Comunidade resistiu à ameaças de morte, à debandada para a cidade e, recentemente, à chegada de novos invasores.
Aos 98 anos, a indígena Jaminawa Severina Nunes costuma acordar cedo, pegar o facão ou o machado e se pôr a derrubar as árvores frutíferas que nascem ao redor da casa onde vive, na aldeia São Paulino, às margens do rio Purus, fronteira do Acre com o Amazonas. Seu filho, o cacique Francisco Saldanha Menezes 51, acha que, por conta da idade, Dona Severina não está mais com o juízo em plena ordem. O fato de ela receber os visitantes ocasionais falando espanhol colabora um tanto para a tese.
Basta uma conversa rápida, contudo, para perceber que a velha indígena não tem nada de senil. “Eu plantei tudo isso aqui”, disse em bom português, apontando o facão para o pomar diante do galinheiro. “Agora eu vou morrer. Mas antes vou derrubar tudo, porque não vou deixar pros brancos não”.
A revolta de Severina é reflexo da situação em que vivem os indígenas Jaminawa, espremidos numa área de 8 hectares, ou 80 mil metros quadrados. Além de minúscula diante dos cerca de 25 mil hectares que os índios reivindicam junto à Funai, a terra é uma faixa estreita entre o rio Purus e uma área alagadiça – onde apenas em certas épocas do ano é possível cultivar banana, feijão e outros alimentos do grupo. “A maior parte fica em área que não pode plantar”, diz o cacique.
Falantes da língua Jaminawa, ou Yaminawa, do tronco linguístico Pano, eles se espalham pela região do Acre, do Peru e da Bolívia. A exemplo dos demais povos nativos da Amazônia, são agricultores e caçadores. Essa situação de inter-relação com a floresta – que oferece caça, pesca e produtos diversos – é um modo de vida que só é possível se ocorrer em grandes áreas preservadas.
Severina é parte de um dos cinco grupos da etnia Jaminawa. Chegaram ali depois de serem expulsos por fazendeiros da área que moravam, transformada em 2004 no parque estadual Chandless, segundo maior da região norte. A Funai já fez um laudo antropológico sobre as terras onde eles moram hoje, e as identificou como indígena. “Mas não delimitou nem demarcou”, pontua o agente do Conselho Indigenista Missionário Lindomar Padilha. Procurada, a Funai diz que asdemarcações em São Paulino e em Caiapucá – ambas da etnia Jamaniwa – estão em estudo, assim como outras 112 terras em todo o país.
Apesar dos indígenas já habitarem o local, marcado com placas da Funai, fazendeiros se instalaram no entorno da aldeia São Paulino em 2010, reivindicando para si a posse das terras. “Os fazendeiros não moram aqui, mas permitem que caseiros fiquem na área e criem os bois”, afirma Lindomar. “Essas pessoas, que não tinham onde morar, terminam extremamente gratas ao fazendeiro, que não paga nada para esse caseiro. Essa é a relação mais complexa aqui. O fazendeiro grila, o posseiro vem e bate de frente com o indígena. É uma luta de pobre contra pobre”.
Desde então, os indígenas Jaminawa passaram a viver um cotidiano de insegurança e ameaças: roçados amanheciam cercados, plantações eram envenenadas, placas de sinalização eram arrancadas e jogadas no rio, grupos de capangas zanzavam pela região exibindo armas de fogo.
Diante disso, indígenas começaram a deixar a aldeia e migraram para Sena Madureira, cidade onde muitos passaram a viver na miséria, como pedintes. “Com medo de morrer, meu irmão caçula foi embora”, diz o cacique. No auge da debandada, restaram apenas 13 das 27 famílias, mas a aldeia resistiu. A despeito das ameaças, eles dificilmente deixariam de vez a região, principalmente porque há toda uma geração indígena enterrada em um cemitério local. “Para os Jaminawa, quando a pessoa morre, ela é como que semeada, passa a fazer parte da terra,” explicou o agente Padilha.
Segundo ele, a raiva de Dona Severina para com os pés de fruta teria a ver com esse mesmo princípio. “O meio-ambiente, para eles, é como se fosse um grande altar. Eles preservam, porque preservam a si próprios e se veem como parte desse cenário natural. Sair daqui seria o mesmo que morrer”, explicou sentado num banco de madeira, sob um pé de jambo ainda poupado das machadadas da mãe do cacique.
Padilha conta que a situação de conflito iminente começou a arrefecer em 2014 depois que um dos fazendeiros, conhecido como Teodorico, afirmou, em uma reunião com outros invasores da terra, que os índios que não deixassem a região não iriam acordar no dia seguinte. Poderia ser apenas mais uma das várias ameaças de morte a que os habitantes locais estavam sujeitos. Dessa vez, contudo, a fala foi gravada, o que motivou um mandado de prisão contra o fazendeiro, que ainda hoje está foragido.
Em março de 2014, a Funai, com o apoio da Polícia Federal, cumpriu a primeira fase de notificação da reintegração de posse. Quatro grileiros foram notificados pessoalmente. Em 15 dias, desocuparam a região voluntariamente, “de maneira a evitar qualquer conflito”, segundo a Funai. Com a saída deles, e principalmente de Teodorico – que era o mais acintosamente violento, mantendo constantemente capangas armados na região – a névoa de ameaça que envolvia os indígenas Jaminawa se tornou menos densa. Houve, então, um movimento de retorno da cidade para o campo. Atualmente 23 famílias (cerca de 60 pessoas) vivem na comunidade.
Mas quem visita a aldeia não precisa caminhar muito para constatar que as invasões continuam presentes. A palafita de madeira do ex-seringueiro Cristino Maciel Ferreira, 66, fica a cerca de dez minutos de caminhada da casa em que Dona Severina vive com o filho cacique.
O ex-seringueiro chegou à região há três anos, onde tem um roçado de feijão, arroz e banana. Queria criar gado, mas achou que isso lhe traria problemas com a Funai, então resolveu montar uma vendinha para atender aos viajantes que sobem o Purus. Ele não tem documento da terra onde vive, mas diz que a filha comprou do antigo dono do seringal, conhecido por Silêncio, que reclamava posse sobre vasta área da região.
Ferreira sabe que, por lei, não poderia estar ali, uma vez que a Funai reconheceu o interesse indígena pela terra – e provavelmente já sabia disso quando se instalou por lá. Os Jaminawa dizem que o invasor agiu de má fé e mostram a cerca que ele fez no meio do bananal, onde também teria jogado veneno. O ex-seringueironega responsabilidade sobre o veneno, mas assume a autoria da cerca. Diz que fez com a autorização de funcionários da Funai. Via assessoria de imprensa, a Funai afirmou que “não permitiu a colocação de cercas dentro da área reintegrada.”
Apesar de ter chegado depois, Ferreira acha que a solução do impasse seria com os indígenas indo embora para as cabeceiras do Purus. “A melhor solução é tirar esses índios lá pra onde eles vieram. Aí isso ia ficar uma lindeza, só com os brancos”, disse ao lado da mulher e do neto de oito anos, na varanda que também funciona como venda. Sua posição parece chocante para quem conhece a história dos Jaminawa, mas encontra eco no atual direcionamento da política agrária do presidente Michel Temer, que se aproxima do setor ruralista em busca de apoio. Seu governo aprofundou uma paralisia nas demarcações de indígenas, que já sofriam com a morosidade do governo federal. Segundo o Instituto Socioambiental, apenas 85 terras indígenas foram homologadas desde 2003 em todo o Brasil.
Em março deste ano, declaração do então ministro da Justiça, Osmar Serraglio(PMDB/-PR), cunhou a posição de um governo que prioriza os interesses do agronegócio sobre os direitos indígenas. “Terra não enche barriga”, disse o então ministro em entrevista sobre a questão indígena ao jornal Folha de São Paulo. Serraglio foi afastado do cargo após a operação Carne Fraca revelar ligação entre ele e frigoríficos.
Ironicamente, encher barriga é justamente o argumento central do cacique Chico Menezes, que pede a demarcação das terras. . “Nós queremos essas terras porque elas alimentam os nossos filhos, os nossos netos. Esse pessoal que chega aqui tá pensando só em dinheiro. Daqui a um tempo vão derrubar tudo, dizer que é pasto e vão vender”, disse.
Leia o especial da Repórter Brasil: Campo em Guerra
Por: Tomás Chiaverini
Fotos: Fernando Martinho
Fonte: Repórter Brasil
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