Indígenas querem a extinção de portaria que altera processo de demarcação

Pressionado por lideranças indígenas, juristas, o MPF e até a ONU, o ministro Alexandre de Moraes, revogou quatro artigos da Portaria no 68, mas manteve a decisão de alterar o processo de demarcação das terras indígenas ao publicar nesta sexta-feira (20) a Portaria no 80, no Diário Oficial da União. Em artigo único na portaria simplificada, Moraes manteve um dos pontos mais polêmicos, que é a criação do Grupo Técnico Especializado (GTE) para analisar processos de demarcação, o que tira o poder da Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre o processo de regularização dos territórios tradicionais dos índios no Brasil.  

Conforme a nova portaria, a Funai vai dividir as análises dos trâmites demarcatórios no GTE com uma Consultoria Jurídica, com a Secretaria Especial de Direitos Humanos e com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. 

Foram revogados com a extinção da Portaria no 68 os artigos que previam análise sobre reparações de indígenas em caso de perda de terras, jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), audiência pública para discutir a demarcação, estabelecimento de outros meios das partes interessadas no assunto para se manifestar e a exigência simultânea de quatro modalidades que comprove que o povo indígena seja originário do território em processo de demarcação (na Constituição, basta cumprir uma das modalidades). 

Um dos artigos tirados, o que previa reparação, foi criticado por uma representante da ONU. Conforme reportagem publicada pela Amazônia Real, a perita das Nações Unidas, Erika Yamada, disse que um dos artigos da Portaria no 68 (que tratava de “reparação”) era “maquiavélico”, por fazer referência à Declaração da ONU de Direito dos Povos Indígenas. 

Sônia Guajajara, presidente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (ABIP), disse à Amazônia Real que o Ministério da Justiça tem que “revogar tudo” e não substituir uma portaria por outra. Ela destacou que já existe um instrumento regulamentador do processo de Demarcação de terras indígenas, que é o Decreto 1.775. 

“Eles mantiveram o GTE. Isso com clara intenção de constituir argumentos para sustentar decisão política do Ministério da Justiça”, disse Sônia. Para ela, contudo, a substituição da Portaria no 68 pela Portaria no 80 também pode ter sido uma forma do Ministério da Justiça não se sentir “totalmente desmoralizado” ao voltar atrás em uma decisão errada. Nesta quinta-feira, a APIB divulgou nota de repúdio contra a Portaria revogada (leia aqui).  

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) também se manifestou. Em nota, disse que a Portaria 68 “comprova mais uma vez e reafirma o alinhamento dos interesses antiindígenas da bancada ruralista com o atual governo, na tentativa de retroceder direitos e burocratizar ainda mais os procedimentos de demarcação de terras indígenas”.  

E continua: “Entendemos ainda que essa medida além de ser inconstitucional, desrespeita a própria atribuição técnica da Fundação Nacional do Índio (Funai) nesses atos demarcatórios, rebaixando a fundação a um mero “representante” em assuntos que envolvam demarcação de terras indígenas, com objetivo claro de que essas demarcações nunca ocorram, justamente por essa inciativa ser parte de um conluio desse governo golpista e os inimigos dos povos indígenas, bancada ruralista e bancada evangélica no congresso nacional.”  

Em entrevista à Amazônia Real, o jurista Carlos Marés (que foi presidente da Funai no final da década de 90), já havia criticado a criação do GTE. Ele afirmou que se trata de uma “comissão absolutamente inútil e ruim” criada apenas para “dificultar a demarcação”. Segundo Marés, o ministro da Justiça já possui instrumentos que podem assessorar suas decisões dentro da Funai. A outra opção, é contratar assessores.  

“O ministro pode consultar quem ele quiser. Ele tem assessores. Portanto, não precisa nomear uma comissão por portaria para ter assessoria. Se não tiver, ele contrata. Se ele não confia em seu funcionário, que é o presidente da Funai, se não tem convicção que tecnicamente [o estudo] não está bom, chama outro. Não precisa dessa comissão. Além disso, não sabemos quando vai ser nomeada e qual o prazo que vai durar”, disse Marés. 

O Ministério da Justiça informou que decidiu revogar a Portaria no 68 “para evitar qualquer interpretação errônea quanto aos propósitos e atribuições do Grupo Técnico Especializado”. 

Segundo o órgão, o propósito do grupo é “auxiliar o ministro da Justiça e Cidadania nas suas competências legais” e “tornar mais ágil a análise dos processos de demarcação”. 

Conforme consta no texto da nova portaria, o GTE vai decidir sobre declaração dos limites da terra indígena e determinar a sua demarcação; prescrição de diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias; e desaprovação da identificação e retorno dos autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes. 

Procurador elogia Ministério da Justiça 

O procurador da República Gustavo Alcântara, Secretário-executivo da 6ª Câmara da Procuradora Geral (PGR), responsável por Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, disse que ao revogar a Portaria no 68, o Ministério da Justiça demonstrou “sensibilidade”. Ele elogiou o fato do MJ ter reconhecido que havia problemas na portaria da forma como foi editada (“sem consulta e sem diálogo”), mas também se disse preocupado com a manutenção do GTE.

“O que é preocupante é a forma como o grupo vai agir. O ministro pode ter uma assessoria para auxiliá-lo em seus atos institucionais. Isso não é problema. O grande problema é a forma como vai agir. Isso sim, exige atenção. Tanto do Ministério Público quanto dos povos indígenas”, afirmou.

Conforme o Procurador, “qualquer ato que venha eventualmente simbolizar uma aplicação dessa portaria na prática pode ser questionado no futuro”. Para ele, qualquer decisão sobre o assunto é preciso que haja diálogo com os indígenas.

Questionado pela Amazônia Real sobre os procedimentos a serem tomados, Gustavo Alcântara informou que o MPF vai avaliar a nova portaria para decidir as providências.

O procurou salientou que o processo demarcatório é uma questão técnica antropológica e é a Funai a instituição responsável pela tarefa. Alcântara afirmou que somente com a estrutura adequada do órgão é que será possível realizar o trabalho.

“Se quiser garantir segurança nesse processo, o caminho é estruturar a Funai e manter em seus quadros profissionais competentes para fazer esse trabalho de forma segura respeitando o direito de todos os envolvidos. Por um lado você tem uma Funai enfraquecida, por outro você leva para um ambiente político questões estritamente técnicas. Não é o caminho mais adequado”, afirmou.

Em matéria publicada no El País, o presidente Michel Temer defendeu a Portaria 68 durante um evento com produtores rurais do interior de São Paulo, isso antes do Ministério da Justiça decidir pela revogação. Segundo Temer, a portaria serviria para “reduzir os conflitos enormes que existem nessa área”. Ele disse ainda que a medida estava embasada em “estudos contundentes à pacificação da questão das terras indígenas com os fazendeiros” e que tudo estava “sendo examinado, muito vagarosamente, com muito critério”.

20/01/2017 23:58

NOTA

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