O dia estava nublado. As crianças da Vila Nova, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Amanã, carregavam baldes com água gelada. Com elas, estava a responsabilidade de cuidar da chave da casinha onde estão três máquinas de gelo, movidas a energia solar. A comunidade fica na região do Médio Solimões, no estado do Amazonas, distante a cerca de 650 quilômetros de Manaus.
Quando chegaram à comunidade, as máquinas, com capacidade de produzir juntas até 90 quilos de gelo, abasteciam todas as famílias. Sobrava até para vender. Mas, sem sol, os 60 painéis solares não fornecem energia suficiente para fazer o gelo. Junho costuma ser um dos meses com menos chuvas na região, mas este ano elas se estenderam por mais algumas semanas. Julho terminou com nuvens cobrindo o céu e atrapalhando o funcionamento dos compressores.
A Máquina de Gelo Solar foi desenvolvida pelo Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP). Com um prêmio de R$ 500 mil do Desafio de Impacto Social Google Brasil de 2014, o sistema foi implantado na comunidade pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), uma organização social ligada ao Ministério de Ciência e Tecnologia e que atua como gestor da RDS Amanã.
Diferente de outros sistemas que utilizam a energia solar já instalados na região, este não usa baterias. Por um lado, esta escolha tem vantagens ambientais, pois as baterias carregam metais pesados, que podem contaminar o ambiente em caso de descarte. Por outro, deixa o sistema sem capacidade de armazenar energia, então só funciona com o sol brilhando. E mesmo com o inconveniente, quando o céu está limpo, em dias quentes, as máquinas mostram valor.
“Agora que vai fazer verão, isso aí vai nos servir muito. Deus nos atenda! ”, diz o pescador Paulo Flávio Feitosa Pereira, já pensando em um copo d´água gelada num dia de trabalho. “É naquela hora que a gente mais precisa, né?”.
Na Amazônia, o “verão” é como a população se refere ao período da seca dos rios, quando chove menos e a temperatura aumenta mais entre os meses de julho a outubro.
Por aqui, o gelo é valioso porque a energia elétrica para produzi-lo é escassa. Das 286 comunidades das Reservas de Desenvolvimento Sustentável Amanã e Mamirauá, apenas 153 possuem geradores, segundo informações do IDSM. Outras 133 comunidades não têm energia. A RDS Amanã abrange quatro municípios do Amazonas, Maraã, Codajás, Coari e Barcelos. Tem uma área de 2,35 milhões de hectares.
Só três horas de energia
A uma hora de voadeira da Vila Nova de Amanã, na comunidade Boa Esperança, o motor de luz funciona três horas por dia, das 18h às 21h. E para que o diesel chegue até o fim do mês, cada morador contribui com R$ 100,00.
“É muito caro e pouca energia ”, lamenta o agente ambiental Luís Sérgio dos Reis. De qualquer forma, é preciso aproveitar essas poucas horas. “Enquanto o motor está funcionando, quem tem máquina bate roupa e a gente assiste ao jornal e à novela. A novela é o que o pessoal mais gosta”, descreve.
A falta de energia afetava até serviços essenciais. E apesar de viveram na maior bacia hidrográfica do mundo, saneamento básico é um problema para ribeirinhos. Boa Esperança é uma das doze únicas que contam com poço artesiano.
Quando o diesel acabava, todos ficavam sem água, lembra Luís Sérgio. Agora, a comunidade tem até água encanada. Um sistema alimentado por energia solar bombeia a água do poço até um reservatório, de onde ela é distribuída para as casas. A bomba é acionada pela manhã e à tarde, para manter o reservatório de 10 mil litros sempre cheio. E aqui, o sistema tem baterias.
Quinze outras comunidades receberam uma estrutura semelhante, que pode fazer a captação diretamente do rio. Depois de passar pelo reservatório, a água é filtrada e distribuída por gravidade. Em cada casa, há um ponto de fornecimento. O gerenciamento do sistema, que já beneficia 1.500 ribeirinhos, é feito pelos próprios moradores.
Casa de polpas
Outro sistema fotovoltaico abastece a casa de polpas em Boa Esperança, uma iniciativa tomada pela própria comunidade para aproveitar frutos que antes estragavam por ali. Com apoio do Instituto Mamirauá, foi construída uma casa, onde 30 placas solares carregam as baterias para mover as máquinas e manter três freezers de 500 litros ligados 24 horas por dia.
Os moradores da comunidade já produziam polpa para o consumo próprio. Não podiam vender porque não tinham como manter o produto refrigerado. Muita polpa estragou até que a casa ficou pronta.
“Agora não estraga porque a gente tem como conservar essa polpa”, conta Luís Sérgio dos Reis. “Nós temos muita coisa aqui que pode gerar polpa, nós temos açaí, cupuaçu, araçá, nós temos taperebá, abacaxi também. E aí a polpa tem como manter e vender na entressafra “.
A artesã Maria Marly das Chagas Oliveira também está satisfeita com o sistema de energia solar instalado na Casa das Mulheres da Comunidade São João do Ipecaçu. A comunidade fica a 12 horas de barco de Tefé, a 523 quilômetros em linha reta de Manaus. Um grupo de 15 mulheres, sete delas da comunidade, consegue uma renda extra fazendo artesanato.
A prefeitura de Maraã, a 634 quilômetros da capital do estado, dava uma cota extra de combustível, para a escola funcionar à noite. Agora, que essa ajuda foi cortada, o diesel nunca é suficiente para o mês todo. E quando acaba, o jeito é aproveitar a energia do sol armazenada nas baterias. Para elas, o trabalho significa mais independência.
“Hoje a gente não pede mais dinheiro do marido ”, comemora dona Marly. “ Com nosso trabalho, a gente compra outras coisas. E as vezes a gente dá o dinheiro pro marido pra ajudar a comprar o rancho ”, completa.
Na comunidade a novidade é a internet. Uma rede foi instalada pelo Instituto Mamirauá no início do ano, para facilitar o contato entre compradores e as artesãs. Mas a rede aguarda manutenção para voltar a funcionar. Dona Marly diz que ela até tentou trocar o equipamento com defeito, mas não conseguiu. Depois disso, um técnico viajou para a comunidade para fazer o serviço.
Desafios da natureza
Dificuldades com a manutenção são compartilhadas por outras comunidades atendidas por sistemas fotovoltaicos. Alguns problemas são inusitados. Na Vila Nova de Amanã, onde foi instalada iluminação no campo de futebol, com baterias abastecidas pela luz solar, os jogos no início da noite eram prejudicados pelos insetos atraídos pela luz.
Durante o doutorado, a socióloga Ana Claudeíse Silva do Nascimento, pesquisadora da área social do Instituto Mamirauá, analisou a relação das comunidades com as Tecnologias Sociais, entre elas os painéis fotovoltaicos. E encontrou algumas dificuldades na implantação dos sistemas, como a manutenção.
Ela cita o bombeamento de água, que usa um motor importado (o único que atende as necessidades do sistema). “Então como uma comunidade vai ter autonomia para trocar uma bomba deles que queimou? ”, pergunta. “Como eles vão fazer isso, se a bomba não é vendida em Tefé. A bomba só é vendida no Sudeste, Sul. ”
Uma diferença fundamental entre o fornecimento regular de energia e comunidades isoladas destacada por Claudeíse é a gestão do sistema. Nas cidades, a concessionária está presente para resolver qualquer problema. Já nas comunidades mais isoladas dos centros urbanos, quando se usa o sol como fonte, o consumidor precisa ser mais ativo.
“Você tem que saber a quantidade de energia que está consumindo durante o dia”, explica. “Se o dia for nublado você não vai poder usar, a não ser que você tenha uma boa forma de armazenamento dessa energia em bateria”. É preciso, de acordo com a socióloga, uma reeducação do consumidor para o uso da energia fotovoltaica.
Falta política pública
Para Claudeíse Silva do Nascimento, o aproveitamento da luz do sol precisa se tornar uma política pública, com incentivos à pesquisa e subsídios para baratear a implantação de manutenção do sistema. Ela lamenta o custo, mas acredita na viabilidade da tecnologia para abastecer, parcialmente, comunidades isoladas da Amazônia.
Uma vantagem dos sistemas fotovoltaicos é que o combustível é de graça. E não precisa ser transportado. Claudeíse calcula que uma comunidade de 12 famílias gaste em média 200 litros de Diesel por mês, para ter energia quatro horas por dia. Nem sempre é suficiente.
“Se eles resolverem assistir a um jogo de futebol no domingo à tarde, o Diesel não vai dar até o final do mês”, lamenta a socióloga. “Então você pega isso aí, pelo valor do Diesel que está quatro reais, e você ainda tem o deslocamento, a pessoa vem buscar na cidade o Diesel e volta para comunidade. O risco de vida que essa pessoa corre, fazendo esse deslocamento de combustível em depósito que não é adequado. “
A socióloga Dávila Côrrea, coordenadora do Programa de Qualidade de Vida do Instituto Mamirauá, apresenta o mesmo argumento para defender o uso de energia solar. Para ela, fontes de energia descentralizadas são melhores para a região.
“ A gente está falando de uma energia limpa, renovável e de fácil acesso para todos, que é o sol, diferente da energia dos pequenos sistemas de geradores a combustível nas comunidades ”, ressalta. Além disso, ela lembra que no Amazonas recebe cinco vezes mais energia do Sol do que a Alemanha.
Vandré Fonseca, especial para a Amazônia Real
VER MAIS EM: http://amazoniareal.com.br/o-desafio-de-aproveitar-a-energia-solar-nas-comunidades-ribeirinhas-da-amazonia/