Juiz determina reintegração da ocupação Parque das Tribos, onde vivem 4 mil índios, em Manaus

Decisão atende pedido do empresário Hélio D´ Carli. A Procuradoria Geral do Estado do Amazonas diz que o terreno é grilado.

O juiz Ricardo Salles, da 3ª Vara da Justiça Federal do Amazonas, rejeitou no último dia 11 de janeiro um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai) e determinou a reintegração de posse da área denominada Comunidade Parque das Tribos, ocupada por mais de 200 famílias indígenas (ou 4.000 pessoas) no bairro Tarumã-Açu, na zona-oeste de Manaus. A decisão atendeu ação do empresário do ramo imobiliário, Hélio Carlos D´Carli, que desde 2014 disputa na Justiça a posse do terreno.

Uma investigação da Procuradoria Geral do Estado do Amazonas (PGE) apontou que o título do imóvel em nome de Hélio Carlos D´ Carli “é inválido e ineficaz”, pois há “diversas violações ao ordenamento jurídico, sendo mais um lamentável episódio de ‘grilagem’ urbana ocorrida no Estado do Amazonas, razão pela qual devem ser cancelados os registros”, diz o parecer da PGE, mas juiz não discutiu a legitimidade do título de domínio da área.

Com o indeferimento do último dia 11, Ricardo Salles mantém duas decisões anteriores determinando a reintegração. Uma do dia 29 de julho de 2015, determinada por ele próprio, e outra do dia 15 de dezembro de 2015, assinada pela juíza Marília Gurgel. Nas duas decisões, a Justiça determina o cumprimento pelo oficial de justiça com auxílio da Secretaria de Estado de Gabinete de Gestão Integrada (GGI). O cumprimento só pode ocorrer após a intimação de todas as partes envolvidas e vista do Ministério Público Federal (MPF).

Em 2016, conforme a reportagem da Amazônia Real, viviam na Comunidade Parque das Tribos 132 famílias (cerca de 660 pessoas) de 30 etnias. Atualmente, segundo uma das lideranças da Comunidade Parque das Tribos, cacique Joilson Paulino, da etnia Karapana, moram 800 famílias ou 4.000 pessoas de 37 etnias na ocupação vindas de diferentes partes do Amazonas. Entre as etnias estão Apurinã, Baré, Mura, Kokama, Karapano, Tikuna, Miranha, Wanano, Sateré-Mawé, Tukano e Tupinambá – sendo este último grupo vindo de uma aldeia na Bahia.

Outra liderança da comunidade, cacique Messias Kokama, disse à Amazônia Real que a decisão do juiz Ricardo Salles “não cabe mais” na atual situação do Parque das Tribos, que está cada vez mais consolidada, segundo ele. O cacique afirmou que ainda há um recurso tramitando no Tribunal Regional Federal (TRF1), em Brasília, solicitando a suspensão da reintegração, ingressado ano passado pela organização UPIM (União dos Povos Indígenas de Manaus). Ele não quis dar mais detalhes sobre as medidas que serão tomadas daqui por diante. Tanto Joilson Paulino quanto Messias Kokama disseram que as famílias não vão sair do Parque das Tribos e resistirão a uma possível reintegração. Uma manifestação contra a decisão do juiz foi realizada no último domingo (22).

Funai contesta legitimidade de título

Nos recursos que ingressou na Justiça Federal, a Funai pediu a suspensão da reintegração de posse da Comunidade Parque das Tribos. Duas decisões que determinava a retirada dos indígenas da ocupação foram suspensas para avaliação dos recursos.

Representada no processo pela Advocacia Geral da União (AGU), por meio da Procuradoria Federal no Amazonas, a Funai diz em um dos recursos que foi identificada uma “uma série de inconsistências e irregularidades na matrícula n.º 26.385 [que está no nome do empresário Hélio D´Carli ], mas o juízo do feito aludido não tem admitido a discussão da legitimidade do título de domínio no âmbito da ação possessória”.

Segundo a Procuradoria Federal, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) analisou os “vícios apontados pela Funai e concluiu que a referida matrícula está eivada de nulidade”.

Na decisão pela reintegração de posse, o juiz Ricardo Salles indeferiu todos os pleitos enviados pela Funai, pela Defensoria Pública da União (DPU) e pelo Ministério Público Federal. Esses órgão pediram, entre outras medidas, a análise dos limites das matrículas em conflito e da área ocupada, nulidade da matrícula apresentada pelo empresário Hélio D´Carli em face de sua ilegalidade, realização de perícia cartográfica e suspensão da reintegração até durarem as tratativas extrajudiciais para regularização da área ou a realocação da comunidade.

PGE diz que terreno é grilado

No processo da reintegração de posse que tramita na Justiça Federal, e do qual a agência Amazônia Real teve acesso, o empresário Hélio D´Carli afirma ser o proprietário do terreno e detentor da matrícula registrada em cartório com o número 26.385, em 1997. A área tem 1.488,800,00 metros quadrados. No entanto, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) afirma em um parecer do dia 21 de junho de 2016 que o documento do empresário tem irregularidades e que a área possui várias sobreposições de títulos e matrículas registradas em cartório que datam desde o final do século 19.

A matrícula do imóvel apresentada por Hélio D´Carli passou a ser contestada pela PGE após consultas feitas na Secretaria de Estado de Política Fundiária (SPF) e no Cartório do 3º Ofício de Registro de Imóveis da Capital. O parecer da PGE foi um dos argumentos apresentados pela Procuradoria Federal no recurso ingressado em novembro passado.

Em um parecer do dia 21 de junho de 2016, o Procurador da PGE, Daniel Viegas, diz que foram constatadas na área em litígio “diversas sobreposições” e que a certidão da matrícula de número 26.385 do Cartório do 3º Ofício de Registro de Imóveis “revela a existência de graves inconsistências e ilegalidades”.

Além da apresentada pelo empresário Hélio D´Carli, a PGE identificou outras cinco matrículas e três títulos definitivos no mesmo local. Um desses títulos está em nome de Francisco Gonçalves de Amorim, expedido em 01/12/1903, e que deu origem à matrícula pertencente ao empresário.

O tempo tardio entre o título e o registro da matrícula de Hélio D´ Carli, contudo, chamou a atenção da PGE. Somente no dia 1º de dezembro de 1997 é que o Instituto de Terras do Amazonas (Iteam), órgão estadual já extinto, expediu uma certidão da área. Com a certidão do Iteam, Hélio D´Carli registrou nove dias depois a matrícula no Cartório do 3º ofício de registro de imóveis. Para a PGE, a abertura de matrícula somente poderia decorrer de uma transação entre o eventual espólio de Francisco Gonçalves de Amorim e Hélio Carlos D´ Carli, o que não ocorreu.

No entanto, a matrícula de Hélio D´ Carli incide em uma matrícula anterior, de número 982, em nome de Sociedade Empresária Eletroferro correspondente a um título definitivo registrado por Valentim Gonçalves Pinheiro, expedido no dia 7 de novembro de 1896. O terreno tem 32.123.500,00 metros quadrados.

Segundo a PGE, por conta dessa sobreposição, a área ocupada por famílias da comunidade Parque das Tribos sequer é de Hélio D´ Carli.

Para completar a confusa situação fundiária, nesta mesma área registrada em matrícula da Sociedade Empresária Eletroferro, há outra sobreposição, com um lote menor, de 16.061.750 metros quadrados, registrada com a matrícula de número 301 no dia 19 de janeiro de 1977 por João Augusto Souto Loureiro e Grace Neves Loureiro, e por José Lopes da Silva e Maria Augusta de Miranda e Silva. Para a PGE, a cadeia dominial da área está incompleta e precisa de mais análise.

“Verifica-se que o título que funda o registro de propriedade em nome de Hélio Carlos D´ Carli é inválido e ineficaz, pois ficaram demonstradas diversas violações ao ordenamento jurídico, sendo mais um lamentável episódio de ‘grilagem’ urbana ocorrida no Estado do Amazonas, razão pela qual devem ser cancelados os registros”, diz o parecer da PGE.

Apesar das argumentações da PGE contidas nos recursos, o juiz Ricardo Salles decidiu desconsiderá-las. Em sua decisão, ele diz que “não obstante as alegações das supostas nulidades da matrícula de número 26.385, não deve ser provida tal alegação para suspender a medida de reintegração de posse nem cabe a suspensão do feito até posterior decisão no processo n. 17159-32.2016.4.01.3200.”

Juiz chama índios de invasores

O juiz Ricardo Salles afirma na decisão que a ação “não se tem por objeto a análise acerca da propriedade de qualquer imóvel, mas apenas a posse de bens imóveis invadidos e, consequentemente, a preservação não só na defesa do patrimônio do possuidor esbulhado, do meio ambiente e da ordem urbanística”.

Ricardo Salles diz também que “considerando o memorial descritivo da invasão correspondente ao Parque das Tribos, identifica-se até o presente momento que esta invasão encontra-se dentro da área da posse dos autores, conforme se pode observar do memorial descritivo e demais documentos trazidos pelo autor (fls.333/335, 340, 792/801), o qual, inclusive, resta corroborado em sua maior parte pelo memorial descritivo trazido pela União (Superintendência do Patrimônio da União no Amazonas)”.

Para os indígenas, porém, a origem do terreno ocupado tem uma história totalmente diferente. A índia da etnia Kokama, Raimunda da Cruz Ribeiro, 75 anos, contou à Amazônia Real que após migrar da região do Médio Solimões, decidiu morar em Manaus com o marido João Diniz Albuquerque, da etnia Baré.

Na década de 80, o casal, junto com outros membros da família, passou a ocupar uma faixa de terra à margem do rio Tarumã-Açu, que mais tarde passou a se chamar Cristo Rei. Uma área agregada a Cristo Rei, utilizada como roçado, foi ocupada por outros indígenas que migraram posteriormente a partir de 2012. Dois anos depois, essa área ganhou o nome de Parque das Tribos.

“Um senhor, já falecido e que também tinha terreno na região do Tarumã, falou para o meu esposo que essa área [do Cristo Rei/Parque das Tribos] não tinha dono, porque o dono havia falecido há 25 anos e que tudo estava abandonado. E como meu marido gostava de trabalhar com agricultura, ele [o senhor] falou para meu marido: ‘vá e roce, faça sua casa e vá morar ali, zele por aquilo que vai ser seu’”, contou dona Raimunda Kokama.

Procurada, a Funai, por meio da Procuradoria Federal no Amazonas, informou que  ainda não foi intimada da decisão, mas que pretende analisá-la para verificar o que pode ser feito quanto ao caso.

O procurador da República Fernando Soave afirmou que, apesar de não ter ingressado com ação no processo, o MPF continuará acompanhando a questão. Em julho de 2016, o MPF concedeu um parecer à Justiça Federal onde diz que “não se pode falar em posse do terreno”, pois ele jamais foi ocupado com moradia ou outro meio pelo empresário De Carli.

A reportagem também procurou a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), que responde pelas ações de apoio à reintegração de posse através do Gabinete de Gestão Integrada (GGI). Segundo a assessoria da SSP, o GGI ainda não foi notificado pela Justiça Federal.

A reportagem da Amazônia Real não conseguiu falar com o empresário Hélio Carlos D´ Carli. O único contato disponível dele é um e-mail fornecido pelo seu filho, Hélio D´Carli Filho, para o qual a reportagem encaminhou perguntas, mas não obteve respostas até o momento.

Prefeito fez promessas na eleição

Apesar de enfrentar um litígio há três anos por causa da disputa de terra, a Comunidade Parque das Tribos recebe da Prefeitura de Manaus ações de atendimento à saúde e educação. A área é também visitada por alunos e professores universitários e organizações não governamentais, que apoiam a luta dos indígenas.

Ano passado, o prefeito reeleito Arthur Virgílio Neto (PSDB), durante a campanha eleitoral, visitou duas vezes as famílias da comunidade e se comprometeu em regularizar a área pedindo votos, segundo relatos dos indígenas. Uma visita foi no dia 18 de agosto, quando ele participou de uma ação chamada Mutirão de Saúde Indígena, e outra no dia 17 de setembro, já em agenda de campanha da reeleição.

“O prefeito Arthur Neto nos falou que se tivesse outra oportunidade [de continuar na prefeitura] ia dar um olhar diferenciado aos indígenas. Disse que o sonho dele era criar o primeiro bairro indígena em Manaus e que poderíamos ser a referência. Falou também que ia regulamentar nossa terra. Estamos esperando que ele cumpra o compromisso”, diz Joilson Paulino à Amazônia Real.

Embora a comunidade ainda não tenha escolas, as crianças do Parque das Tribos têm acesso à educação fundamental em uma instituição de ensino em um bairro próximo. Desde junho do ano passado, as crianças também têm aula de língua Nheengatu e de cultura indígena ministrada pela professora Claudia Tomás, da etnia Baré, esposa de Joilson Paulino, com remuneração da Secretaria Municipal da Educação (Semed). “O nome da Claudia saiu no ‘Diário Oficial’ como professora do Parque das Tribos. Então, já somos reconhecidos pela prefeitura”, disse ele.

Os moradores também são atendidos por médicos, que visitam o local a cada quinze dias, segundo Paulino. “Logo depois que esteve aqui ano passado, o prefeito mandou uma equipe para ver o que podia ser feito em educação, esporte, saúde, possibilidade de urbanização”, afirmou.

Silêncio sobre regularizar área

A Amazônia Real procurou o prefeito Arthur Virgílio Neto, através da Secretaria Municipal de Comunicação (Semcom), para ele falar sobre seu compromisso durante as eleições de regularizar a área do Parque das Tribos, como disseram as lideranças à reportagem. Essa pergunta não foi respondida pelo prefeito.

Em nota, a Semcom respondeu que a Prefeitura de Manaus “recebeu representantes deste grupo de indígenas na Procuradoria Geral do Município (PGM) e da Defensoria Pública, há algum tempo, quando havia dúvidas sobre a titularidade do terreno em questão.”

Segundo a Semcom, “à época, pensava a Defensoria ser a área de propriedade do município de Manaus, mas depois concluiu-se que a divergência sobre o título do particular provém de uma discussão de titularidade com o Estado”.

Neste caso, o prefeito Arthur Virgílio Neto prometeu aos indígenas nas eleições algo que nunca iria fazer.

A reportagem perguntou ao prefeito se as ações de atendimento à saúde e educação no Parque das Tribos vão prosseguir continua na sua atual administração. A Semcom informou que a prefeitura continuará com o atendimento de Educação no Parque das Tribos. Segundo a pasta, entre os 18 espaços culturais na zona urbana de Manaus, um deles é o Wakenai Anumarehit, no Parque das Tribos, com 18 anos, ministrado por uma professora indígena (Cláudia Tomás).

Na área de saúde, segundo a secretaria, o Parque das Tribos é atendido pela UBS Lindalva Damasceno. A prefeitura disse também que realizou duas ações do projeto Prefeitura Mais Presente, com atendimentos na área de saúde, entre consultas e exames. Uma em agosto de 2016 e outra no último dia 18 de janeiro.

A Amazônia Real perguntou também ao prefeito Arthur Virgílio Neto sua opinião sobre a reintegração de posse na área ocupada por cerca de 4.000 indígenas. Mas ele não respondeu.

Sobre a possibilidade de a Justiça Federal determinar o cumprimento da decisão de retirada dos indígenas, a reportagem perguntou ao prefeito se ele estuda uma maneira de realocar as famílias para que elas não fiquem desabrigadas.

A Semcom respondeu que a Prefeitura de Manaus está trabalhando para a construção de mais um conjunto habitacional, “o Residencial Manauara 2, destinado a famílias de baixa renda que vivem em áreas de risco da cidade. A previsão é que Manauara 2 seja realizado em área próxima ao 1 (zona Norte)”, disse a secretaria.

Indagada se o Manauara 2 poderia atender os indígenas do Parque das Tribos, a Semcom disse o seguinte: “quanto ao possível benefício é realizado um cadastro com os moradores de áreas de risco. No caso do 1, por exemplo, foi dada preferência para aquelas pessoas que estavam no aluguel social porque perderam suas casas em situações como incêndio, desabamentos e alagações. Mas nada impede que eles façam os cadastros e, após atendidas as prioridades e existindo oferta superior, eles também sejam contemplados.”

FONTE: http://amazoniareal.com.br/

Um comentário em “Juiz determina reintegração da ocupação Parque das Tribos, onde vivem 4 mil índios, em Manaus”

  1. Mandem notícias para o meu email, pois segundo a reportagem, não tem nada certo para essas famílias

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