Etnia vive em terras dentro da reserva mineral extinta por decreto pelo Governo Temer. Decisão foi suspensa após protestos, mas indígenas querem que ela seja derrubada de vez.
Os índios Wajãpi, que se espalham por um pedaço da Amazônia brasileira, são uma das memórias vivas mais antigas deste país. Viviam na floresta amazônica desde antes que o Brasil fosse descoberto em 1500, e sobreviveram todos estes séculos graças à relação simbiótica que mantêm com a natureza. Cuidam dela, e ela cuida deles. Apesar de levar tanto tempo ali, só conseguiram demarcar suas terras legalmente em 1996, durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso. Mesmo assim, são constantemente acossados por madeireiros e garimpeiros ilegais. Por isso, se movem pela selva para defender suas fronteiras. Sabem que são alvo potencial de interesses dos não índios, como eles chamam as demais raças.
Os Wajãpi se concentram numa área de 6.000 quilômetros quadrados, no Estado do Amapá, um pouco abaixo da Guiana Francesa. Uma placa na entrada avisa que é proibida a entrada de estranhos. O EL PAÍS obteve autorização para visitá-los na semana passada, enquanto digeriam as notícias sobre o imbróglio envolvendo o fim da Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca). Inicialmente extinta por decreto pelo presidente Michel Temer, a decisão agora está suspensa até o final do ano. O Governo quer que ela seja acatada para ampliar o acesso das mineradoras à floresta, mas os Wajãpi não querem nem ouvir falar do assunto, mesmo com a promessa de que suas terras serão preservadas. A Renca pega metade da reserva Wajãpi, o que deixou os índios bastante irritados. “Como alguém pode tomar uma decisão sem consultar quem será afetado?”, questiona Japu Wajãpi, um dos 1300 indígenas desta etnia que vive nas aldeias da área indígena.
Para chegar ali, é preciso pegar uma estrada de terra saindo da capital Macapá. São seis horas de viagem com verde dos dois lados do caminho. Chegando à reserva, mais verde ainda. A perder de vista. Entrar nesse pedaço da floresta é como atravessar um portal. Homens e mulheres andam com uma espécie de pareô vermelho, e o dorso nu, durante o dia, para suportar o calor de mais de 30 graus. Suas casas são construídas com bambu, cobertas com palha, onde eles dormem em redes. Vivem de forma comunitária, do cultivo de alimentos, além da caça e da pesca. Pintam-se com tinta de jenipapo e de semente de urucum. Todas as mulheres carregam um pente na cintura para desembaraçar os cabelos. Cuidam das crianças e se preocupam com a preparação dos alimentos, enquanto os homens ficam com os trabalhos que empregam força física, além de vistoriar as suas fronteiras.
A relação com a floresta é umbilical e mística. A Amazônia, entendem eles, é de propriedade de deuses invisíveis. “A terra tem dono, o rio tem dono, as árvores têm dono. Não foi o homem que inventou a natureza”, diz o cacique Kasiripiná Wajãpi. Por isso ela tem de ser respeitada, e os minérios, ficar onde estão para que as árvores estejam sempre em pé. “Sem a gente acho que esta floresta nem existiria”, desabafa. É a floresta que os alimenta e os protege da ganância dos homens brancos que os perseguem ao longo da sua história.
A nova ameaça atende pelo nome de Renca, a área de 46.499 quilômetros quadrados, cobiçada pela mineração, muito embora só haveria acesso a 10,5% de área desse quinhão. Apesar do nome – reserva nacional do cobre e associados – a Renca foi criada no final da ditadura, mais dentro de uma estratégia nacionalista dos militares para proteger a área dos estrangeiros, do que um verdadeiro intento de desenvolver a mineração. Nenhuma mineradora teve acesso ali, muito embora haja registro de mil garimpeiros ilegais, segundo o Governo, incluindo pistas de pouso de avião clandestinas. Na prática, a Renca contempla uma dezena de reservas ambientais, como a dos Wajãpi, e a comunidade de São Francisco de Iraitapuru, no sul do Estado, onde vivem famílias que vivem da extração de castanha. Segundo o instituto Imazon, somente um décimo da Renca não é reserva ambiental e poderia ser explorada.
Localizada entre os estados do Pará e Amapá, a Renca equivale a uma Dinamarca. Acumula tesouros, como ouro, cobre e manganês. Mas tocar na selva amazônica é um problema, quando 20% da fauna do planeta vive dentro dela. Por isso a decisão de Temer gerou reações imediatas. Criou, inclusive, um mal-estar dentro da União Europeia, que estaria cogitando uma posição oficial contra as mudanças na região.
De nada adiantou o Governo garantir que vai preservar as áreas protegidas. Ninguém acredita que isso seja possível sem gerar danos a elas, uma vez que o ecossistema seria afetado de uma forma ou de outra. “Se eliminar a Renca, começa a corrida da mineração para a Amazônia”, alerta Verena Almeida, ecóloga que trabalha com a floresta. Com ela, viriam o desmatamento, e rios poluídos. “Mesmo que a mineração esteja longe daqui, o rio vai seguir o fluxo e trazer contaminação para dentro da nossa reserva”, reclama Japu Wajãpi. Viria, também, um aumento da população, atraída pela “corrida do ouro” na Amazônia, colocando em risco a vida dos índios e dos ativistas que defendem as florestas.
Não se trata de exagero. As notícias de assassinatos de indígenas em conflito por terras e de defensores do meio ambiente se multiplicaram no Brasil nos últimos tempos. Nesta sexta, a agência de notícias Amazônia Real teve a confirmação de que houve assassinato de índios isolados por garimpeiros ilegais na terra indígena Vale do Javari, oeste da Amazônia. O crime teria acontecido no mês de agosto. O Ministério Público Federal do Amazonas está investigando o caso. Um relatório da ONG Global Witness, divulgado em julho, revelou que o país foi campeão de assassinatos no mundo em 2016, com 49 ativistas mortos.
Os Wajãpi sabem os riscos que correm e por isso se articulam com outras comunidades que vivem da floresta. Buscam apoio até de organizações ambientais estrangeiras. Querem proteger sua etnia e sua cultura, com seus códigos próprios (incluindo a matemática Wajãpi), que perdura durante gerações. Falam um idioma da família Tupi Guarani. Mas há poucas décadas adotaram o português como seu segundo idioma. Foi uma concessão para aprender a defender-se das ameaças constantes.
Eles quase desapareceram duas vezes ao longo da história. A primeira, teria sido por uma dor de amor, quando o país ainda era colônia de Portugal. Um ancestral inconformado com o fim de um relacionamento, decidiu se vingar da mulher que o desprezou. Pediu aos portugueses uma porção venenosa que utilizaria para matá-la. Algo deu errado, e o tal veneno matou não só a vítima, mas quase toda a aldeia.
Depois disso, se isolaram nas matas, e tinham contatos muito eventuais com os não indígenas. A segunda prova de fogo se deu nos anos 1970, ao contrair sarampo. A doença chegou por exploradores de minério e madeireiros, quando o Governo militar construiu uma estrada federal para ligar Estados da Amazônia. A rodovia passava por diversas terras indígenas. Os Wajãpi somavam, então, 2000 pessoas. A falta de anticorpos matou quase toda a população. Sobraram apenas 150. Kasiripiná foi um dos que viu bebês, velhos e crianças morrerem naquele tempo. “Não queremos que isso aconteça de novo. Por isso Temer tem de eliminar esse decreto para sempre”, conclui.
A pressão para derrubar a decisão presidencial chegou ao Ministério Público Federal do Amapá que entrou com uma ação para anular o decreto em definitivo. A Justiça do Estado concedeu uma liminar acatando o pedido. Mas, os Wajãpi sabem que o perigo vem tanto dos potenciais invasores, como de interesses econômicos poderosos, como os que estão sendo defendidos no Congresso. Caso da PEC 215, que quer rever demarcações, ou o PL 1610, para garantir a exploração de minério em terra indígena, ambos defendidos por aliados do presidente Michel Temer. Após assinar o fim da Renca, os Wajãpi se convenceram que o Brasil, por primeira vez, “tem um presidente sem alma, sem espírito”, diz Jawapuku Wajãpi. “Temer não sente dor, não enxerga a floresta, nem os indígenas, nem as crianças”, diz ele. A luta dos Wajãpi para manter a Amazônia intacta continua.