Irmãs lutam pelo resgate do povo Shanenawa, no Acre

Na aldeia da etnia vivem 71 mulheres e apenas 16 homens, incluindo nesse número até as crianças do sexo masculino.

Uma aldeia nova, um lugar onde fosse possível resgatar a identidade de um povo que almejava viver sem a influência imposta pelos centros urbanos. Uma vida harmoniosa em contato com a floresta era o que as seis irmãs da etnia Shanenawa, no município de Feijó, distante 364 quilômetros da capital Rio Branco, no Acre, desejavam para seu povo e para as futuras gerações.

E foi desse desejo que emergiu há três anos, entre as árvores de uma floresta secundária na Amazônia brasileira, uma nova comunidade, a Shanekaya, que na língua do tronco linguístico Pano significa povo verdadeiro.

O movimento para deixar a antiga aldeia que habitavam, a Morada Nova, distante sete quilômetros da atual, foi encabeçado pela irmã do meio, a índia Edina Carlos Brandão, de 42 anos. Ela, que atualmente é representante de Articulação Política da Aldeia Shanekaya, conta que boa parte da família estava insatisfeita com a maneira como a vida em comunidade era administrada ali pelas lideranças locais.

Segundo Edina, faltava espaço para plantar, havia o consumo de bebida alcoólica, a espiritualidade, assim como o consumo e o preparo da Ayahuasca – a bebida sagrada dos povos indígenas preparada a partir de um cipó e uma folha – haviam se perdido pelo caminho, a língua nativa quase não era mais usada e a comida tradicional fora substituída pela industrializada, trazendo problemas de saúde como a obesidade e o diabetes.

“A gente queria uma vida mais harmoniosa, mais pura na floresta, com produção agrícola e com a volta do nosso artesanato. Então fomos falar com o nosso pai para ele nos ajudar a encontrar um novo lugar”, disse Edina.

O genitor, seu Amaral, 97 anos, reuniu-se, então, com as filhas e demais membros da família em um ritual tradicional para pedir aos espíritos que o ajudassem a descobrir um espaço na floresta onde uma nova aldeia pudesse ser formada.  E em uma das visões proporcionadas por meio da bebida sagrada, ele compreendeu onde estava esse local, e que nele uma nova forma de vida em comunidade seria possível.

No dia seguinte a família já saiu em retirada, abrindo caminho na mata com seus integrantes munidos apenas de algumas ferramentas até encontrarem na vida real aquilo que a Ayahuasca havia mostrado. “Quando chegamos tinha um igarapé e muita mata nativa. Era ali mesmo que íamos ficar e os homens já se reuniram para o serviço braçal. Depois de um mês começamos a mudar para lá, levando nossas coisas aos poucos.”

Apesar de os homens terem se reunido para realizar o serviço mais pesado, esse não é o tipo de atividade a que as mulheres costumam se furtar. Na Shanekaya elas fazem de tudo e, como diz Edina, “a gente broca, derruba, limpa. Só não carregamos pau se ele for muito pesado mesmo.”

A Shanekaya é conhecida por ser uma aldeia feminina. A comunidade é composta por 71 mulheres e apenas 16 homens, incluindo nesse número até as crianças do sexo masculino. Mas não é somente pelo gênero feminino ser a maioria que elas se destacam, mas sim porque as mulheres desempenham a liderança. Professoras, produtoras rurais, representantes das comunidades, articuladoras políticas, líderes espirituais, caciques.

Edina foi escolhida como a primeira cacique pelo seu papel como líder, mas passou o comando para uma das irmãs devido aos compromissos externos que exigiam dela muito tempo fora da aldeia. No entanto, a irmã ficou doente e quem assumiu foi o marido, o Nay Nawa. E pela primeira vez o comando estava nas mãos de um homem.

Mas o posto é provisório e deve ser devolvido para alguma das irmãs já no próximo ano.

“Sentimos muito o impacto tendo um cacique homem. A comunidade ainda não se habitou com uma liderança masculina. Somos uma aldeia de mulheres”, disse Edina.

Segundo ela, quando a comunidade foi formada houve muito preconceito porque os homens consideravam que somente eles podiam ocupar cargos de liderança. “Sofremos barreiras porque muitos não queriam que a aldeia recebesse os benefícios, mas nós conseguimos com muita luta e articulação. E agora mostramos para as outras aldeias que a mulher sabe muito bem como conseguir o melhor para a sua comunidade”, disse Edina.

Ela se refere ao fato de a Shanekaya, em três anos de existência, já ter a sua própria escola, ter sido beneficiada no projeto do governo federal Luz para Todos, ter formado uma rede de artesanato e já ter conseguido substituir a comida industrializada por aquela que é plantada dentro da própria terra.

Na aldeia tem mandioca, tem milho, tem batata, tem mamão, tem macaxeira, tem arroz, tem abacate, tem abacaxi, tem ingá, tem graviola e tem caju. Tudo fresco, sem agrotóxico e sai do pé direto para a casa das famílias, que plantam juntas e colhem unidas. A língua original está sendo retomada aos poucos e a espiritualidade também entra no esforço conjunto desse povo em busca dos ensinamentos deixados por seus ancestrais.

Apesar de o movimento para bater em retirada em busca de um novo modelo de vida ter sido liderado por ela há três anos, Edina, que é casada com um não-indígena e é mãe de quatro filhas e um filho – o caçula – começou o trabalho como representante das mulheres indígenas Shanenawa muito antes, nos idos dos anos 2000. “A gente não tinha oportunidade de reivindicar nossos direitos e precisávamos mostrar que o papel da mulher não era só para estar na cozinha e cuidando de filho.”

Hoje ela diz sentir muito orgulho do trabalho desempenhado e das conquistas alcançadas, e que espera servir de exemplo para outras mulheres indígenas. “Capacidade nós temos. Só precisamos de oportunidade. Não somos boas só para cuidar de filhos e fazer artesanato. Podemos ser líderes.” E para completar a satisfação, durante a entrevista ela contou que foi eleita a primeira presidente indígena do conselho distrital de saúde indígena do Acre, assumindo em setembro com um mandato de dois anos.

O festival no terreiro

Desde 2015 os Shanenawa mobilizam toda a aldeia para realização de uma grande festa no terreiro. Amãytí Mãnã Runukeneya é a frase que recebe quem visita a comunidade que em tradução livre significa “terreiro da jiboia colorida”. A jiboia é considerada um animal sagrado para várias comunidades indígenas.

O festival, que tem duração de 24 horas ininterruptas, reúne índios de outras aldeias e etnias. Trata-se de uma grande celebração ao próprio povo, com músicas e brincadeiras tradicionais. Toda a comida servida é retirada das plantações e o ritual que fecha a noite é o momento em que as mulheres bailam e soltam as suas vozes ditando o ritmo do terreiro. A celebração é o momento dos integrantes da Shanekaya mostrarem aos demais que uma outra realidade é possível.

Mas, Edina, como você imagina que estará o seu povo daqui a 20 anos? Questiona a reportagem, ao que ela responde: “Espero que a nossa cultura ainda esteja viva, que a nossa identidade permaneça e que meus netos e bisnetos possam ler isso. Nós somos uma nação, nós existimos e não podemos deixar acabar.”

A história dos Shanenawa

Eles são uma etnia que viveu a mesma história de muitas outras no Acre por conta da rápida ocupação da Amazônia em função do extrativismo e exploração do caucho. Eram utilizados para o fornecimento de mão de obra e insumos para os seringueiros na região.

Além disso, de acordo com as histórias contadas pelos índios, os Shanenawa “fugiram” da sua região de origem, o rio Gregório, por conta de conflitos com o povo Yawanawa, o que fez com que eles migrassem para a região do rio Envira e assumissem a identidade dos Katukina a fim de se “camuflarem” e não se indisporem com os Yawanawa mais uma vez. Porém, ao longo dos anos, os Shanenawa foram reafirmando sua identidade original.

A Morada Nova, a comunidade de onde as irmãs saíram, foi a primeira aldeia a ser formada. Atualmente já são nove comunidades espalhadas pela BR-364, nos arredores do município de Feijó, única região onde essa etnia pode ser encontrada. Por estar muito perto da cidade, sofre os impactos da influência dos não-indígenas.

A Shanekaya foi a última aldeia a ser criada e já serve de exemplo para muitas outras. E como eles dizem lá, em cada momento de celebração ou agradecimento, Shava shava, que na nossa língua é o mesmo que dizer “Viva.”

Maria Fernanda Ribeiro, especial para a Amazônia Real – VER FOTOS EM:

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