Hidrelétricas e o IPCC: 15 – “Catação de cerejas” de barragens

O “cherry picking” [“catação de cerejas”], ou seja, selecionar apenas os casos que confirmam a conclusão, é uma forma que as estimativas das emissões de hidrelétricas podem ser minimizadas. No Brasil, a hidrelétrica de Balbina, que tem emissões muito altas de metano, não foi incluída na tabulação de barragens no primeiro inventário nacional do país ([1], p. 154; Ver também [2]), embora os autores do estudo tivessem publicado anteriormente dados da emissão da superfície da barragem [3]. 

Balbina representava aproximadamente 40% da área inundada pelos reservatórios em áreas de floresta tropical amazônica do Brasil na época do inventário. A hidrelétrica foi excluída de uma série de discussões sobre represas amazônicas alegando-se que é atípica e representa um erro que nunca seria cometido novamente.

Infelizmente, Balbina tem muitos paralelos com barragens que são susceptíveis de serem construídas nas próximas décadas, especialmente Babaquara (renomeada para Altamira), rio acima de Belo Monte [4, 5].

A relevância de Balbina tem surgido ainda mais nos últimos anos. Durante cerca de duas décadas o governo brasileiro priorizava barragens do tipo “a fio d’água”, como as do rio Madeira e a Belo Monte. Barragens deste tipo têm reservatórios relativamente pequenos, quando comparados com os das barragens tradicionais do tipo “armazenamento”, como Balbina e Tucuruí.

Em 2013, uma mudança foi sinalizada por um discurso da então presidente Dilma Rousseff, apoiando uma volta para priorizar barragens com “grandes reservatórios” [6]. Esta mudança foi reafirmada no atual governo quando, em setembro de 2016, o Diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) indicou prioridade para “grandes reservatórios” [7].

O lugar onde há grandes planos para barragens de armazenamento é no rio Xingu a montante da usina de Belo Monte, embora o governo não admita a existência destes planos desde 2008, quando uma resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) afirmou que só teria Belo Monte como barramento no rio Xingu (e.g., [8]).
No entanto, a lógica apontando uma intenção de construir barragens rio acima de Belo Monte sempre foi evidente, pois os 11 mil MW de capacidade instalada na casa de força principal da usina não teria água suficiente para funcionar durante vários meses se não tive armazenamento de água a montante [9].

A inviabilidade econômica de Belo Monte sem outros reservatórios rio acima indica a expectativa de uma “crise planejada” após completar a construção de Belo Monte [10]. A posição pública do governo de que teria apenas uma barragem no rio Xingu, ou seja, somente a Belo Monte, é conhecida como a “mentira institucionalizada” pelos opositores de Belo Monte (e.g., [11]). Os cinco reservatórios originalmente planejados a montante de Belo Monte, em grande parte, inundariam áreas indígenas, e todos estariam em floresta tropical (e.g., [4]).

A primeira barragem seria Babaquara, cujo nome foi oficialmente mudado para “Altamira”, que é o nome da cidade localizada a 11 km rio abaixo do local escolhido para a barragem. Pelo plano original, Babaquara teria um reservatório de 6.140 km2, o dobro de Balbina.

Impactos incluem inundação de grandes áreas da etnia Kayapó e a formação de uma imensa “fábrica de metano”, gerando gases de efeito estufa a partir de uma oscilação anual de 23 m no nível da água [12-15]. Balbina é uma barragem com emissões maciças [16-18], e a sua relevância não podia ser maior neste momento na história [19].

 

NOTAS

[1] Brasil, MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia). 2004. Comunicação Nacional Inicial do Brasil à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. MCT, Brasília, DF. 276 p. [Disponível em: http://www.mct.gov.br/upd_blob/0005/5586.pdf].

[2] Rosa, L.P., dos Santos, M.A., Matvienko, B., dos Santos, E.O., Sikar, E. 2004. Greenhouse gases emissions by hydroelectric reservoirs in tropical regions. Climatic Change 66: 9-21. doi: 10.1023/B:CLIM.0000043158.52222.ee.

[3] Rosa, L.P., dos Santos, M.A., Tundisi, J.G., Sikar, B.M. 1997. Measurements of greenhouse gas emissions in Samuel, Tucurui and Balbina Dams – Brazil. In: L.P. Rosa, M.A. dos Santos (eds), Hydropower Plants and Greenhouse Gas Emissions. Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, p. 41-55.

[4] Fearnside, P.M. 2006. Dams in the Amazon: Belo Monte and Brazil’s hydroelectric development of the Xingu River Basin. Environmental Management 38(1): 16-27. http://dx.doi.org/10.1007/s00267-005-00113-6 [ver: http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/2015/Livro-Hidro-V1/Cap-12 Livro Hidrelétricas V.1.pdf].

[5] Fearnside, P.M. 2012. Belo Monte Dam: A spearhead for Brazil’s dam building attack on Amazonia. GWF Discussion Paper 1210, Global Water Forum, Canberra, Austrália. [Disponível em: http://www.globalwaterforum.org/wp-content/uploads/2012/04/Belo-Monte-Dam-A-spearhead-for-Brazils-dam-building-attack-on-Amazonia_-GWF-1210.pdf].

[6] Borges, A. 2013. Dilma defende usinas hidrelétricas com grandes reservatórios. Valor Econômico, 06 de junho de 2013. http://www.valor.com.br/brasil/3151684/dilma-defende-usinas-hidreletricas-com-grandes-reservatorios

[7] Borges, A. 2016. Diretor-geral de Aneel defende retorno de hidrelétricas com grandes reservatórios. O Estadão. 30 de setembro de 2016. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,diretor-geral-da-aneel-defende-retorno-de-hidreletricas-com-grandes-reservatorios,10000078947

[8] OESP. 2008. Governo desiste de mais hidrelétricas no Xingu. O Estado de São Paulo (OESP), 17 de julho de 2008, p. B-8.

[9] Fearnside, P.M. 2014. Belo Monte como ponta de lança 1: Os impactos da primeira barragem Amazônia Real 01 de dezembro de 2014. http://amazoniareal.com.br/belo-monte-como-ponta-de-lanca-1-os-impactos-da-primeira-barragem/

[10] de Sousa Júnior, W.C., J. Reid & N.C.S. Leitão 2006: Custos e Benefícios do Complexo Hidrelétrico Belo Monte: Uma Abordagem Econômico-Ambiental. – Conservation Strategy Fund (CSF), Lagoa Santa, MG, 90 p. http://conservation-strategy.org/sites/default/files/field-file/4_Belo_Monte_Dam_Report_mar2006.pdf

[11] Nader, V. 2008: Mentira institucionalizada justifica hidrelétrica de Belo Monte. – Correio Cidadania, 17 de junho de 2008. www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1955&Itemid=79

[12] Fearnside, P.M. 2008. Hidrelétricas como “fábricas de metano”: O papel dos reservatórios em áreas de floresta tropical na emissão de gases de efeito estufa. Oecologia Brasiliensis 12(1): 100-115. http://dx.doi.org/10.4257/oeco.2008.1201.11

[13] Fearnside, P.M. 2009. As hidrelétricas de Belo Monte e Altamira (Babaquara) como fontes de gases de efeito estufa. Novos Cadernos NAEA 12(2): 5-56. http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/315/501

[14] Fearnside, P.M. 2011.  Gases de efeito estufa no EIA-RIMA da Hidrelétrica de Belo Monte. Novos Cadernos NAEA 14(1): 5-19. http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/596/848

[15] Fearnside, P.M. 2015. A hidrelétrica de Belo Monte como fonte de gases de efeito estufa: Desafios para midiatização da ciência na Amazônia. p. 287-294. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 1. Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, Amazonas, 296 p. http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/2015/Livro-Hidro-V1/Cap-16 Livro Hidrelétricas V.1.pdf

[16] Kemenes, A., B.R. Forsberg & J.M. Melack. 2007. Methane release below a tropical hydroelectric dam. Geophysical Research Letters 34, L12809. http://dx.doi.org/10.1029/2007GL029479. 55.

[17] Kemenes, A., B.R. Forsberg & J.M. Melack. 2008. As hidrelétricas e o aquecimento global. Ciência Hoje 41(145): 20-25.

[18] Kemenes, A., B.R. Forsberg & J.M. Melack. 2011. CO2 emissions from a tropical hydroelectric reservoir (Balbina, Brazil). Journal of Geophysical Research 116, G03004, http://dx.doi.org/10.1029/2010JG001465

[19] Isto é uma tradução parcial atualizada de Fearnside, P.M. 2015. Emissions from tropical hydropower and the IPCC. Environmental Science & Policy50: 225-239. http://dx.doi.org/10.1016/j.envsci.2015.03.002. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03).

 

 

  

 

Leia os artigos da série: Hidrelétricas e o IPCC 

Hidrelétricas e o IPCC: 2 – Barragens nos relatórios e diretrizes 

Hidrelétricas e o IPCC: 3 – Escolha enviesada de literatura 

Hidrelétricas e o IPCC: 4 – Barragens tropicais emitem mais 

Hidrelétricas e o IPCC: 5 – Emissões de gases nos inventários nacionais 

Hidrelétricas e o IPCC: 6 – As diretrizes de 2006

Hidrelétricas e o IPCC: 7 – Reservatórios como “áreas úmidas” 

Hidrelétricas e o IPCC: 8 – Turbinas e árvores mortas ignoradas

Hidrelétricas e o IPCC: 9 – Contagem incompleta a jusante 

Hidrelétricas e o IPCC: 10 – Concentrações subestimadas de metano 

Hidrelétricas e o IPCC: 11 – Potencial de Aquecimento Global desatualizado 

Hidrelétricas e o IPCC: 12 – Ignorando o valor do tempo 

Hidrelétricas e o IPCC: 13 – O horizonte de tempo 

Hidrelétricas e o IPCC: 14 – A “dívida” de aquecimento global

 

 

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link

 

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