Atlas Nacional Digital do Brasil

Sendo um dos maiores símbolos do ofício dos geógrafos, um Atlas é um documento tão histórico quanto propriamente geográfico. Essa dupla natureza se manifesta tanto “internamente”, na arquitetura do documento, quanto “externamente”, na relação do documento com o mundo circundante e sua temporalidade.

Nesse sentido, pode-se afirmar que desde a sua origem no século XVI, o Atlas foi concebido como um instrumento de leitura da história humana. Considerado o primeiro Atlas moderno, o Theatrum Orbis Terrarum (“Teatro do Globo Terrestre”), publicado em 1570 pelo geógrafo flamengo Abraham Ortelius, era inteiramente dedicado à “compreensão da história”.

Com efeito, nos parágrafos de abertura da obra, Ortelius esclarece: “Todos [os amantes de histórias] prontamente reconhecerão conosco o quão necessário é o conhecimento de regiões e províncias, dos mares, da localização das montanhas, dos vales, das cidades, do curso dos rios, etc., para se alcançar uma [completa] compreensão das histórias. Isto é o que os gregos chamavam propriamente de ‘geografia’ e algumas pessoas cultas corretamente chamam o olho da história.”1

No sentido “externo”, contudo, mesmo quando se propõe a retratar exclusivamente o momento presente, um Atlas torna-se “histórico” uma vez que a simples passagem do tempo vai progressivamente distanciando os seus leitores da realidade originalmente retratada; em outras palavras, o seu envelhecimento – às expensas da sua acurácia propriamente geográfica, particularmente quanto aos aspectos “antropogeográficos” – enriquece-o enquanto registro do passado.

Nesse contexto, a disponibilização, em meio digital, das seis versões do Atlas Nacional do Brasil produzidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ao longo da segunda metade do século XX e começo do XXI, pretende facilitar o acesso a uma rica documentação histórico-geográfica sobre a evolução do território brasileiro.

Conforme observado, essa publicação digital envolve seis volumes, o primeiro publicado em 1959 (Atlas do Brasil – Geral e Regional) e o último em 2010 (Atlas Nacional do Brasil Milton Santos). Cotejados entre si, esses documentos revelam a evolução do conhecimento e do método geográfico de representação do território, assim como as próprias mudanças na forma e no conteúdo desse território ao longo da segunda metade do século XX e da primeira década do século seguinte.

No Atlas de 1959, estruturado segundo a antiga dicotomia Geografia Regional/Geografia Geral, o Brasil é apresentado, na primeira parte da obra, enquanto um conjunto de regiões, enquanto a segunda parte apresenta um panorama na escala do território nacional como um todo.

A região era apresentada como uma “generalização geográfica”, revelando a influência do pensamento do geógrafo estadunidense Richard Hartshorne, exposto em seu The Nature of Geography, cuja primeira edição apareceu em 1939.2 Segundo Speridião Faissol, a região “representa para o Historiador um agrupamento de fatos integrados, formando uma unidade de conceito com base em um critério seletivo.”3

O Brasil foi dividido em seis grandes regiões: Norte (atuais estados do Amazonas, Pará, Acre, Roraima, parte de Rondônia, parte do Mato Grosso e parte do Maranhão) Meio-Norte (atual Piauí, parte do Maranhão e parte do Ceará), Nordeste (atuais Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e parte da Bahia), Leste (atuais Espírito Santo, Rio de Janeiro, parte de Minas Gerais, parte da Bahia e parte de São Paulo), Sul (Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e parte de São Paulo) e Centro-Oeste (atuais Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins, parte do Mato Grosso e parte do Maranhão).

Seguindo o tradicional temário geográfico, cada região foi analisada em termos de relevo, clima, vegetação, distribuição da população (rural e urbana), atividades econômicas e redes de transporte.

Na segunda parte do Atlas, os mesmos temas são estudados no âmbito do conjunto do território nacional. Além disso, faz-se uma comparação demográfica entre os anos de 1900 e 1950, incluindo o estudo das migrações internas, na década de 1940. Também se estuda geograficamente o “valor da produção” nacional – o que chamaríamos hoje em dia de Produto Interno Bruto (PIB) –, em seus diversos segmentos (agropastoril, mineral e industrial), além do comércio externo. Por fim, aborda-se o potencial das usinas geradoras de eletricidade.

Este Atlas retrata o território brasileiro no começo do processo de urbanização e industrialização, quando São Paulo constituía a única Unidade da Federação na qual população urbana era majoritária.

Juntamente com o estado do Rio de Janeiro, o sul do Espírito Santo e a metade meridional de Minas Gerais, São Paulo formava o que Ruth Lopes Magnanini chamou de “bloco metropolitano”.4 Não por acaso, este último era o estado que mais atraía migrantes nacionais, notadamente por seu crescimento econômico baseado na industrialização (sobretudo nos setores têxtil e de alimentos e bebidas) e setor terciário associado; entre 1940 e 1950, São Paulo recebeu mais de um milhão de migrantes, vindos, sobretudo, de Minas Gerais e Bahia.

De fato, as regiões Leste e Nordeste foram as que mais perderam população, nesse período, o que se explica largamente pela degradação das condições ambientais de algumas de suas economias regionais: desflorestamento e erosão dos solos utilizados na lavoura cafeeira na Zona da Mata e sul do Espírito Santo, esgotamento de jazidas minerais no planalto ocidental e na Chapada Diamantina e dificuldade de acesso a recursos hídricos na Serra Geral baiana e no polígono das secas, em geral.

A mobilidade espacial da população é possibilitada pela expansão da rede de estradas de rodagem. Elaborado em 1951, o Plano Rodoviário Nacional vinha tornando o território mais “fluido” com seus investimentos. Na região Nordeste, por exemplo, a rodovia Transnordestina ou Fortaleza-Salvador acabou tendo um papel estratégico no escoamento da população rumo ao sul, pois, no município de Feira de Santana (BA), ela se conectava com a rodovia Rio-Salvador.

O Atlas Nacional de 2010 reflete um momento bastante diferente do método geográfico de estudo do território. O conceito central não é mais o de região, mas o de território e uso do território. Nesse contexto, enquanto força modeladora da superfície terrestre, a ação humana cria lugares e, assim, organiza tanto a sociedade quanto o mundo biofísico.

Embora retenha certos temas e representações tradicionais (o relevo, o clima, a distribuição da população etc.), a nova abordagem é, ao mesmo tempo, mais tematicamente detalhada e mais integradora, procurando retratar a territorialidade da sociedade brasileira como interface de duas grandes dimensões: a espacial-locacional e a ecológica.

Esse atlas encontra-se dividido em quatro grandes seções. Na primeira, “O Brasil no mundo”, o país é situado no âmbito global por meio de mapas-mundi temáticos. Além das tradicionais representações do relevo (mapa físico) e das soberanias nacionais (mapa político), são apresentados temas socioambientais de larga importância contemporânea, como disponibilidade de recursos hídricos e emissões de dióxido de carbono.

Na seção “Território e Meio Ambiente”, o território brasileiro é examinado tanto como realidade ambiental – incluindo sua dinâmica antropogênica, sobretudo nas subseções “Recursos naturais e questões ambientais” e “Riscos ambientais” – quanto como espacialidade institucional, quer dizer, composto de malhas político-administrativas. Na seção “Sociedade e Economia”, estuda-se como a população e a socioeconomia brasileiras se repartem no e se apropriam do espaço nacional e seus recursos, incluindo seu aspecto dinâmico, abordando temas como migrações, imigração estrangeira e evolução da pirâmide etária, entre outros.

Finalmente, a seção “Redes geográficas” aborda temas clássicos como os do sistema hierárquico de cidades e da logística do território, além de um tema cuja importância disparou no final do século XX, qual seja o da infra-estrutura informacional.

O território retratado também é muito diferente daquele de meio século antes, embora se possa argumentar que certas mudanças foram mais quantitativas do que propriamente qualitativas. O exemplo mais evidente é o da concentração urbano-industrial em São Paulo e áreas adjacentes, processo já evidente no final da década de 1950 e reforçado no período subsequente. (Milton Santos, já na década de 1980, propunha o conceito de “região concentrada” para descrever essa configuração territorial.)

“A industrialização foi responsável pela elevada concentração espacial da riqueza em um extenso complexo territorial metropolitano em torno de São Paulo”, afirma Cláudio Egler (2010) “que hoje se espraia entre Campinas, São José dos Campos e a Baixada Santista, formando uma verdadeira cidade-região global que centraliza poder decisório sobre as finanças e os investimentos em escala nacional e sul-americana”.5 Mesmo um certo processo de desconcentração que atingiu a indústria nacional, na virada do século XX para o XXI, mostrou-se em si mesmo “concentrado”: há uma tendência de deslocamento espacial da indústria e dos serviços associados para áreas no interior do estado de São Paulo e sul de Minas Gerais.

Da mesma forma, as novas localizações industriais, como nos setores automobilístico e de construção naval, privilegiaram sempre áreas densamente povoadas e bem servidas de transporte e outros fatores – em geral áreas metropolitanas como as de Porto Alegre, Curitiba e Belo Horizonte. As indústrias de bens intermediários, por seu turno, orientadas pelas fontes de matéria-prima, foram substancialmente reorientadas para as regiões Norte e Nordeste, como no caso do beneficiamento de metais ferrosos.

Intensivos em capital, esses complexos de mineração trouxeram profundas transformações sociais e ambientais. Um exemplo importante é o da fabricação de ferro-gusa para exportação no corredor ferroviário Carajás-Itaqui, entre o Pará e o Maranhão, alimentada por carvoarias que utilizavam madeira de florestas nativas, sob condições precárias de trabalho.

Desflorestamento e degradação ambiental são também processos relacionados à expansão da agroindústria alimentar da cadeia carne-grãos, que avançou, sobretudo, na região Centro-Oeste. Tanto o padrão técnico quanto a larga escala da produção levam a um alto consumo de agrotóxicos, com profundos efeitos sobre os ecossistemas regionais, incluindo os ricos aquíferos do bioma Cerrado.6

Essas situações são retratadas, entre outros lugares, nos mapas relativos às fontes de ameaça às biodiversidades terrestre e fluvial, bem como naqueles que mostram a distribuição das espécies ameaçadas de extinção (aves, mamíferos, répteis, anfíbios, insetos e invertebrados aquáticos e peixes, páginas 90-96, 107-109). Embora o seu ritmo tenha diminuído substancialmente desde a década de 1990, o desflorestamento zero da Floresta Amazônica permanecia e ainda permanece como um dos grandes desafios da sociedade brasileira.

Enfim, a leitura dos Atlas Nacionais do Brasil permitirá ao leitor conhecer e refletir um pouco mais sobre a trajetória histórica do território brasileiro, assim como a evolução do método geográfico de análise e representação.

1 – Citado por Walter Goffart, Historical Atlases: The First Three Hundred Years, 1570-1870. Chicago: The University of Chicago Press, 2003, p. 1.
2 – Richard Hartshorne, The nature of geography: a critical survey of current thought in the light of the past. Ann Harbor: The Association of American Geographers, 1939.
3 – Speridião Faissol, “Divisão regional do Brasil”, in Conselho Nacional de Geografia, Atlas do Brasil (Geral e Regional). Rio de Janeiro: IBGE, 1959, p. 9.
4 – Ruth Lopes Magnanini, “População urbana do Brasil em 1950”, in Atlas do Brasil.
5 – Cláudio Antônio G. Egler, “O espaço geoeconômico”, in Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Atlas Nacional do Brasil Milton Santos. Rio de Janeiro: IBGE, 2010, p. 200.
6 – Idem, p. 201.

AUTOR:  Diogo de Carvalho Cabral

 

FONTE: IBGE

http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/atlas.shtm?c=6  


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Atlas Nacional Digital do Brasil 2017

O Atlas Nacional Digital do Brasil 2017 incorpora, em ambiente interativo, as informações contidas no Atlas Nacional do Brasil Milton Santos, publicado em 2010, com o acréscimo de mapas que atualizam informações demográficas e econômicas, sociais e ambientais sobre o Brasil e o mundo, além de um caderno temático sobre Cidades Sustentáveis, que inclui o mapeamento de dados relativos a habitação, mobilidade urbana, participação da sociedade, preservação de patrimônio cultural e questões referentes ao ambiente urbano, entre outros temas. A opção por um caderno temático vinculado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS – busca dar maior visibilidade a questões incluídas no ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis – que, no Brasil, está sob a coordenação do IBGE. Assim, há mapas que abordam questões relativas ao tratamento de resíduos sólidos nos municípios, à preservação de patrimônios materiais e imateriais, ao tempo gasto no deslocamento para o trabalho, à existência de plano diretor e à presença de unidade de defesa civil, entre outros indicadores utilizados na busca pela realização das metas preconizadas pelos ODS até 2030. Torna-se particularmente importante, neste momento, discutir o tema das Cidades Sustentáveis, diante do fato de que, pela primeira vez na história, a maioria da população mundial está em cidades.

Atlas Nacional Digital do Brasil 2016

Este atlas constitui enorme avanço em termos de análise e divulgação do conhecimento da geografia do país e dá início a um processo de elaboração contínuo, com periodicidade anual, de um instrumento central para a difusão da informação sobre o território e a sociedade brasileira. Nesse sentido, o Atlas incorpora, em ambiente interativo, as informações contidas no Atlas Nacional do Brasil Milton Santos 2010, além de conter um Caderno de Atualizações 2016 e um Caderno Temático 2016 contemplando nesse ano a população indígena.Com um temário abrangente, o Atlas Nacional Digital do Brasil 2016 revela as profundas transformações ocorridas na geografia brasileira, acompanhando as mudanças observadas no processo de ocupação do território nacional na contemporaneidade. Ele se estrutura em torno de quatro grandes eixos temáticos: o Brasil no mundo; Território e meio ambiente; Sociedade e economia e Redes geográficas. Além do recurso aos textos de análise, o Atlas utiliza mapas, tabelas e gráficos, o que permite um amplo cruzamento de dados estatísticos e feições geográficas que tornam flexível e abrangente a seleção de informações, permitindo o entendimento aproximado da diversidade demográfica, social, econômica, ambiental e cultural do imenso território brasileiro. Finalmente, o Aplicativo de análise geográfica desenvolvido para o Atlas permite sua navegação em ambiente interativo voltada para usuários básicos e avançados. É possível, se o usuário assim o desejar, baixar e armazenar dados, cruzar informações e produzir novos mapeamentos, a partir dos 780 mapas já existentes na publicação.

 

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