Procuradoria dos Direitos do Cidadão suspende “repatriação” de índios Warao pelo Amazonas

Sem abrigo do governo, Warao estão vivendo em barracas de lona no entorno da Rodoviária de Manaus. Secretária Graça Prola decidiu enviá-los de volta à Venezuela.

A secretária de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc) do Amazonas, Graça Prola, também defensora dos direitos das crianças e dos adolescentes, está à frente de uma operação, classificada como repatriação pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), de 60 índios da etnia Warao no dia 2 de abril. Graça justificou a ação dizendo que são os próprios indígenas que pediram para voltar de Manaus em ônibus para seu país de origem, a Venezuela. Na última quarta-feira (29), a PFDC e a Casa Civil da Presidência da República, em Brasília, além do Ministério Público Federal no Amazonas (MPF), decidiram suspender o retorno dos índios Warao pela Sejusc até que seja criado um plano de ação de atendimento aos imigrantes venezuelanos.

O procurador federal dos Direitos do Cidadão da PFDC, João Akira Omoto disse à Amazônia Real que o governo do Amazonas concordou em suspender o retorno dos índios Warao. Procurada pela reportagem, a secretária Graça Prola não confirmou até o momento se aceitou a decisão.

Para Akira Omoto, “é completamente inadequado” transportar os índios Warao de volta em ônibus até a fronteira com a Venezuela, como planejou a secretária da Sejusc.

“Muitos podem não conseguir passar na fronteira. Vão ficar em Pacaraima? Se conseguirem passar, quem garante que vão conseguir chegar [na terra de origem]? Isso é praticamente uma repatriação. Ainda que seja um pedido do grupo dos indígenas, isso precisa ser articulado com o governo venezuelano”, afirmou.

O Ministério da Justiça explica que “é repatriado o estrangeiro indocumentado ou que não possui visto para ingressar no País ou aquele que apresenta visto divergente da finalidade para a qual veio ao Brasil.” A repatriação ocorre a expensas (à custa) da transportadora ou da pessoa responsável pelo transporte do estrangeiro para o Brasil.

Segundo o procurador da PFDC, “há uma inadequação” na decisão da Sejusc. “O Estado brasileiro não tem uma política migratória, de atendimento, de acolhimento, de abrigamento. Sua resposta enquanto governo não pode ser simplesmente colocar as pessoas no ônibus e devolvê-las. Esses indígenas vêm de uma situação de extrema vulnerabilidade e precisamos ter uma resposta mais adequada de assistência”, disse o Akira Omoto.

O procurador explicou que a situação dos imigrantes venezuelanos em Manaus será analisada pelas três esferas do poder para que seja dado um “encaminhamento adequado” ao assunto. Segundo ele, a Casa Civil da Presidência da República vai elaborar um plano de ação para a situação dos imigrantes venezuelanos e apresentá-los em reunião marcada para o próximo dia 5 de abril.

Não é a primeira vez que a PFDC e o MPF intervêm na expulsão, deportação ou repatriação dos indígenas Warao pelas autoridades brasileiras. Conforme a Amazônia Real publicou em dezembro do ano passado, a PFDC e organizações signatárias dos Direitos Humanos que defendem os direitos e a proteção dos povos indígenas e os direitos de migrantes e refugiados, entre elas, a Conectas e a Cáritas Arquidiocesana, da Igreja Católica, ambas de São Paulo e reconhecidas internacionalmente, repudiaram uma operação da Polícia Federal em Roraima para deportar de uma vez só 450 indígenas Warao, entre mulheres, homens e 180 crianças e adolescentes. Em Boa Vista, a juíza federal Luiza Farias da Silva Mendonça, da 4ª. Vara Federal, concedeu um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União e suspendeu a expulsão dos indígenas pela PF.

À época, a PF de Roraima justificou em uma nota à imprensa que “os estrangeiros deportados estavam sem documentação regular de estada no Brasil; com prazo de estada vencido ou exercendo atividade artística e/ou remuneração, inclusive pedindo esmolas ou vendendo produtos nas ruas (artesanatos) nas ruas de Pacaraima”.

Secretária conta com apoio de cônsul

No caso da “repatriação” dos índios Warao em Manaus, a secretária Graça Prola, titular da Sejusc, disse que os índios seriam colocados em ônibus com a passagem de ida para Pacaraima (RR), na fronteira com Santa Elena do Uairén. De lá eles seguiriam até a localidade de Tucupita, capital do estado Delta do Amapuro, uma viagem de mais de 1.700 quilômetros, percurso que esse povo vem fazendo desde 2014 em buscar de abrigo e comida no Brasil. Eles fogem também da violação de direitos que vêm sofrendo com a crise política e econômica de seu país.

Segundo Graça Prola, no território venezuelano, os índios Warao receberiam apoio do Consulado da Venezuelana, que é representado em Manaus pelo cônsul geral Faustino Torrella Ambrosini.

“Do grupo que está em Manaus, 60 pessoas querem seguir viagem e outras 39 querem continuar (em Manaus). Por isso vamos ver a possibilidade de conseguir pagar (a viagem). Quanto aos que querem ficar, vamos ver a melhor alternativa para onde elas podem ser abrigadas. Elas não quiseram ficar no abrigo que oferecemos”, afirmou Graça Prola . No entanto, ela deu ampla publicidade na imprensa de Manaus da operação sobre o retorno dos índios Warao.

Procurada após a decisão da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e demais órgãos federais contra a operação da Sejusc, a secretária Graça Prola disse à reportagem que não participou da reunião desta quarta-feira. Portanto não esclareceu se vai atender a recomendação da PFDC. “Não pude participar, mas a secretária-adjunta da Sejusc, Socorro Cavalcante esteve. Vou me inteirar melhor nesta quinta-feira (30)”, disse Graça. A reportagem voltou a procurá-la, mas ela não foi encontrada.

Em entrevista anterior dada à Amazônia Real, Graça Prola disse que a secretaria faz abordagens aos indígenas Warao para realizar atendimento médico e orientar sobre a emissão de documentos como o registro de nascimento, para as crianças, e de identidade, para os adultos. “Os indígenas também foram orientados a não pedir ajuda nas ruas acompanhadas de crianças, o que é proibido pelas leis brasileiras”, esclareceu ela.

Em nota enviada à imprensa no último dia 22, a Sejusc diz que o número de indígenas que migraram de Boa Vista para Manaus foi de 117 pessoas. “Eles se tornaram pedintes nos semáforos e ruas do Centro recebendo dinheiro, roupas e alimentos”, diz a secretária, informando que “um grupo de trabalho composto por 22 instituições públicas e da sociedade civil vem se mantendo atento à migração irregular de venezuelanos para Manaus”.

Já a Pastoral do Migrante, ligada a Arquidiocese de Manaus, disse que o número de Warao chegou a 130 pessoas desde o mês de janeiro na capital amazonense. A Amazônia Real visitou um dos grupos de 30 pessoas que estão abrigados em barracas de lona no entorno a Rodoviária de Manaus, que fica na zona centro-sul da cidade. (Leia aqui)

Crise humanitária na fronteira

Segundo o procurador João Akira Omoto, a crise humanitária na Venezuela levou os indígenas a entrar no Brasil a partir de 2014. “Eles vêm, praticam sua coleta e recursos, recebem muitas doações, e retornam para o seu território. Um movimento de ir e vir que o Estado não tem que interferir”, afirmou o procurador.

Omoto destacou que é preciso dar uma resposta que leve em consideração o contexto de mobilidade dos grupos Warao, a prática de receber doações e o acúmulo de pertences que eles adquirem durante a permanência no Brasil. Outro aspecto que precisa ser levado em consideração, segundo o procurador, é a regra alfandegária na fronteira.

“O próprio transporte deles com esses pertences tem implicações com o Estado venezuelano. Muitos deles entram no Brasil sem parar no controle da fronteira em Pacaraima. Há uma fronteira de muitos quilômetros que não tem controle. Eles passam por muitos pontos. Como é que eles vão passar de novo pelo controle migratório quando eles não passaram pela entrada? Tem diversas questões no próprio transporte deles no território venezuelano. Há notícias que eles têm sido extorquidos no caminho de volta. Então tem que haver um diálogo entre o governo brasileiro e o governo venezuelano para que, se de fato forem retornar, que seja garantido que seja até a região de Tucupita”, explicou o procurador João Akira Omoto.

Isenção de taxa de permanência

Os órgãos que acompanham a situação dos Warao também estudam condições para facilitar a permanência dos indígenas no país. O procurador da República no Amazonas, Fernando Soave Merlotto, responsável pelo Ofício de Povos Indígenas, disse que uma delas é a isenção de taxa de R$ 300 que o imigrante precisa pagar para ter direito a residência temporária em um período de até dois anos no país, seguindo normas do Conselho Nacional de Imigração (CENIg), órgão ligado ao Ministério do Trabalho. Com esta autorização, o imigrante pode inclusive trabalhar regularizado.

Merlotto também afirmou que está sendo articulado com a Polícia Federal em Roraima que as entrevistas com os indígenas que havia sido marcada para ocorrer naquele Estado sejam transferidas para a PF do Amazonas.

O procurador também comentou sobre a questão da permanência do grupo de indígenas no entorno da Rodoviária de Manaus, na zona centro-sul, e outro que mora em quitinetes no bairro Educandos, na zona sul, com pagamento de aluguel feito por eles próprios. “Acredito que haja algum encaminhamento concreto sobre imigrantes em geral e a questão do abrigamento.”.

Merlotto reiterou que mandar de volta os indígenas para seu país não é a melhor política de migração a ser adotada. Ele participou da reunião no dia 22 de março, quando foi decidido pelo retorno dos Warao, por iniciativa própria, porque não havia sido convidado pela Sejusc. O procurador considerou a medida “paliativa”. No dia 167 de março, o MPF havia instaurado um inquérito para acompanhar o caso.

“Ficou claro [na reunião do último dia 29] que esta não é uma situação adequada. Mesmo que o retorno tenha concordância dos indígenas, não se pode simplesmente deixá-los na fronteira. E há um monte de entraves diplomáticos que foram apontados pela Casa Civil. Por isso que a responsabilidade é do governo federal, dos governos do Amazonas e de Roraima e das prefeituras”, disse.

A lição da migração em Boa Vista

O procurador João Akira Omoto já vem atuando na questão da crise migratória dos venezuelanos desde o ano passado. No último dia 10 de março, Omoto esteve em uma audiência pública realizada em Boa Vista (RR). Ele disse que atualmente nos Estados de Roraima e Amazonas vivem de 10 mil a 12 mil migrantes venezuelanos. Omoto afirmou que somente em Roraima, a Polícia Federal recebeu 3 mil pedidos de refúgio, que estão sendo analisados. Outros 4 mil pedidos estão agendados. Mas uma estimativa da própria PFDC apontou que mais de 77 mil venezuelanos cruzaram a fronteira desde 2014 e que muitos deles haviam sido deportados.

Depois de serem hostilizados por parte da população de Boa Vista, onde a Polícia Federal deportou 532 índios Warao entre os anos de 2014 e 2016 32 a pedido da Prefeitura, a PFDC recomendou ao governo de Roraima a construir um abrigo e prestar atendimento humanitários aos indígenas. Atualmente, cerca de 200 índios estão abrigados no Centro de Referência ao Imigrante (CRI), coordenado pelo Gabinete Integrado de Gestão Migratória de Roraima (CAMs). Segundo o CAMs, entre 2015 e 2016 mais 900 índios Warao migraram para a capital roraimense.

Conforme a assessoria de imprensa do CAMs, com a criação do CRI os imigrantes indígenas passaram viver no abrigo, onde têm alimentação e atendimento médico. “Dessa forma reduziu-se a necessidade da mendicância. Além disso também houve uma campanha de conscientização da população no sentido de não estimular mais a mendicância. Assim muitos [Warao] retornaram à Venezuela ou dirigiram-se para Manaus”, disse a assessoria.

Pastoral foi contra repatriação

Em Manaus, a única instituição responsável por abrigar imigrantes é a Pastoral do Migrante, da Arquidiocese de Manaus. A coordenadora Valdiza Carvalho disse que a instituição não tem condições de assumir uma tarefa deste porte. “Cabe ao agente público, como prefeitura e governo fazer isso”, disse ela à Amazônia Real.

Valdízia contou que na reunião com a secretária Graça Prola, na Sejusc, quando foi decidido pelo retorno dos indígenas em ônibus até a Venezuela, foi contra a medida.

“Esse ciclo de imigração não vai passar. Tira esses que estão na rodoviária, manda esses dois ônibus levá-los e eles [indígenas] passam a achar que vai ter sempre isso. Que eles podem entrar porque haverá como retornar. Minha posição sempre foi de que a Prefeitura de Manaus montasse um centro de referência aos imigrantes que pudesse ajudá-los a captar apoio. A prefeitura poderia gerenciar isto. Nós da Pastoral não temos como assumir essa demanda”, afirmou Valdiza.

Segundo a coordenadora da Pastoral, a entrada de venezuelanos em Manaus é intensa. Somente em março deste ano, a Pastoral do Migrante atendeu 112 pessoas (não indígenas) vindas daquele país.

Procurada para comentar sobre a posição da Prefeitura de Manaus sobre o assunto, a Secretaria Municipal de Comunicação (Semcom) enviou nota dizendo que o Centro de Referência em Direitos Humanos “já existe no Estado”, que se trata da Casa do Migrante Jacamim, mantida pelo governo do Amazonas. A Semcom não faz referência à proposta de criação de referência no âmbito do município.

Na nota, a Semcom diz: “O MPF acionou todos os entes federativos e afirmou que a problemática é muito mais do Governo Federal e Estadual do que do município”.

Na mesma nota, a Semcom falou da reunião do último dia 29, e disse que a Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos (Semmasdh), que acompanha o assunto representando a Prefeitura de Manaus, concordou com a suspensão do retorno dos indígenas Warao que havia sido marcado para este dia 02. “Desde dezembro do ano passado, Semmasdh, Semsa e Sejusc estão mapeando e identificando todos os grupos em Manaus”, disse a Semcom.

Para o Padre Valdecir Molinari, que é da Coordenação da Pastoral do Migrante, a postura da Prefeitura de Manaus mostra que o poder público não tem compreensão de sua função na questão da imigração. Ele salienta que a Casa de Migração Jacamim está sempre lotada, pois recebe pessoas de outros países e de outros municípios do Amazonas e pelas regras do local, o tempo de permanência é curto.

“Cabe ao município ter políticas de emergências. Mas eles ficam nesse jogo. De quem é responsabilidade? O governo diz que isso é política do município. O município diz que não tem recurso. Qualquer problema, eles não têm solução. Chega neste momento como este, não têm onde colocar [os índios Warao]”, afirmou.

O Padre Valdecir disse que sempre foi contra o frete dos ônibus para transportar os Warao de volta a Venezuela. “Isso demonstrou simplicidade na maneira de agir. Acharam a solução mais fácil para resolver um problema. Ainda bem que o MPF tomou outras providências”, disse o Padre Valdecir, que acompanha desde 2010 o a questão da imigração haitiano no Amazonas.

A reportagem tentou falar com o cônsul da Venezuela em Manaus, Faustino Torella Ambrosin, mas ele não foi encontrado pelo telefone. Também não respondeu às perguntas enviadas para o email informado no consulado. Faustino Torella Ambrosin não participou da reunião da reunião do último dia 22, no MPF, segundo informou João Akira Omoto.

 

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