O Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1), em Brasília, decidiu ontem (6) manter suspensa a operação da usina de Belo Monte até que esteja em funcionamento o sistema de água e esgoto de Altamira (PA). Essa era a condição de viabilidade da usina que, mesmo depois de cinco anos do início das obras, continua sendo negligenciada pela Norte Energia, dona do empreendimento e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), que impôs as condições da licença ambiental, no entanto permite que a hidrelétrica prossiga normalmente sem cumpri-las.
A decisão foi tomada na Corte Especial do Tribunal, órgão que reúne normalmente 19 desembargadores para analisar decisões como a suspensão de segurança, um tipo de recurso que é decidido solitariamente (monocraticamente, no jargão jurídico) pelo presidente do TRF1. No que pode ser considerada uma reviravolta, os desembargadores presentes à sessão (14 deles), por nove votos a cinco, decidiram que não se justificava a continuidade da operação da usina, derrubando a suspensão concedida pelo presidente do Tribunal, Hilton Queiroz, em favor de Belo Monte.
A maioria acompanhou os votos divergentes dos desembargadores Souza Prudente e Jirair Meguerian, que consideraram que a usina provavelmente não terá sequer linhões para escoar a energia quando estiver concluída, em 2019 e que, portanto, não cabem as alegações do risco de faltar energia no país. Belo Monte não está gerando e possivelmente não gerará energia para o sistema nacional de abastecimento pelo menos pelos próximos dois anos.
Ministério Público – “Há tempo suficiente para que sejam cumpridas as condicionantes e não há argumento para insistir na desassistência dos atingidos. A necessidade de energia do país não pode mais ser desculpa para vitimar a população de Altamira”, disse Raquel Branquinho, procuradora-chefe da Procuradoria Regional da República da 1a Região, que sustentou a posição do MPF perante o tribunal. Pelo que foi decidido, as obras da usina podem continuar, mas a operação das turbinas precisa ser paralisada até que o sistema de água e esgoto da cidade onde fica o reservatório de Belo Monte esteja funcionando.
“O mais importante, na decisão da corte, é que as obras do saneamento básico de Altamira devem passar a ser tratadas com a mesma prioridade que as obras da hidrelétrica. Os atingidos por Belo Monte precisam ter seus direitos respeitados tanto quanto a necessidade alegada de energia elétrica”, lembrou Thais Santi, procuradora da República que atua no médio Xingu. Mesmo com a suspensão de segurança em vigor, o TRF1 já tinha decidido anteriormente manter a multa contra a Norte Energia pelo atraso na entrega do saneamento da cidade. Desde 30 de setembro de 2016, a empresa está sendo multada em R$ 40 mil por cada dia de atraso.
As obras para o cumprimento da condicionante do saneamento atrasaram muito e quando foram realizadas a Norte Energia travou um cabo-guerra, alegando que a prefeitura de Altamira e o governo do Pará deveriam arcar com os custos das ligações da rede de esgoto às residências da cidade. Como resultado da disputa, apesar do sistema de saneamento estar parcialmente pronto, nenhuma ligação tinha sido feita até a emissão da licença de operação da usina pelo Ibama, no dia 25 de novembro de 2015.
“O saneamento não é uma melhoria dada de presente pela empresa à cidade. É uma condição muito importante para a viabilidade ambiental de Belo Monte, pelo risco não só de eutrofização ou apodrecimento das águas do reservatório da usina, como também de degradação da qualidade da água consumida pelos cidadãos altamirenses”, explicou o procurador da República Higor Pessoa, responsável pela investigação que iniciou o processo judicial sobre o saneamento de Altamira.
Uma crítica antiga sobre o empreendimento de Belo Monte é que o andamento das obras de engenharia da usina é muito mais acelerado que as obras destinadas a compensar e mitigar os impactos sobre os atingidos. O descompasso faz inclusive com que os impactos sejam mais graves do que o previsto. “Como resultado, existe um passivo de injustiças em Altamira e na região do médio Xingu, que vem sendo inteiramente suportado pelos atingidos. As promessas feitas quando a usina estava no papel se transformaram em irregularidades flagrantes, em retirada de pessoas de suas casas, insegurança alimentar, problemas de saúde pública”, lembra o procurador da República Ubiratan Cazetta.
O MPF aponta no processo judicial o risco de colapso sanitário se Belo Monte entrar em pleno funcionamento sem o saneamento completo de Altamira. O perigo à saúde pública é grave: o reservatório em que o Xingu foi transformado, em frente à cidade, pode ser contaminado pelas fossas precárias e pelo esgoto a céu aberto que deveriam ter sido substituídos antes da usina ficar pronta.
Processo – O recurso da suspensão de segurança, que tem como característica principal não tratar do mérito do processo judicial, mas ser aplicável em caso de ameaça à ordem, segurança, saúde ou economia públicas, sempre é analisado por presidentes de tribunais monocraticamente e depois submetidos aos pares em julgamentos como os de ontem. E quando a suspensão de segurança é mantida pelos membros do tribunal, fica em vigor até o fim do processo judicial, o que torna praticamente vãos os esforços para obrigar o cumprimento das licenças ambientais.
Existe até uma teoria, a do fato consumado, que explica o efeito causado pelas suspensões de segurança quando aplicadas ao licenciamento ambiental de empreendimentos de grande impacto: a suspensão dos processos judiciais permite que as obras andem e quando a Justiça finalmente decide corrigir a irregularidade, quase sempre é tarde demais. Esse recurso se tornou corriqueiro nos processos judiciais que tratam de grandes barragens nos rios amazônicos. Levantamento preliminar do MPF mostra que, nos casos das usinas no Tapajós, Teles Pires e Xingu, o recurso da suspensão foi manejado 23 vezes pelo governo federal.
As alegações dos pedidos de suspensão de segurança feitos pelo governo brasileiro nunca mencionam as consequências dos seguidos descumprimentos das licenças ambientais, apenas falam dos riscos à economia pública, por causa da ameaça de um possível apagão em caso de paralisação de Belo Monte. Com a derrubada dessas alegações pelo TRF1, o projeto de Belo Monte terá que, finalmente, cumprir as regras do licenciamento ambiental.
O que pela primeira vez o MPF conseguiu demonstrar foi a falácia do argumento da economia pública e do risco de apagão. A usina de Belo Monte só estará concluída em 2019 e, pelo andamento atual, nenhum dos linhões que devem escoar a energia da usina estará pronto até lá – foram previstos quatro linhões, licitados até o momento dois e apenas um está em construção, com grande atraso nas obras. “O que poderia justificar, então, atrasar as obras de compensação e mitigação para adiantar as obras da usina?”, questiona o procurador Felício Pontes Júnior, que acompanha o licenciamento de Belo Monte desde 2001.
A Norte Energia e o Ibama, que são réus no processo, ainda podem recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao próprio TRF da 1a Região, mas a decisão de ontem marca uma reviravolta nas disputas judiciais que cercam as obras de usinas hidrelétricas na Amazônia. Pela primeira vez em um tribunal brasileiro, a maioria dos julgadores entendeu a importância de cobrar com rigor o cumprimento de licenças ambientais.
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