias Kanoé e Akuntsu, sobreviventes após dizimação das comunidades em que viviam.

 

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Terra Indígena Rio Omere

As novas diretrizes de atuação do Estado junto aos povos indígenas isolados e de recente contato, estabelecidas em 1987 em consonância com a Constituição que viria a ser promulgada, possibilitaram aos grupos o estabelecimento de uma relação autônoma com a sociedade não indígena, com a proteção e o reconhecimento de sua organização social.

Os falantes da língua Kanoé residem junto ao grupo Akuntsu na Terra Indígenas Rio Omeré. Estabeleceram-se como uma espécie de núcleo articulador de processos de fortalecimento da cultura Kanoé. Com o apoio de linguistas e outros pesquisadores, a Funai tem se dedicado a processos educativos em prol do registro e disseminação da língua materna junto aos integrantes de seu povo.

Coordenação-Geral de Índios Isolados   –    FUNAI

 

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