É preciso pressionar o governo a recuperar as informações que já foram produzidas sobre a Renca

 “Não usar as informações científicas é dar uma banana para a sociedade brasileira”, afirma o ambientalista e pesquisador do Inpa, Adalberto Val, em entrevista ao Jornal da Ciência.

 A extinção da Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca), por decreto presidencial publicado na última semana, coloca em risco o equilíbrio ambiental da Amazônia e o impacto se propaga por quilômetros, colocando em perigo todo o ecossistema e gerando uma série de degradações sociais. Esta é a afirmação do biólogo, ambientalista e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Adalberto Val.

Há mais de quarenta anos ele se dedica a estudar a Amazônia, as adaptações biológicas às mudanças ambientais, de origem natural e as causadas pelo homem, e, por esse trabalho e militância em defesa do desenvolvimento sustentável da região, já recebeu diversos prêmios, como a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico,  o Prêmio Excelência da American Fisheries Society e, mais recentemente, em 2016, o Prêmio Anísio Teixeira de Educação Superior. Conforme ressalta na entrevista a seguir, a discussão sobre a Renca precisa considerar todas as evidências científicas levantadas ao longo de décadas.  “O que precisamos é, definitivamente, aproveitar as informações que geramos nos diferentes laboratórios do País inteiro”, diz.

Val alerta que a suspensão por 120 dias do decreto não significa que ele foi cancelado. E é preciso que a comunidade científica se aproxime da sociedade em geral para pressionar o governo a recuperar toda a informação que foi produzida a partir dos laboratórios de pesquisa no desenho das intervenções nas várias áreas, não apenas na parte ambiental, mas, também, na educação, na saúde, na segurança. “Se a gente baixar a guarda agora, esse negócio volta a vigorar. Não podemos deixar isso acontecer”.

Jornal da Ciência – Foi publicado um primeiro decreto extinguindo a Renca no dia 22 de agosto, depois, o governo editou esse decreto, publicou um segundo. A última notícia é que o governo suspendeu os efeitos do decreto e estipulou um prazo de 120 dias para diálogos com a sociedade. Em nenhum momento, até então, o governo havia proposto diálogo com cientistas e ambientalistas.  E o que se pode, então, esperar desse período de discussões?

Adalberto Val – Eu duvido muito que vai haver toda essa abertura para uma discussão mais científica. O Brasil precisa recuperar a informação produzida a partir dos laboratórios de pesquisa no desenho das intervenções nas várias áreas, não apenas na parte ambiental, mas, também, na educação, na saúde, na segurança. O governo cria uma coisa que fica bonita no papel, e acha que isso vai funcionar na prática. É o caso da Renca. O segundo decreto não muda absolutamente nada do anterior: é como se você tivesse, por exemplo, no meio de um quarteirão, na cidade, uma intervenção pontual no fundo de um terreno que você acha que não vai interferir em nada. E aí, você faz um buraco de 50 metros. É claro que isso vai afetar todo mundo que está do lado. Na Renca é a mesma coisa. Imagine que existem várias reservas – biológicas, indígenas, parques estaduais – e você vai fazer uma intervenção pontual, estipulando que não se pode entrar na reserva dos índios, ou  na reserva biológica, mas essas coisas ficam ali do outro lado da rua. É claro que os grileiros que vão para lá se aproveitar desse momento, vão invadir a floresta! É claro que vão querer aproveitar o que tem na reserva indígena! Não faz sentido pegar um papel lá de Brasília e achar que as coisas vão acontecer na Amazônia como eles desenharam.

É uma questão científica mesmo. O decreto que extingue a Renca não foi cancelado. Ele foi suspenso por 120 dias. Isso significa que se a gente baixar a guarda agora, esse negócio volta a vigorar.  Não podemos deixar isso acontecer.

JC – Por que a extinção da Renca pode ser problemática?

AV – A gente não pode imaginar a floresta como um santuário. Mas precisamos usar os recursos naturais de forma inteligente, a partir de estudos científicos, para que a gente possa causar o menor impacto possível. Quando a gente fala de floresta, a gente não fala apenas da cobertura vegetal, a gente fala de tudo, inclusive do ambiente aquático. Todos esses compartimentos do ecossistema estão interligados. Se você remove as florestas, que é a primeira coisa que acontece no garimpo, você interfere em todos os demais processos. Vários estudos demonstram que se você tem um ponto de distúrbio na floresta, esse ponto de distúrbio se propaga por quilômetros. Mesmo que você não remova a cobertura vegetal.

Outro ponto importante sobre a extinção da Renca é a poluição das águas por metais, principalmente o que a gente chama de metais de transição – que serão minerados no local, como cobre, níquel, ouro. Nesse processo todo, acaba-se usando não apenas tecnologias químicas, mas também facilitando a drenagem de parte do material garimpado para dentro da água. Esses metais são altamente tóxicos para os organismos aquáticos, em particular os peixes. Em diversas publicações nossas mostramos que os peixes da Amazônia evoluíram por milhões de anos em ambientes que são pobres em metais. Quando os peixes evoluíram em ambientes que não tinham quase nada de metais, eles desenvolveram adaptações para aproveitar qualquer resquício desses minerais na água. Nas regiões temperadas, você precisa de níveis mais altos para poder causar problemas para os peixes. Mas na Amazônia, qualquer metal que você joga na água, intoxica esses animais. Dá uma overdose neles. No caso do cobre, alguns microgramas por litro são suficientes para matar um monte de espécies de peixes.

Esse é o lado ambiental. Cujas informações a sociedade brasileira já possui por meio das pesquisas realizadas ao longo de anos.  Não usar essas informações é dar uma banana para a sociedade brasileira.

Por outro lado, quando se abre uma área como essa para garimpo, vai ter um monte de gente correndo para essa região – é uma corrida do ouro. Isso gerará distúrbios sociais de todas as ordens: grilagens de terra, interações de ribeirinhos e indígenas com essa população que chega nesse lugar, trazendo degradações sociais de vários níveis, problemas de segurança, educação, inúmeros problemas de saúde, de comunicação, transporte, etc. Tem um vasto conjunto de implicações cuja conta cai no colo da sociedade.

JC – Como o senhor avalia uma decisão tão impactante para o País ter sido tomada por decreto, sem debates? O que isso pode indicar em termos de metas de preservação ambiental no País?

AV – O que parece nessa história toda é o seguinte: o governo já não está conseguindo tomar conta daquela área porque já tem gente invadindo lá. E o que o governo faz diante disso? Ao invés de resolver a situação, ele toma uma posição inversa e legitima essa ilegalidade.  Porque não tem como tomar conta. E aí, no decreto, ele afirma que não vai haver destruição ambiental porque ele vai tomar conta. Mas ele já não está tomando conta!

Ou seja, no papel, está tudo muito bonito, mas, na prática, a coisa desmancha todinha. A gente já tem áreas degradadas na Amazônia. Deixemos o que está protegido, protegido. E nas áreas onde já tem um efeito de degradação mais significativo, utilizemos a informação científica para aproveitar os recursos naturais e ainda, simultaneamente, recuperar essas áreas. É o caso da agricultura. Não tem que ficar avançando a produção em cima de áreas novas, temos que aproveitar as áreas que já estão degradadas e usar a ciência que a gente tem para produzir naquela área.

Há uma conexão disso muito perigosa com o fato de não providenciarmos uma educação de alto nível a essas novas gerações, para serem capazes de julgar criticamente o que se deve ou não fazer com o meio ambiente. É preciso estimular a sociedade a cobrar do governo uma educação de alto nível, do fundamental ao ensino superior. Estamos perdendo dramaticamente a capacidade crítica da sociedade sobre a falta de investimentos no meio ambiente. E, simultaneamente, estamos colaborando para a degradação do ambiente. Ou seja, quem tem a capacidade de produzir decretos acaba não tendo os contrapontos de uma sociedade bem educada.

JC – Na sua opinião, qual a probabilidade de o governo ouvir a comunidade científica e a sociedade em geral nesse período de discussões sobre a Renca?

AV – Eu tenho dúvidas quanto a isso. Porque já não ouviu. O governo deveria ter ouvido a comunidade científica antes de escrever o decreto. Eu diria mais: não é muito exigir do governo que ele utilize as informações que a sociedade produziu. Essas informações estão publicadas, ou em trabalhos científicos, ou em reportagens de jornais, nas milhares de teses e dissertações que foram defendidas nos diferentes programas de pós-graduação do Brasil. O governo tem um conjunto de técnicos capazes de ler esse material e capazes de assessorá-lo  bem nesse momento em que ele necessita dessa informação robusta.

Mas, como vimos, os próprios ministérios do Meio Ambiente e das Minas e Energia estão batendo cabeça. Eles têm posições antagônicas.

O que precisamos é, definitivamente, aproveitar as informações que a gente gera nos diferentes laboratórios do País inteiro e trabalhar fortemente por uma sociedade cada vez mais bem educada, que contribua para termos uma situação adequada e responsável no País.

JC – Como a comunidade científica precisa se posicionar para ter maior poder de pressionar o governo? O que ela pode fazer para ser ouvida?

AV – Essas coisas não são construídas de um dia para o outro. Nós precisamos urgentemente colocar a ciência brasileira no colo da sociedade. A gente não faz mais uma ciência neutra, a gente faz uma ciência voltada para a sociedade na qual a gente está inserida. Precisamos que a sociedade participe desse processo. Em situações como essa, ou em situações anteriores, como quando o governo extinguiu o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), é importante o apoio da sociedade. Na época em que foi extinto o MCTI, foi extinto também o Ministério da Cultura. Mas houve uma mobilização de artistas, que sensibilizou a sociedade e o Ministério voltou. Com o MCTI isso não aconteceu. Ou seja, é claro que a música e o cinema fazem mais parte do dia-a-dia do cidadão do que o experimento com uma droga nova ou um gene novo que pode ter um papel extremamente importante amanhã na cura de alguma doença. A arte faz muito mais barulho que esse tipo de informação, que é mais difícil de digerir. Mas precisamos implementar no País uma cultura da interação com a ciência, ampliar a divulgação científica para que, em momentos como esse,  a sociedade saiba como agir – porque ela estará informada. A gente nunca vai defender aquilo que não conhece. Precisamos fazer com que todos saibam o que está sendo produzido dentro dos laboratórios de pesquisa do País.

No caso da Renca, em particular, a coisa só tomou corpo porque o barulho foi muito grande, assim como a repercussão internacional.

JC – Como o senhor avalia o impacto das políticas atuais para a Amazônia, especialmente dentro das perspectivas de metas de sustentabilidade? Para onde estamos andando?

AV – Estamos andando para trás. Como eu disse, a coisa fica muito bonita no papel, mas no dia-a-dia, a coisa não anda. Nas várias áreas sociais. Avançamos muito com o apoio das fundações estaduais de apoio à pesquisa, com a capacitação de pessoal em nível de doutorado, mas avançamos muito pouco na fixação de recursos humanos qualificados, especialmente na Amazônia.  O desequilíbrio regional em termos de capacidade de pesquisa aqui na Região Norte continua o mesmo de duas décadas atrás. Continuamos na faixa dos 2,5% do investimento total do governo em CT&I em todo o País. Se tomarmos como referência 2009, 2010, quando o investimento em CT&I nacional girava em torno de R$10 bilhões, e em 2017, o investimento é cerca de R$2,5 bi – ou seja, quatro vezes menos –, é difícil conseguir manter um avanço para superar o fosso que separa a Amazônia do resto do País. A gente construiu nos últimos quinze anos laboratórios muito competitivos na produção de informações robustas sobre a Amazônia, que poderiam ser utilizadas para intervenções mais seguras na região. A gente avançou muito nessas áreas, mas em questão de muito pouco tempo, cerca de dois ou três anos, estamos perdendo essa infraestrutura por falta de manutenção e, ainda por cima, o governo não está usando a informação que foi produzida aqui. É um duplo crime contra a sociedade brasileira.

Daniela Klebis – Jornal da Ciência

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