Raiva ameaça comunidades no interior da floresta amazônica

Morcegos-vampiros e uma das mais letais doenças conhecidas levam medo e a suspeita de desequilíbrio ambiental a comunidades no interior da Floresta Amazônica. Em Manaus, médicos lutam para salvar um menino de 14 anos que contraiu raiva após ser mordido seguidas vezes por morcegos hematófagos, que são aqueles que se alimentam de sangue. O adolescente foi atacado em casa, numa reserva extrativista do Amazonas. Nas últimas semanas, a raiva matou dois dos três irmãos dele. Todos foram mordidos por morcegos vampiros, num caso que pode estar associado ao desmatamento e à seca na Amazônia.

Desde 2002 não havia registro da doença no estado do Amazonas. Os novos casos aconteceram em Tapiira, uma das dez pequenas comunidades na Reserva Extrativista (Resex) do Rio Unini, um afluente do Rio Negro. O extrativismo da castanha-do-Brasil é a base da economia da vila, um aglomerado de casas simples de madeira.

A raiva humana está controlada nas cidades do Brasil, com a vacinação de cães e gatos, mas provoca casos esporádicos nas zonas de floresta e rural do Nordeste e Norte do Brasil. É uma doença extremamente rara, mas que jamais pode ser desprezada. Ela mata 99,9% das vítimas após a manifestação dos sintomas — antes disso, a vacina e o soro podem bloquear o vírus. Longe das cidades, no interior da Amazônia, o vírus ainda circula em animais silvestres e é transmitido pela mordida de morcegos hematófagos (Desmodus rotundus). E em alguns casos no Nordeste, a raiva contaminou pessoas mordidas pelo mico-estrela (Callithrix jacchus), o sagui de tufos brancos comum em toda Mata Atlântica e que muita gente teima em ter como animal doméstico.

ISOLAMENTO DIFICULTA SOCORRO

Como tantos vilarejos mais, Tapiira está limitada pelo rio e a mata fechada. De lá, só se chega e se sai de barco. Para buscar atendimento médico básico, é preciso fazer uma viagem de dois dias pelo rio até o município de Barcelos. Este ano, com a seca, bancos de areia e pedras afloraram no leito do Unini e tornaram mais lenta e perigosa a navegação. De Barcelos a Manaus são, no mínimo, mais 12 horas de barco, desta vez, pelo Negro. Ou uma hora de avião, mas não há voos diários.

O primeiro dos irmãos a ser morto pela raiva já chegou em Manaus em estado crítico. Faleceu em 16 de novembro, num hospital municipal. Era o mais velho dos filhos de Levi Castro da Silva e tinha 17 anos. Não resistiu à encefalite causada pelo vírus. Sua irmã de 10 anos começou a apresentar paralisia e convulsões em meados de novembro. Foi internada na Fundação de Medicina Tropical (FTM) de Manaus, com mais recursos. Recebeu um tratamento experimental, o único existente para quem contrai raiva. Passou duas semanas em coma induzido, mas morreu no último dia 2.

Apenas três pessoas sobreviveram à raiva no mundo — uma delas, um brasileiro. Foram salvas pela terapia desenvolvida nos EUA, que combina antivirais e sedação. Com autorização do Ministério da Saúde, médicos da Fundação de Medicina Tropical empregaram o mesmo método na menina e agora recorrem mais uma vez a ele para tentar salvar o outro irmão.

— Dada a gravidade, ela resistiu muito. Tínhamos alguma esperança. Agora esperamos que seu irmão se salve. Mas o caso é gravíssimo — diz o infectologista Antônio Magela, diretor de assistência médica da fundação, onde o menino está internado.

O ataque de morcegos vampiros não é propriamente raridade na Amazônia. O pai dos três adolescentes, Levi, de 47 anos, contou aos médicos que desde criança se recorda de sofrer ataques. Mas nem ele nem ninguém na região se incomodava muito com isso. Morcegos desse tipo eventualmente fazem parte dos percalços da vida de quem mora na floresta. Só que neste ano, a partir de maio, os morcegos começaram a chegar à comunidade em número muito maior.

— Levi nos contou que este ano foi excepcional e que ficaram alarmados. Os morcegos atacaram pessoas, galinhas e até as tartarugas. A menina foi mordida tantas vezes, dezenas, que o pai tentou protegê-la. Ele colocou uma tela no quarto. Mas não adiantou. O vampiro parece ter um padrão de comportamento que o faz morder seguidas vezes a mesma vítima, seja ser humano ou animal. O pai matou o morcego, mas já era tarde demais — explica Magela.

Os cerca de 700 moradores das comunidades da Resex do Rio Unini começaram a ser vacinados por equipes do Estado do Amazonas com vacinas enviadas pelo Ministério da Saúde. Mas as equipes de saúde dos governos estadual e federal e os técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) enfrentam dificuldades para alcançar os povoamentos.

Há dezenas de relatos de ataques de morcegos vampiros a moradores. E quando uma pessoa é mordida, precisa ser vacinada em até dez dias. Como não foi isso o que aconteceu, já que há relatos de ataques desde o início de novembro, os médicos não sabem se ocorrerão mais casos. Segundo Magela, todos moradores da Resex que disseram terem sido mordidos estão em observação. É uma penosa espera. O vírus pode passar semanas latente antes do aparecimento dos sintomas. Dos quatro filhos de Levi, uma das lideranças das comunidades do Unini, apenas o mais novo não apresentou sintomas. O adolescente de 14 anos estava em pânico quando adoeceu porque acompanhara o sofrimento dos irmãos. A família toda agora está em Manaus, em observação.

SECA PODE AJUDAR A EXPLICAR

Uma das hipóteses levantadas é que a seca deste ano, que baixou o nível dos rios, tenha espantado animais silvestres e reduzido com isso as presas normalmente escolhidas pelo morcego. O ser humano é uma presa eventual, garantem as cientistas Elizabeth Salbé e Lívia Casseb, ambas do Laboratório do Diagnóstico de Raiva do Instituto Evandro Chagas, em Ananindeua, no Pará. Os vampiros preferem os bichos da mata, depois os bovinos e só depois o homem. Em Tapiira, disse Levi aos médicos, os efeitos da seca são evidentes. A baixa do nível do Unini deixou exposto um barranco de oito metros de altura.

— Além da seca, desequilíbrios ambientais, como desmatamentos, podem sim influenciar o comportamento dos morcegos e, com isso, a circulação do vírus — destaca Lívia.

Normalmente, os morcegos vivem no interior da floresta. Eles se abrigam durante o dia em ocos de troncos, árvores caídas, cavernas, vários lugares. E à noite se alimentam de sangue dos bichos da mata. Porém, tudo muda quando o ser humano derruba ou queima as florestas. Como todos os outros animais, os morcegos fogem e buscam novos lugares para viver e conseguir sangue. As casas dos ribeirinhos, sem barreiras para animais alados, oferecem abrigo e o sangue dos moradores adormecidos.

Além de vacinar a vítima imediatamente após os ataques, Lívia só vê uma solução para evitar novos casos de raiva em comunidades da floresta. E o remédio se chama educação. Acostumada com morcegos e outros animais, a população raramente sabe que a mordida é perigosa. Quando a doença se manifesta, o que é raro, são os médicos que atendem os ribeirinhos que muitas vezes não pensam logo na raiva

— Muitos médicos de minha geração nunca viram um caso de raiva, que foi controlada com a vacinação de cães e gatos nas cidades. Pensam que é coisa do passado. Mas o vírus está lá. Em algum lugar. Viver na floresta é perigoso, sempre um desafio — observa Magela, de 55 anos.

Fonte: O Globo

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