‘A guerra só começou’ – Índios prometem manter as bases de fiscalização, com ou sem apoio do governo

Os povos do Vale do Javari não estão dispostos a ficar quietos, vendo a destruição dos programas que ajudam a proteger suas terras e costumes. Paulo Marubo, coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), diz que os índios têm sofrido com a pressão de madeireiros, empresas, caçadores e pescadores que avançam sobre seus territórios, mas não vão admitir o abandono de medidas de proteção que, mesmo precariamente, garantem sua sobrevivência.

“Nosso povo não vai ficar parado, olhando e morrendo. Vamos agir, não deixaremos essa situação acontecer. Estamos muito preocupados com tudo o que tem acontecido na região. Os invasores estão entrando nas áreas, e não há mais segurança para os isolados”, diz Paulo Marubo. “Somos isolados, mas não somos ignorantes. Sabemos dialogar e conhecemos nossos direitos. A guerra não acabou, a guerra só começou. Vamos partir para cima do governo.”

Indigenistas e lideranças locais temem que o avanço sobre a terra indígena faça a região reviver capítulos sangrentos de violência e mortandade, como os ocorridos durante o “primeiro ciclo da borracha”, entre 1870 e 1911, que levaram doenças, assassinatos e escravidão para as aldeias do extremo oeste da Amazônia. Mais tarde, em 1970, os povos tradicionais voltariam a sofrer com a forte exploração madeireira. Foram décadas e mais décadas de invasões, até que o Javari viesse a ter, após forte resistência, seu reconhecimento definitivo como terra indígena demarcada e protegida. Isso só aconteceria no dia 29 de maio de 1998, com publicação em diário oficial pelo Ministério da Justiça.

“O que assistimos hoje, infelizmente, é o esfacelamento da política de isolados. Podemos ter um novo momento de genocídio desses povos. Vemos equipes de caça, garimpeiros e madeireiros se aproximando da terra indígena. Os índios têm imunidade muito baixa. Qualquer vírus pode dizimar grupos inteiros”, diz Bruno Pereira, agente indigenista da Funai que atua na Frente de Proteção do Vale do Javari.

Em março, lideranças da região se reuniram na Assembleia Geral dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Em carta redigida após o encontro, as organizações indígenas reafirmam que as bases de fiscalização estão sem recursos humanos e financeiros para cuidar da área. “Na subida para este encontro (no Rio Pardo), nos deparamos com apenas dois indígenas marubo na base de fiscalização da boca do Rio Curuçá. Ficamos desesperados ao nos deparar com essa situação, pois consideramos que a base tem uma função estratégica de fiscalização, uma vez que se localiza próximo da faixa de fronteira entre Brasil e Peru, onde as invasões são constantes e há também a atuação de traficantes”, afirmam as organizações no documento.

Invasões têm ocorrido principalmente na região do Rio Juruá, atingindo a área de ocupação dos índios isolados. “Não sabemos o que está acontecendo com esses povos, o que nos causa grande preocupação, pois eles estão correndo risco de serem acometidos por doenças”, diz a carta. “Os povos indígenas tyohom-dyapá, do Rio Jutaí, de recente contato, estão sofrendo todo tipo de descaso com a invasão dos fazendeiros e a exploração de regionais, que levam bebidas alcoólicas para trocar com carnes de caça.”

Hoje, há 107 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal, área que abrange nove Estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e parte dos Estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. Povos da etnia matís, marubo, canamari, culina e maioruna, também conhecidos como matsés, são de contato permanente. Já o povo corubo é considerado isolado, apesar de um pequeno grupo ter sido contatado em 1996 pela Funai. A maior presença de povos isolados do Brasil se dá no Vale do Javari, onde já foram registradas 16 referências desses grupos. A população total da terra oscila entre 3,8 mil e 5,5 mil pessoas, sem incluir as estimativas da população de índios isolados.

Indigenistas afirmam que a pressão no entorno da terra indígena tem levado os isolados a saírem de suas terras, o que gera conflitos com não índios e, paralelamente, potencializa os confrontos entre as diferentes etnias que vivem na região. Em 2014, indígenas do povo matis e grupos isolados corubo entraram em conflito, resultando na morte de lideranças indígenas. O clima ainda é de tensão entre os dois povos, que trocam acusações de invasão de seus territórios.

Nos Estados da região amazônica estão concentrados 433,4 mil índios, o equivalente a 53% de toda a população indígena do País. Os povos isolados, grupos com ausência de relações permanentes ou com baixa frequência de interação, seja com não índios ou outros povos indígenas, estão hoje concentrados no Vale do Javari. Já os grupos de recente contato são aqueles que mantêm relações permanentes, independentemente do tempo de contato, mas que preservam sua autonomia. Dentro do Vale do Javari, essa população é estimada em cerca de 5 mil índios. Não há detalhes sobre a população de índios isolados.

Estimativas históricas dão conta de que, antes da chegada do homem branco, havia mais de 1 mil povos no território brasileiro, somando entre 2 milhões e 4 milhões de pessoas. O censo demográfico feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 apontou a existência de 897 mil indígenas no País. Foram identificadas 305 etnias – a maior é a ticuna, com 6,8% da população. O levantamento mostra que 517 mil indígenas, o equivalente a 58% do total, vivem em terras demarcadas. São 274 línguas faladas pelos povos indígenas e 17,5% desses povos não falam a língua portuguesa.

“Que sociedade é essa que esquece e relega à morte os seus povos originários?”, questiona Bruno Pereira. “Esperamos que o Estado brasileiro consiga dar uma resposta à altura. O cenário é de retrocesso. Há uma desmobilização inteira na Funai e do direito desses povos, que foi conquistado na Constituição, na Carta de 1988.”

Por: André Borges
Fonte: O Estado de São Paulo

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