Entrevista: manipulação cartográfica durante regime militar favoreceu mineradora e hidrelétrica na Amazônia

Professor Dr. Stephen Baines é uma das mais importantes vozes em defesa dos povos indígenas do Brasil na atualidade. Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB), desde 1989, dá aulas no Departamento de Antropologia, no Instituto de Ciência Sociais da UnB, onde é professor titular. É pesquisador 1A do CNPq, com ênfase em Etnologia Indígena, com pesquisas entre o povo indígena Waimiri-Atroari, os impactos de grandes projetos de desenvolvimento (mineração industrial e barragens hidrelétricas) em povos indígenas, etnicidade e nacionalidade entre povos indígenas em fronteiras internacionais, política indigenista, indigenismo e estilos de antropologia em contextos nacionais, tema do seu projeto de pesquisa no CNPq. Também tem pesquisas sobre os Makuxi e os Wapichana na fronteira Brasil-Guiana e acompanha a situação dos Tremembé no litoral do Ceará.

Entrevista – professor Dr. Stephen Grants Baines (UnB)

O antropólogo participou em fevereiro de 2019 da palestra “A conjuntura política atual e a criminalização de indígenas em Roraima”, realizada pelo curso de Licenciatura Intercultural e o Programa de Pós-graduação em Sociedade em Fronteiras (PPGSOF) da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

No dia seguinte, professor Baines, concedeu entrevista no Uiramutam Palace Hotel à equipe da UFRR, sob coordenação do jornalista Éder Rodrigues (Rádio e TV Universitária – RTV/UFRR), com a participação do professor Orlando Carneiro (curso de História/UFRR) e do antropólogo Emerson Rodrigues, com apoio do jornalista Pablo Felippe (Coordenadoria de Comunicação/UFRR) e do repórter cinematográfico Pedro Alencar (RTV/UFRR).

Professor Baines falou sobre o início de seus trabalhos com os povos indígenas e os desafios da pesquisa na Amazônia nos anos 70 e 80, quando o povo Waimiri-Atroari enfrentou fortes ataques do estado sobre suas terras, com a implementação de megaprojetos de infraestrutura.

Há décadas vem denunciando a forma como o estado nacional, sobretudo período do governo civil-militar, tratou os povos indígenas, as suas terras e as leis, fato que favoreceu as elites empresarias instaladas na Amazônia na extração de bens naturais, gerando impactos ambientais irreparáveis. Confira a entrevista.

 

Éder Rodrigues– Quando e como surgiu seu interesse pelas Ciências Humanas, sobretudo a Antropologia, nesta relação entre os povos indígenas, o estado nacional e as grandes corporações empresarias?

Stephen Baines – Bom, é uma longa história. Viajei por várias regiões do mundo primeiro e vim para a América do Norte, América Central e América do Sul. Estive no Brasil a primeira vez em 75. Entrei no Brasil por Jaguarão [RS]. Fui subindo de carona. Fui ao Acre, depois Manaus [AM] e de fato quando eu estive no Paraguai em dezembro de 74. Estava no Chaco, em um posto da polícia ouvindo rádio sobre a incidência dos Waimiri-Atroari no posto Abonari [AM] onde faleceram o sertanista Gilberto Pinto Figueiredo Costa, vários servidores do FUNAI e pelo menos três Waimiri-Atroari neste incidente.

Quando vim ao Brasil me interessei em saber mais. Cheguei ao Amazonas em junho de 75, fui de Manaus segui rumo ao rio Abonari, a estrada não estava completa ainda, o desmatamento estava completo, mas a construção da estrada com tratores, seguia a oito quilômetros ao norte do rio Alalau, me contaram. Sai de Manaus cheguei ao quilômetro 40 no primeiro dia.

No dia seguinte parou um jipe. Estava pedindo carona. Não tinha ônibus naquela época, eram somente carros particulares, caminhões do 6º BEC, das empreiteiras de construção e, por acaso vi, o comandante do 6º BEC em Abonari que parou e me perguntou onde estava indo.

Falei que estava indo até Abonari. Ele disse que – “o senhor não pode ir até Abonari, pois estava ocorrendo um problema com nossos índios lá. Eu disse: “- tudo bem”. Se o senhor não quiser me levar, eu espero outro transporte. Eu vou chegar de qualquer jeito”. Ele disse: “- tudo bem o senhor pode ir, na condição que volte amanhã em viatura do exército”. Eu disse “– tudo bem”.

Eu fui dormir no batalhão do 6º BEC em Abonari e no dia seguinte ele colocou uma viatura para me levar até o Abonari, seis quilômetros aproximadamente. Conversei com o pessoal do posto da FUNAI. Naquela época Apoena Meireles estava em Abonari, ele disse que eu não podia entrar porque era uma frente de atração, ninguém podia entrar, apenas os servidores da própria FUNAI, mas perguntei das pessoas um pouco sobre a situação e me levaram de volta para Abonari. Uma frota de uns 12 ou 15 ônibus chegou lá, e o comandante não quis falar nada. Disse que não poderia dar informações, mas voltei para Manaus, dentro de um destes ônibus com soldados do 6º BEC e eles me contaram que após o ataque contra o posto Abonari em dezembro de 74 o 6º BEC suspendeu as obras da estrada.

Já havia passado seis meses e então o primeiro Batalhão de Infantaria de Selva [BIS] estava entrando para fazer uma demonstração de força ao longo do desmatamento da estrada para mostrar para os Waimiri-Atroari que não havia mais como resistir à força bélica do exército. Inclusive, alguns Waimiri-Atroari tinham amarrado os tratores na beira do Alalaú com cipó logo antes disso para tentar impedir o avanço dos tratores. Eles vinham à noite e amarravam.

Na viagem de volta vi, inclusive, os caminhões do primeiro BIS vindo de Manaus para Abonari com morteiros, com soldados, metralhadoras e armas pesadas. Ficaram três semanas lá fazendo demonstração de força ao longo da estrada e depois o 6º BEC voltou para concluir as obras. Naquela época, faltava uns cento e poucos quilômetros para concluir a estrada e torná-la transitável, do quilômetro oito, após o rio Abonari para o norte, em Roraima.

Com isso, já me interessei na situação. Eu tentei conseguir visto permanente naquela época, fiz três pedidos, foram todos indeferidos, então tive de ir embora. Tentei trabalhar com indígenas na Venezuela, tive uma oferta com os Yanomami, mas infelizmente o Departamento Indigenista, que era militar, disse que não podiam permitir, pois não poderiam deixar que estrangeiros trabalhassem em áreas de fronteira.

Da Venezuela fui para vários outros países e acabei fazendo mestrado na Inglaterra, na Universidade de Cambridge em Antropologia Social, e pedi bolsa ao governo brasileiro em 80, 79 para 80, para voltar e fazer um doutorado na UnB. Consegui esta bolsa. Era uma bolsa por ano para cada país naquela época. Acho que não existem mais estas bolsas, só para poucos países agora. Então vim para o Brasil, em junho de 80, assim que terminei o mestrado, fiz seleção para doutorado e entrei no programa de doutorado em 81. Orientado pelo professor Julio Cezar Melatti.

Fiz cursos com o Melatti, Roberto Cardoso de Oliveira e várias outras pessoas. Consegui concluir as disciplinas, no segundo semestre de 81 e janeiro de 82 já me desloquei para a área do Waimiri-Atroari. Não foi fácil conseguir a autorização. A FUNAI demorou quase um ano. Eu pedi com muita antecedência porque sabia que era um processo demorado. Fui chamado várias vezes. O coronel Zanoni que era o chefe de estudos e pesquisas me chamou justamente porque parecia que o processo não andaria, depois que  professor Roberto Cardoso ligou para coronel Zanoni e perguntou por que não estavam autorizando.

Ele disse: “- peça para ele ir no dia seguinte”. Mas Zanoni disse que:“– qualquer crítica da sua parte a sua pesquisa vai ser proibida”! E jogou a autorização em minhas mãos. Eu vim e comecei a pesquisa a partir de janeiro de 82. Eu fiquei umas semanas depois tive que voltar à Brasília para defender o projeto de doutorado, antes de começar a pesquisa propriamente dita. Voltei e fiz pesquisa entre 82 até 85, fiz várias etapas. Todo o ano tinha que voltar a Brasília para renovar o visto. Naquela época não tinha me naturalizado ainda, estava com visto de estudante. Tive que renovar a autorização da FUNAI, os recursos do CNPQ e o visto de estudante no Brasil, mas consegui neste período realizar os 18 meses de pesquisa dentro da terra indígena, entre janeiro de 82 até agosto de 85.

Eu gostaria de ter continuado, mas teve o prazo, o período de bolsa. Naquela época o prazo para fazer o doutorado era maior do que hoje em dia, mesmo assim, o meu orientador disse: “- tem que escrever a tese primeiro. Eu defendi no início de 88, entreguei no final de 87 e defendi no início de 88.

Professor Emerson Rodrigues – Professor, boa tarde. A história da BR 174 é emblemática para a sociedade roraimense sob vários aspectos. Quero fazer uma pequena digressão para pontuar e fazer a pergunta. Diversos autores, como o senhor sabe, porque já teve acesso a esta literatura: Lobo D’Almada, Koch-Grümberg, Henri Coudreau, na sua produção trazem um pouco deste reflexo, denúncias documentadas, sobre algumas famílias tradicionais roraimenses que enveredaram-se para tentar fazer a abertura da estrada. Sabemos que não conseguiram, pois a corrupção não deixou, a expropriação de gado das fazendas nacionais, neste mesmo período, os assassinatos e as brigas de poder da elite regional, ainda no século passado, frearam o potencial econômico do estado.

Lobo D’Almada vem trazendo toda uma construção que vai de encontro ao anseio já no século XIX de se ter uma estrada que liga-se a questão da economia de Boa Vista a Manaus. Nós sabemos da importância do antigo território de Roraima para a economia do Amazonas. Até que ponto mesmo esta estrada foi feita: com o objetivo mesmo de ligar Manaus a Boa Vista para atender uma demanda local, ou veio atender os grandes interesses internacionais das grandes mineradoras que pressionaram para que esta estrada fosse construída efetivamente. Porque ela passa por um ponto bem estratégico onde estão as grandes jazidas e onde se instalaram as mineradoras atravessando as terras indígenas.

Gostaria de saber até que ponto, de fato, era sim um anseio? Porque o estado precisava de uma estrada naquele momento? E o outro momento era aquele em que os radares já haviam detectado essas grandes jazidas de minérios nesta região, neste espaço fisiográfico nos anos 60, com o projeto RADAM.

SB – Acho que temos que ver um pouco da história. Já no século XIX houve uma tentativa de construir uma estrada de fazer uma ligação de Manaus com Boa Vista, porque [o acesso] era só por via fluvial. Era muito demorado, levava três a quatro dias, até cinco, dependendo do nível da água. Mas certamente no início dos anos 70 houve levantamento pelo CPRM[1] no rio Abonari e Uatumã e descobriram grandes depósitos de cassiterita e vários outros minérios e o ímpeto nos anos 70 já era para atender os interesses de grandes empresas também.

Comecei a pesquisa no início de 82. Final dos anos 70 a Eletronorte já estava projetando a hidrelétrica de Balbina, que foi concluída em 87, fechando as comportas e ia sendo construído nos anos anteriores. Quando eu cheguei em 82 já tinham estudos feitos lá da Eletronorte sobre o nível de águas e qual área seria inundada.

Este foi um dos interesses e outro interesse era a mineração Taboca que abriu a mina de Pitinga e houve uma manipulação cartográfica, porque em todos os mapas anteriores, o rio Uatumã vinha do norte e mudaram o nome. O rio Uatumã virou rio Pitinga. O antigo Uatumã vem em direção ao oeste para um igarapé sem nome e desemboca no rio Abonari. Com isso desmembraram cerca de 40% da área original delimitado pelo sertanista Gilberto Pinto Figueiredo no início dos anos 70 para a terra indígena Waimiri-Atroari para atender os interesses da mineração Taboca e da Eletronorte.

A construção da BR 174 atendeu plenamente os interesses tanto da mineração, quanto da construção da hidrelétrica de Balbina. As duas grandes obras foram atendidas. A parte desmembrada foi justamente a maior parte do sul, que acabou sendo alagada pela hidrelétrica de Balbina.A parte do norte era a área de interesse imediato da mineração Taboca. Quando eu vim em janeiro de 82, a mineração Taboca já estava lá pesquisando e lavrando o minério.

Tinham aviões saindo para Abonari a toda hora carregando minério antes de construir a estrada da mineradora e no ano de 82 quando comecei a pesquisa, de repente, a FUNAI descobriu uma estrada já pronta que ligava a mina de Pitinga, na área desmembrada da terra indígenas até a BR 174 que eram 40 e poucos quilômetros e foi autorizada pelo presidente Figueiredo, atendendo interesses maiores que cortam a terra indígena Waimiri-Atroari e permitem o escoamento dos minérios da mina de Pitinga.

Professor Emerson Rodrigues – O senhor se referiu à questão da mineração. O senhor poderia relatar um pouco mais sobre o deslocamento de 700 m3 de rejeitos que acabaram atingindo o rio Alalaú, resultante de um rompimento de uma barragem da mineradora na terra dos WaimiriAtroari. Essa informação consta dentro de um artigo da sua pesquisa. O senhor poderia explicitar como foi esse episódio?

SB – Quando iniciei a pesquisa em 82 já estava vendo a poluição do rio Alalaú e os afluentes que vem da área de mineração Taboca. São afluentes que desembocam logo acima da cachoeira Criminosa, no rio Alalaú; da cachoeira Criminosa para baixo, o rio Alalaú já estava amarelado, com detritos de mineração. Eu sei que nos anos seguintes, o MPF entrou com uma ação e a mineração Taboca teve que furar poços nas comunidades indígenas na beira do rio Alalaú para fornecer água potável, porque a água era considerada imprópria, com detritos de mineração. Era uma situação parecida com Brumadinho, aquela água com metais pesados. Os sedimentos de minérios estavam contaminando a água o que alterou visivelmente a sua qualidade. Em 82 já estava visível.

Éder Rodrigues – Quais são suas memórias da reação naquele momento da academia, de pesquisadores ou de indigenistas ao ver este tipo de processo acontecendo no coração da Amazônia? Como parte da sociedade e a crítica internacional reagiram naquele momento?

SB – De fato, houve pouca divulgação na época. Em 81, estávamos em plena ditadura militar. Não havia muita divulgação, havia algumas reações. Eu lembro que, na época várias pessoas divulgaram isso. O indigenista do Conselho Indigenista Missionário, Egydio Schwade[2], publicou várias matérias sobre isso. Um pesquisador do INPA de Manaus, o Philip Fearnside[3], também divulgou alguns avisos sobre esta poluição. Saíram matérias jornalísticas, mas naquela época eu acho que a comunidade acadêmica não estava muito ligada a esta questão.

Na época, eu era a única pessoa que estava trabalhando com Waimiri-Atroari. Eu fiz tudo para conseguir outros colegas, antropólogos de outras áreas. Eu fui ao próprio INPA, para encontrar botânicos ou zoólogos que tivessem interesse de participar junto comigo, porque teria enriquecido muito a pesquisa se tivesse uma equipe.

Todo mundo disse que estava interessado, mas tinham outros compromissos. E não conseguimos. No período em que eu fazia pesquisa de campo, não consegui ninguém para trabalhar junto, então fiz o trabalho só.

Éder Rodrigues – Quando aconteceu a proibição de seu acesso lá?

SB – A proibição aconteceu de fato durante o período da frente de atração, a situação estava bastante difícil. Eu lembro quando eu cheguei na área, o próprio coordenador da época da frente de atração primeiro disse que eu não podia me deslocar para nenhum posto indígena antes dele ter uma reconfirmação da autorização. Eu já tinha carta da presidente da FUNAI, do então delegado naquela época, em Manaus, o Kazuto Kawamoto, e mesmo com isso, ele queria uma reconfirmação. Tive que ficar cinco seis dias lá esperando esta reconfirmação.

O coordenador não estava na área na época. Esse foi um dos motivos. Depois eu lembro que quando eu fazia pesquisa, qualquer menção que eu fizesse a respeito da mineradora ou a hidrelétrica os próprios capitães indígenas denunciaram para o chefe de posto que passaram pelo coordenador da frente de atração que me chamou e disse: “- fiquei sabendo que você está perguntando sobre mineradora, sobre hidrelétrica!”

O próprio delegado da FUNAI me chamou duas vezes e disse que: “- Se você quiser fazer pesquisa aqui, faça só antropologia, não se meta onde não deve se meter.” O Kazuto Kawamoto falou isso! Dizem (eu não sei se é verdade) que ele era do SNI na época.

Éder Rodrigues – O Egydio Schwade deu uma contribuição muito boa para a comissão da verdade, que também está na publicação dele. Ele relata o processo de violência contra o povo Waimiri-Atroari e o desaparecimento dos indígenas. Na sua memória, quais foram os impactos, além do desastre ambiental, como assassinatos ao longo do processo da construção da estrada?

SB – Bom, as estimativas da população Waimiri-Atroari variam muito, mas o [Theodor] Koch-Grünberg e George Hübner calculam que só no rio Jauaperi havia cerca de dois ou três mil indígenas, sem contar o Alalaú, o Abonari, os outros rios que eram habitados pelos Waimiri-Atroari. As estimativas variam muito. Alguns autores falam em seis mil indígenas, outros falam três mil, nas décadas anteriores a construção da estrada.

É provável que nos anos 50, 60 havia dois ou três mil indígenas. Após terem sofrido invasões das suas terras e epidemias, nos séculos anteriores. A gente sabe do trabalho de Alípio Bandeira da década de 20, que houve uma depopulação no Jauaperi por epidemias já no início do século 20. Ele relata epidemias que eliminaram aldeias inteiras. E nos anos anteriores quando começou a estrada a população caiu drasticamente. Talvez havia, nos anos 60, dois mil Waimiri-Atroari, já em 73 um relatório do Gilberto Pinto Figueiredo, calculou uma população entre 600 a 1000 indígenas.

Quando comecei a pesquisa para o doutorado em Antropologia em 81, 82 visitei todas as comunidades, nos postos e os poucos que não estavam nos postos e contando ao longo de período de um ano todos os nascimentos e óbitos calculei 332 indígenas. Houve uma queda de dois ou três mil para 332, em poucas décadas. Uma queda, sobretudo, devido a construção da estrada.

Quando a estrada entrou, os soldados, os trabalhadores das empresas empreiteiras, centenas de funcionários trabalhando na estrada. Eles [indígenas] vieram para conhecer o que era a FUNAI ou o que estavam fazendo lá, construindo esta estrada e voltaram para a aldeia e começaram surtos de gripe, sarampo, caxumba, todas as doenças que para nós não são tão graves, mas que para eles são letais.

Disseram que aldeias inteiras foram eliminadas por doenças, as pessoas morriam nas redes. Disseram que chegaram em aldeias vizinhas e não tinha ninguém vivo. Andei com eles no início dos anos 80, visitando as aldeias recém-abandonadas e me contaram: “- Pelo tamanho da casa e o que restou aqui, viviam entre 60 e 70 pessoas. Sobraram cinco pessoas”!

Em outra aldeia diziam: “-aqui ninguém sobreviveu. Todos morreram! Nós andamos mais duas horas e diziam: “- aqui temos 15 que sobreviveram, de 30, 40, 50”. Ninguém sabe exatamente as populações de cada aldeia, mas foi uma queda drástica da população.

Eu lembro que em uma capoeira de uma aldeia tinham muitos potes de alumínio furados e eu perguntei: “- o que era isso?” Eles diziam: “- o pessoal ficou com raiva que morreu todo mundo, a mulher dele morreu, e aqueles que sobreviveram furaram tudo com raiva”, porque eles acreditavam que a morte veio por feitiçaria via estes objetos.

Os objetos eram transmissores de feitiçaria e os brancos queriam eliminá-los, matá-los. Por isso que eles atacaram os postos nos anos 70, o objetivo, dizem que não era para matar. Era para afastar. Eles sempre deixavam um funcionário escapar para contar e dizer aos outros para não voltarem mais para lá, que eram territórios deles e não queriam os brancos invadindo em massa como estava acontecendo.

Houve uma depopulação. Além de massacres isso que também eles tinham medo de falar, porque era proibido falar nestas coisas. O exército na época e a alguns funcionários da própria FUNAI não permitiam que falassem sobre estas coisas. Mas contaram que aviões passavam por cima que caiu um pó, que respiraram este pó e pessoas morreram logo depois. Então é muito provável que jogaram veneno ou gás para eliminar a população para limpar a área para abrir a estrada.

Professor Emerson Rodrigues– Dentro deste seu relato, é evidente que há na memória dos Waimiri-Atroari as informações dos ataques dos militares. Procede esta prática? Foi interessante que o senhor comentou sobre estas estratégias para lidar para frear o avanço dos Waimiri-Atroari, para manter a frente dos trabalhadores, e dos militares e também dos próprios funcionários para delimitar uma territorialidade ilegal. Procede as informações de uma guerra bacteriológica, armas químicas, bombas de napalm?

SB – Possivelmente, não temos evidências sobre isso, mas é muito provável. Os Waimiri-Atroari dizem que aviões passaram em cima, houve um pó e depois as pessoas morreram. Eu não sou especialista em armas químicas ou biológicas, mas certamente houve. Nem precisava muito disso porque este contato completamente descontrolado entre centenas de trabalhadores na estrada, deixou os Waimiri-Atroari expostos imediatamente a gripes, sarampos, caxumba, coqueluche e todas as doenças comuns que nós temos, mas que matam. Matam as populações indígenas em massa. Passa de uma aldeia para outra, um indígena vai para outras aldeias e todo mundo pega a doença, podendo morrer uma aldeia inteira. Nem precisa usar armas químicas.

Embora é possível que tenha usado também (e certamente houve) uso de demonstrações de forças. É confirmado, há documentos que comprovam isso. Rajadas de metralhadoras, granadas, morteiros para mostrar o poder bélico.

Quando comecei a pesquisa em 82 aconteceu um incidente no posto indígena de Terraplenagem, na beira da estrada BR 174 ao lado da aldeia Yawará. Houve um desentendimento, porque os grupos nos aldeamentos da FUNAI eram constituídos de sobreviventes de muitas aldeias que se juntaram e houve muitos desentendimentos entre eles na época, porque eram antigos rivais. E um grupo se separou foi embora voltou para a aldeia e o coordenador da frente de atração ficou com medo, ele pensou: “eles vão voltar e atacar!” Então, chamou o 6º BEC e eles ocupavam o posto indígena de Terraplenagem. Quando estive na área. Não estive no posto indígena de Terraplenagem estive em Taquari na época. Mas dizem que eles soldados estavam armados com metralhadoras, cercando o posto, prontos para atirar nos indígenas, caso aparecessem. O coordenador da frente de atração pensava desta forma e chamou soldados para ocupar o posto e evitar qualquer tipo de ataque por parte dos Waimiri-Atroari.

Éder Rodrigues – Professor em algum momento em seu artigo o senhor fala sobre a aplicação de vacina e as mortes que decorreram desta ação, como foi esta história?

SB – Sim. Teve uma história que me contaram e isso eu ouvi de outros funcionários da época. Um que já é falecido: Carlos Marques da Silva, que me contou que no início dos anos 70, no rio Camanaú, houve campanhas de vacinação e um médico chamado Sadoque de Freitas estava fazendo uma campanha de vacinação com equipe e disse que: primeiro, deveria ter aplicada uma vacina chamada multivac, mas a vacina estava vencida. Segundo, que eles erraram a vírgula e aplicaram dose demais e saiu no jornal que uns 16 ou 17 indígenas tinham morrido, mas o chefe do posto que estava lá disse que morreram dezenas de indígenas e isso confirmou para os Waimiri-Atroari que os brancos queriam matá-los mesmo. Vieram aplicando vacina dizendo que era para evitar doença e depois morreram dezenas! Então eles entenderam que os brancos queriam matá-los mesmo.

Agora voltando para a questão da proibição. Eu escrevi a tese, consegui bolsa do CNPQ no museu Goeldi[4], em Belém [PA], para continuar pesquisa, mas em abril de 87 quando entrou o programa Waimiri-Atroari, o Márcio Silva, da USP estava fazendo pesquisa sobre parentesco Waimiri-Atroari no Camanaú e, imediatamente que começou o programa, o então coordenador já falecido José Porfírio de Carvalho avisou ele que não poderia continuar a pesquisa, porque os Waimiri-Atroari não queriam mais nenhum antropólogo na área.

Em 1987, o professor Márcio Silva, atualmente da USP, tinha feito sete meses de pesquisa de campo junto aos Waimiri-Atroari quando o Programa Waimiri-Atroari proibiu a continuação da sua pesquisa. Ele havia planejado no mínimo, um ano e meio [de campo]. Ele terminou a pesquisa entrevistando alguns Waimiri-Atroari na sede da Eletronorte, do programa em Manaus e depois ele veio conversar comigo, comparando meus dados de parentesco com os dados que ele tinha conseguido em sete meses. Ele não conseguiu continuar a pesquisa. Eu tentei voltar na condição de bolsista do CNPq, no Museu Goeldi em Belém, a FUNAI autorizou a continuação da pesquisa. Eu teria que me apresentar na administração da FUNAI em Manaus.

Então fui de Belém para Manaus, me apresentei e o administrador disse que: “- o assunto Waimiri-Atroari não é mais com a FUNAI, é convênio FUNAI e Eletronorte, mas quem manda lá é a Eletronorte!” Então ele me mandou para o programa. Quando eu fui para o programa, não fui bem recebido. Imediatamente disseram para mim. O coordenador se recusou a falar comigo, o José Porfírio de Carvalho.

Ele estava lá, mas não quis falar comigo. Ele mandou uma pessoa chamada Raimundo Nonato, que era gerente na época (que se suicidou poucos meses depois). Um sujeito apelidado “João das Letras” era chefe de programa de educação.Todos os dois disseram: “- os Waimiri-Atroari não querem mais nada com antropólogo. Eles querem empresas. Eles querem o programa lá. Querem um apoio de empresas para ter muitos bens industrializados, não queriam mais nenhuma presença de antropólogo na área”.

Eu fiquei insistindo. Tinha trabalhado desde 82, dezoito meses e nunca tive problemas durante a pesquisa. Sempre fui bem tratado pelos Waimiri-Atroari. Me receberam muito bem, sempre, apesar de ser uma situação conflituosa. A frente de atração era uma situação muito violenta com vários conflitos entre servidores da FUNAI brigando pelo poder, jogando os Waimiri-Atroari contra outros funcionários, mas fui muito bem recebido. Consegui permanecer 18 meses lá e disseram que teria que ter uma reunião de consulta na base da FUNAI no rio Alalaú e após três semanas me levaram numa Toyota para lá, o próprio Raimundo Nonato, gerente, me levou, mas me levou final da tarde para chegar às 10 e pouco da noite.

Dormi lá, acordei seis horas. Me deram o café e depois me chamaram para fora e me colocaram em uma cadeira com trinta jovens capitães Waimiri-Atroari em volta de mim, todos sentados em cadeiras. E atrás todo o pessoal do Programa Waimiri-Atroari, um assessor do administrador da FUNAI estava lá também.

O capitão principal se levantou e disse que: “ – ninguém sabia quem era você. Agora todo mundo sabe que você é um mentiroso, você veio aqui para enganar índio!”  Aí eu disse: “- Quem é que está dizendo isso?” Ele disse: “- ninguém está dizendo isso. Está nos jornais”!

Todos eles estavam aprendendo a ler e escrever em português. Foram publicadas matérias falsas dois anos antes da época da Constituinte em 1987, o próprio Otávio Lacombe, diretor geral do grupo Paranapanema (na época a mineração Taboca era do grupo Paranapanema) contratou um estelionatário chamado Mauro Nogueira, de São Paulo, para montar uma campanha falsa, dizendo que o CIMI e os antropólogos estavam trabalhando contra a soberania nacional na Amazônia, estavam usando índios para conservar minérios para empresas transnacionais e nestas matérias falsas colocaram meu nome modificado.

Mudaram meu nome, mas era reconhecível. Eles trocaram. O ‘Baines’ era com y e fizeram pequenas modificações, mas obviamente todo mundo sabia que era o meu nome e me colocaram como se fosse um agente de um cartel de estanho internacional. Isso foi em 87. Na época, eu trabalhei um ano no CIMI, mas só no setor de documentos, organizando os documentos. Não tinha nenhuma participação na cúpula do CIMI. Estava lá organizando documento apenas. Mas esse Mauro Nogueira veio conversar comigo, conversou com todo mundo e fez essa montagem e publicou durante uma semana no [jornal] Estado de São Paulo em agosto de 87 e ouve uma comissão parlamentar de inquérito que durou meses. A CPI comprovou que as matérias eram falsas. Mas a mineradora conseguiu o que queria, que era uma cláusula que permitisse mineração de empresas privadas em terras indígenas. Antes eram só empresas estatais e minérios “estratégicos”, que eles chamavam.

Essa nova cláusula permite mineração em terras indígenas com a anuência do povo indígena e a aprovação do Congresso. A aprovação do Congresso é a coisa mais fácil de conseguir. O problema agora é conseguir a anuência dos indígenas.

A estratégia era de encapsular os Waimiri-Atroari dentro do programa, dentro da sua área para que eles não tivessem contato com pessoas de fora e doutriná-los intensivamente para assumir todas as atitudes da empresa, do Programa Waimiri-Atroari, que representava a Eletronorte e indiretamente estava articulada com os interesses da Mineração Taboca. Recebia indenizações pela construção da estrada dentro das terras indígenas.

Éder Rodrigues – Tem uma questão importante que é a leitura. Como que eles aprenderam a ler? Foi o programa Waimiri-Atroari que levou a eles esta possibilidade ou este processo iniciou antes do programa?

SB – Alguns estava aprendendo a ler antes, inclusive durante minha pesquisa pediram para eu começar a ensinar, eu passei vários dias trabalhando com eles, mas o Programa instalou um sub-programa de educação e, nesta época, já estavam começando a ler. Naquela época, acho que poucos deles conseguiram ler, foi lido para eles pelos funcionários do programa.

Depois eles me empurraram dentro de uma Toyota, levaram para Manaus. Saiu nos jornais de Manaus que o Waimiri-Atroari estavam exercendo seu direito de auto-determinação de não aceitar mais nenhum antropólogo na área. Na mesma época eles convidaram um grupo internacional de etnobotânicos. Eu lembro que o pessoal do INPA, de KewGardens da Escócia, junto com pesquisadores de São Paulo e vários lugares para fazer um trabalho de etnobotânica na área, mas a antropologia não! Todos os antropólogos foram afastados totalmente.

Eu descobri poucos meses depois, descobri que no dia anterior a minha ‘expulsão’ (entre aspas), 10 líderes Waimiri-Atroari assinaram com o dedo, com impressão digital alguns assinaram o nome, um termo de compromisso com mineração Taboca, dando direitos exclusivos a mineração Taboca em toda terra indígenas Waimiri-Atroari. Durante a minha pesquisa a Mineração Taboca já tratava a Terra Indígena Waimiri-Atroari como se fosse uma reserva de minérios para eles.

Eu lembro no meio da minha pesquisa, um dos coordenadores descobriu uma equipe de geólogos chefiada pelo geólogo Scalabrinis. Tudo isso está nos documentos da FUNAI. Que invadiu a área que ainda não foi alagada, foi antes do alagamento, a região do rio Uatumã. A mineração Taboca mandou uma comunicação à frente de atração dizendo que se a FUNAI não retirasse os geólogos e sua equipe, eles mesmos iam invadir a Terra Indígena para retirar. Porque eles tinham alvará de pesquisa e lavra em praticamente toda a Terra Indígena Waimiri-Atroari.

Bom, em 87, quando houve essa campanha, eu reclamei e pedi direito de resposta ao Estado de São Paulo que negaram. Disseram que o CIMI poderia ter direito de resposta, mas o CIMI estava sendo ameaçado por alguns bispos da direita de fechar o CIMI se continuasse a bater contra os interesses de grandes empresas.

Na época, o Júlio Gaiger, um advogado do CIMI fez uma reposta no Estadão muito diluída falando sobre a história da igreja católica na Amazônia apenas. Eu fiquei assistindo e não consegui nada pelo Estado de São Paulo, diziam que não iam dar direito de resposta.

Éder Rodrigues – Folha de São Paulo ou O Estado de São Paulo?

SB – O jornal O Estado de São Paulo. Saiu tudo no Estado, todas estas matérias durante uma semana. As pessoas me diziam: vai no Ministério Público Federal. Fui no MPF e fui encaminhado para o Gilmar Mendes, que era procurador. Gilmar Mendes falou para mim: “- olha rapaz contra grandes empresas, contra mineração Taboca, contra Eletronorte, o senhor não tem chance de ganhar. Inclusive nós não podemos garantir a sua segurança se o senhor voltar para a área indígena. Melhor o senhor ficar em aqui em Brasília e não se meter nestas coisas”. Ele, apoiando as grandes empresas como sempre (risos).

Professor Orlando Carneiro – Qual seria o seu entendimento sobre a questão dos grandes projetos para a Amazônia, neste contexto a inserção dos índios Waimiri-Atroari?

SB– Bom, os grandes projetos têm sido um desastre para os Waimiri-Atroari. Balbina acabou alagando uma área muito maior do que eles declaram, porque a área foi desmembrada antes de alagar e, quando alagou, a área inundada foi desapropriada.

O que era território indígena deixou de ser. A Mineração Taboca está poluindo até hoje o rio Alalaú. Está extraindo bilhões e bilhões de reais de minérios do que era território indígena Waimiri-Atroari e está dando uma mixaria para os Waimiri-Atroari para ajudar a financiar o Programa Waimiri-Atroari, que para a empresa não faz diferença nenhuma. É como a gente dar 10 centavos para um mendigo, mais ou menos. Não há benefícios: primeiro, Balbina foi um elefante branco da ditadura militar. Foi construída mais para desviar dinheiro para as empresas que a construíram. Nunca vai pagar o que foi gasto na sua construção em termos de eletricidade. Na sua vida útil, não tem tempo suficiente para pagar tudo o que foi investido.

Mineração Taboca está tirando fortunas do que era terra tradicional dos Waimiri-Atroari e muito pouco disso vai para os Waimiri-Atroari. E estão muito interessados em avançar sobre o resto da Terra Indígena. Em 85 participei de um GT da FUNAI. Fui convidado. Inclusive do GT participou Porfírio Carvalho.Ele não quis falar comigo. Uma vez ele virou para mim e disse que se eu voltar a trabalhar com Waimiri-Atroari: “- você nunca mais vai pisar nesta terra indígena”! Ele gritou assim para mim. E foi a uma das poucas  conversas que eu tive com ele.

Durante o GT levaram a gente para ver Balbina. Para ver a mineração Taboca e tiveram uma reunião lá na mineração Taboca. Colocaram mapas na parede e disseram que: “ – os caminhoneiros estão encontrando índios arredios na área desmembrada”! E que a empresa reconheceu que tinha realmente desmembrado uma área que era terra indígena.

A empresa mineração Taboca queria abrir um jogo limpo e pagar royalties para a área desmembrada, para todo minério extraído. Mas eu e outros membros, o próprio diretor dos Estudos e Pesquisas da época, que era Ezequias Heringer, o chamado Xará, um indigenista, apontamos que se a mineração Taboca reanexar a área ocupada à terra indígena, estavam legalmente dentro da terra indígena e nada impediria que eles avançassem sobre todo território dos Waimiri-Atroari, contando que eles pagassem os royalties. Com isso, acabou o grupo de trabalho.

O próprio administrador da FUNAI na época cortou conversa comigo e com várias outras pessoas. Voltamos para Manaus, Voltamos para Brasília e imediatamente a FUNAI anulou o grupo de trabalho. Eu mandei meu relatório e foi tudo anulado e arquivado. E em vez disso, criaram o programa Waimiri-Atroari da Eletronorte.

Éder Rodrigues – Professor, tem uma coisa que eu gostaria de compreender melhor, porque me parece fundamental, esse território desmembrado foi a partir mapas manipulados: o rio Uatumã se tornou o rio Pitinga! É isso?

SB – Sim. O antigo rio Uatumã, virou o rio Pitinga, um igarapé sem nome virou as cabeceiras do Uatumã e o baixo rio Abonari virou o médio Uatumã e o baixo Uatumã permaneceu como Uatumã. Talvez fique melhor no papel. [Neste momento, professor Baines faz um esboço em papel do mapa da região].

Éder Rodrigues – Foi um laudo apresentado?

SB – Sim, um laudo de um geógrafo militar que foi contratado para fazer o laudo. A área original com a BR 174, Manaus Boa Vista, era mais ou menos como uma borboleta e o rio Uatumã delimitava o lado leste e o rio Abonari descia e juntava com o rio Uatumã. Disseram que as coordenadas do igarapé estavam erradas. Cortaram a área principal alagada pela Usina Hidrelétrica de Balbina e a área já ocupada pela Mineração Taboca. E foi tudo registrado no IBGE, no Rio de Janeiro essa mudança de nome, virou oficialmente.

Éder Rodrigues – Isso foi em 1970?

SB – Acho que 71 e 72, se eu lembro bem. Todos estes documentos eu tenho em Brasília. Geofoto, parece que é o nome da empresa. Laudo assinado por um geógrafo.

Professor Orlando Carneiro – Professor, o que a gente pode perceber é que havia um viés geopolítico, não era só desenvolvimentista, econômico. Eles também tinham um interesse geopolítico na região, certo?

SB – Claro, certo.

Professor Orlando Carneiro– BR 174, Calha Norte.

SB – Calha Norte, de ocupar as fronteiras e tudo isso, sobretudo para beneficiar as grandes empresas mineradoras e hidrelétricas para fornecer energia barata para atender os interesses das grandes empresas.

Éder Rodrigues – Professor, em colóquio interdisciplinar com título “povos indígenas e demarcações de terra: a resistência, o confronto e os desafios jurídicos e antropológicos”, realizado em 2013 em Brasília[5], você falou sobre “os desafios antropológicos frente ao ataque ao direito indígena à terra” tratando de atos legislativos que extinguem direitos dos povos indígenas e que favorecem megaprojetos (mineração, agronegócio e hidrelétricas). O que está por trás destes atos ou como se constrói este pensamento no Brasil?

SB – São ataques diretos aos direitos constitucionais dos povos indígenas para abrir as terras indígenas para desenvolvimento para agronegócio, mineração, hidrelétrica e todas as formas de desenvolvimento. A PEC 215, por exemplo, que permite passar para o Congresso a demarcação de terras indígenas onde não teria mais nenhuma terra indígena demarcada. Fica nas mãos do agronegócio e das grandes empresas de mineração.

O interesse é esse, de tentar reverter, atropelar os direitos. Mas é muito difícil mudar a Constituição, que garante os direitos indígenas. O estatuto do índio de 73 garante os direitos indígenas; a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho [OIT] garante internacionalmente os direitos dos indígenas; a Declaração da ONU sobre o direito dos povos indígenas também garante. É muito difícil um Governo ir contra tudo isso. Mas estão tentando com todas estas manobras políticas.

Professor Emerson Rodrigues– Sem dúvida nenhuma, esse projeto político militar e econômico na Amazônia nos anos 70 demonstra para gente um fracasso no campo político-econômico, sobretudo, diante dos povos indígenas e a lei. A pergunta que faço é a seguinte:  a gente vive na iminência agora da questão do avanço destas situações diante das leis em detrimento dos povos indígenas.

Nós temos um arco mineiro aqui no Caribe, no Orinoco, Mazaruni, no próprio rio Branco, aqui no Amazonas e se concretizar e avançar todas estas ações serão, de fato, um grande genocídio uma grande perda para todos os povos indígenas. Como é que o senhor percebe a maneira que nós podemos, a partir do nosso trabalho, da pesquisa, da ciência, da nossa colaboração, da organização interna dos povos indígenas (achei interessante o que o senhor citou: os Waimiri-Atroari estavam encapsulados, e eu sempre tive essa percepção de alguns povos encapsulados politicamente, economicamente, ideologicamente, academicamente, enfim o que seja), mas de que maneira a gente pode fazer uma frente de debate de trabalho de pesquisa para poder contribuir com estas questões?

SB – Eu acho que através de alianças com os movimentos indígenas, sobretudo, alianças com lideranças que defendem as terras indígenas. Não com lideranças cooptadas, obviamente. Porque há muitas lideranças cooptadas. Mas com lideranças que estão lutando para a defesa dos direitos indígenas, por exemplo, o Conselho Indígena de Roraima [CIR], Joênia Wapichana que foi eleita deputada federal [Rede/RR] que é um bom exemplo, uma pessoa que luta pelos direitos dos indígenas, contra as forças anti-indígenas. Pessoas como a Joênia podem fazer muita coisa e outros também.

Exigir o respeito à Constituição e às leis, que as terras indígenas sejam respeitadas. Ninguém tem nada contra a mineração, contra hidrelétrica, contando que não infrinjam os direitos indígenas. Que pode e vai haver obviamente mineração em muitos lugares e em muitos países do mundo, mas contando que se respeitem os direitos dos povos indígenas e outros povos tradicionais também. Os quilombolas, etc.

Éder Rodrigues – Professor, infelizmente, nós já temos infrações exemplares no Brasil, uma das mais recentes ocorreu em Belo Monte.  Mas queria perguntar sobre a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana[6] (IIRSA). Como você analisa este programa, os impactos e qual a contrapartida brasileira?

SB – As lideranças indígenas, tanto no lado do Brasil, como na Guyana, nos dois lados da fronteira em que eu trabalho, estão muito preocupadas com isso, porque eles veem a pavimentação da estrada Lethem a Georgetown, a ampliação do porto de Georgetown para receber grandes navios internacionais para levar soja e minérios e isso é mais uma estratégia para entrada de grandes empresas transnacionais para extrair minérios, produzir soja, para exportação. É o que está acontecendo. Para incentivar a produção de soja em grandes quantidades, carne, extração de minérios e madeira, tudo para exportação e os indígenas não tiveram nenhum benefício ou muito pouco. Ao contrário estão vendo suas terras ameaçadas por estes grandes projetos.

Orlando Carneiro – Diante do quadro atual, em que se procura atingir os indígenas brasileiros em relação aos seus direitos e suas terras, parece que há possibilidades de manobras por partes destas bancadas reacionárias. Porque a Constituição Federal garante os direitos indígenas. Na parte da Ordem Econômica da Constituição fala da mineração. Umas coisas que está escrita lá é que a mineração não se presta as terras indígenas. Como é que eles vão fazer para transgredir esta parte da Constituição? Que estratégias eles vão traçar para transgredir esta parte legal da Constituição?

SB – Acho que o mais importante são as estratégias que os povos indígenas e a pessoas que apoiam os povos indígenas vão adotar para ir contra estas investidas, estas invasões e contra os seus direitos. Claro que eles sempre vão inventar novas estratégias.

Neste ano, não serão as mesmas que virão ano que vem. Virão novas estratégias e assim por diante, mas os indígenas estão também para  defender os seus direitos. De exigir o cumprimento dos direitos constitucionais e internacionais.

Éder Rodrigues – Professor, isso passa também pelo lugar da Universidade e os espaço que os povos indígenas têm alcançado dentro da Universidade, por isso que eu perguntei sobre o letramento de alguns para, inclusive, o domínio da Constituição, considerando os artigos 231 e 232.

Como a própria deputada federal Joênia Wapichana (REDE/RR) tem dito que: “não se trata do viés ideológico, trata-se de legalidade, da lei que garante os direitos”. A minha pergunta é: qual é o lugar da educação escolar indígena e do acesso dos povos indígenas ao ensino superior?

SB – É fundamental e os indígenas estão muito cientes disso. A importância de cavar mais espaços no ensino superior para poder defender os seus próprios direitos. Não é como 50 anos atrás que não havia nenhum indígena nas faculdades. Se podia fazer que quisesse com os povos indígenas, como na ditadura militar. Expulsaram indígenas de suas terras e nada acontecia nada, porque eles não tinham as condições para se defender juridicamente. Hoje em dia estão se formando. Há muitos advogados indígenas, muitos antropólogos, sociólogos, agrônomos, profissionais em todas as áreas.

Essa inserção dos indígenas no ensino superior é fundamental e a maioria das lideranças indígenas defende isso. Por isso que tantos indígenas estão lutando para entrar nas faculdades. É o caso da Leia que é indígena, da comunidade Araçá da Serra, que fez mestrado e agora está no doutorado. Ela está determinada a realizar uma tese de doutorado muito bem feita. Ela está envolvida emocionalmente no que ela faz. No caso dos índios presos, ela tem até parentes que estão presos.

Pessoas que ela conhece pessoalmente, pessoas com quem ela convivia ao longo da vida estão presos. Ela está lutando pelos direitos indígenas. É uma pesquisa de ação, participativa, colaborativa, implicada diretamente. Ela está entrando em contato com advogados indígenas que podem ajudar em casos de injustiça.

Professor Emerson Rodrigues – Professor, considerando toda esta digressão que o senhor fez, todo o seu trabalho, sua produção bibliográfica, as pesquisas científicas e sua contribuição com a academia, com a sociedade brasileira, latino-americana e do mundo. No momento atual, o senhor falou da educação, desse insulamento, empoderamento e protagnonismo indígena na academia. Como este processo ocorre com os Waimiri-Atraori?

SB – O problema dos Waimiri-Atroari é que o Programa Waimiri-Atroari não permitiu que eles tivessem esta inserção. Obviamente isso vem, espero que venha logo, mas eles foram impedidos de ter acesso, foram mantidos fechados numa redoma. O Porfírio de Carvalho acusava os antropólogos de quererem manter os indígenas dentro de uma redoma, enquanto ele mesmo estava mantendo. Nenhum antropólogo quer manter indígenas no passado. O passado passou, os indígenas estão presentes junto conosco.

Professor Orlando Carneiro –A gente percebe que na atualidade existe um certo silenciamento do indígena, alguns órgãos de imprensa chamam de tragédia [o que ocorreu em Brumadinho, MG]. Na verdade é crime porque algumas pessoas foram presas. Se tem prisão, tem crime! Porque não se fala que alguns indígenas também atingidos por esta onda de lama que passou por esta região de Brumadinho? Porque este silenciamento? Porque fala-se de outras pessoas, mas não dos indígenas? Como se no caminho não existisse indígenas.

SB – Sim. Atingiu alguns grupos indígenas rio abaixo. Já saiu nas notícias, mas não se dá muito destaque a isso, mas é uma tragédia que atingiu a todos :indígenas e não indígenas pelo descaso das próprias empresas. Elas só querem saber de maximizar os lucros, fazer uma barragem que eles sabem que qualquer dia pode romper. Mas não interessa se morrem trezentos, quinhentos ou três mil. O que interessa são os lucros e de estarem em um país que não tem que respeitar as leis, onde há impunidade.

Se fosse em um país onde há punidade, eles não iam fazer isso, porque o risco seria tão grande que iria quebrar a empresa, com os bilhões de indenização que eles seriam obrigados a pagar. Sobre o caso de Mariana, até hoje não resolveram nada.

Éder Rodrigues – Professor, o Brasil tem mais de 300 povos indígenas identificados falantes de 274 línguas, fora os que não tiveram o encontro com a sociedade envolvente. Uma enorme riqueza cultural. Qual a sua mensagem para lideranças indígenas e autoridades do nosso país diante destes novos desafios?

SB – O que é importante é que eles continuem lutando para exigir o respeito aos seus direitos. Tanto constitucionais, quanto internacionais, que é o que eles têm para se defender destas agressões que veem sofrendo.

Éder Rodrigues – Tem alguma pergunta que não fizemos, que o senhor gostaria que fosse feita? Ou alguma colocação fora dos questionamentos?

SB – Acho que o momento atual é um momento muito difícil para os povos tradicionais. São ameaças de reverter toda a legislação, de desfazer demarcações, mas todos os políticos prometem tudo e não fazem nada. Muito do que o governo está dizendo agora, com certeza, não vai conseguir realizar. É mais um fundo de populismo de prometer tudo para agradar a bancada ruralista. Mas espero que a Constituição seja respeitada e que as terras indígenas não sejam desfeitas.

 Fotos: Pedro Alencar (RTU)

FONTE: UFRR – Entrevista: manipulação cartográfica durante regime militar favoreceu mineradora e hidrelétrica na Amazônia – Universidade Federal de Roraima (ufrr.br)

Veja mais informações em:

[1] Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, empresa governamental brasileira, vinculada ao Ministério de Minas e Energia.

[2] Para mais informações sobre Egydio Schwade:  http://www.periodicos.ufam.edu.br/Canoa_do_Tempo/article/view/4113

[3] Para mais informações, confira entrevista com Philip Fearside  http://amazonia.org.br/2018/03/hidreletricas-sustentam-o-lobby-das-empreiteiras-por-contratos-de-grandes-barragens-e-pifia-producao-de-energia-entrevista-especial-com-philip-m-fearnside/

[4] Museu Emílio Goeldi. Para mais informações: https://www.museu-goeldi.br/

[5] https://www.youtube.com/watch?v=QrrEjvgQgrI

[6] Programa focado no avanço da infraestrutura física da integração regional de 12 países da América do Sul, envolvendo infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações, financiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pela Corporação Andina de Fomento (CAF), o Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA) e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

NOTA – A equipe do ECOAMAZÔNIA esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião deste ‘site”. 

Um comentário em “Entrevista: manipulação cartográfica durante regime militar favoreceu mineradora e hidrelétrica na Amazônia”

  1. É UM TEXTO BASTANTE LONGO E QUE TEM NO SEU INTERIOR MUITAS INCONSISTÊNCIAS E AFIRMAÇÕES SEM COMPROVAÇÃO. EXISTEM OUTRAS VERSÕES DA HISTÓRIA COM COMPROVAÇÕES QUE DESMENTEM O AUTOR.
    Prof. Dr. Jaime de Agostinho – UFRR –

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