Crise na Venezuela: fechamento da fronteira causa transtornos na divisa com o Brasil

(Foto: Cora Gonzalo/Amazônia Real)

A travessia por rodovia entre a cidade venezuelana Santa Elena do Uairén e Pacaraima, em Roraima, ficou fechada por seis dias. A opção da população foi caminhar por uma rota clandestina na savana.

A professora brasileira Josete Lima mora em Santa Elena do Uairén, na Venezuela, mas todos os dias cruzava de carro os 15 quilômetros que separam a fronteira terrestre com o Brasil para trabalhar em uma escola municipal de Pacaraima, em Roraima. No último dia 13 de dezembro, Josete andou a pé por uma rota clandestina na divisa dos dois países. O presidente Nicolás Maduro havia determinado fechar as fronteiras com o Brasil e a Colômbia até o dia 2 de janeiro.

Maduro justificou a medida, em um comunicado oficial, dizendo que uma “máfia” de contrabandistas estaria enviando milhões de bolívares (a moeda nacional) para fora do país a fim de desestabilizar seu governo, que enfrenta uma grave crise econômica.

Com seis dias de ausência na escola onde trabalha e sem opção para chegar ao Brasil legalmente, na segunda-feira (19) a professora Josete Lima atravessou a fronteira com os dois filhos pequenos por uma rota clandestina, geralmente usada por contrabandistas. Ela contou à reportagem da Amazônia Real que partiu de Santa Elena do Uairén, capital do município de Gran Sabana, de carro até a Aduana (Alfândega) de seu país. A partir desse ponto a passagem para o Brasil estava bloqueada pelos militares da Guarda Nacional Bolivariana.

Para chega a Pacaraima, a professora seguiu com os filhos por uma trilha localizada numa região de savana onde existem árvores de pequeno porte e muitos arbustos até alcançar o lado brasileiro. Sob o céu nublado e temperatura mais baixa por causa das chuvas do inverno nesta região da Amazônia, a caminhada durou cerca de duas horas.

 “É uma situação horrível que nunca imaginei passar. Sinto muito pelos meus filhos, mas tivemos que caminhar mesmo para chegar ao Brasil”, disse Josete Lima.

Fronteira da Venezuela com o Brasil fechada em 19 de dezembro (Foto: Cora Gonzalo/Amazônia Real)

Além da professora, outras centenas de brasileiros – incluindo turistas – e milhares de venezuelanos andaram em fuga entre os dois lados da fronteira pela rota clandestina. De longe a imagem parecia com a de um formigueiro indo e voltando, pois os venezuelanos continuam a transportar em sacolas e mochilas a comida comprada no comércio de Roraima.

“Senti-me como uma traficante, como se estivesse fazendo algo errado e na verdade meu único objetivo era me reunir com minha família. É indignante saber que por decisões erradas dos políticos muitas pessoas foram prejudicadas”, disse a venezuelana Paola Guadarismo, estudante de economia na Universidade Federal de Roraima, em Boa Vista. Ela atravessou a fronteira pela trilha da savana no dia 15 de dezembro para visitar a família em Santa Elena. Antes, o trajeto que divide os dois países era feito de carro pela rodovia Troncal 10, que no Brasil tem a denominação de BR 174 (interliga Roraima ao Amazonas).

 

“Meu pai me esperou do lado venezuelano e minha irmã veio para me acompanhar na travessia. Carregamos minha bolsa pesada, chegamos todas sujas, mas valeu a pena para poder passar os dias de Natal com a família. Nunca passei longe deles”, contou Paola à Amazônia Real.

 

Imigrantes barrados

Imigrantes na rodoviária de Santa Elena do Uairén em junho (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A decisão de Nicolás Maduro de fechar a fronteira trouxe insegurança, transtornos e violação de direitos para brasileiros e venezuelanos.  Entre os dias 13 e 17 de dezembro, em Santa Elena de Uairén houve confusão e saques nos comércios na cidade.

O fechamento da fronteira também atingiu o fluxo migratório de venezuelanos que partem para o Brasil desde que a crise econômica se intensificou na Venezuela, em 2015. O Gabinete Integrado de Gestão Migratória, ligado a Defesa Civil do Estado de Roraima, estima que nos últimos dois anos esse 72 mil imigrantes entraram no território brasileiro “em busca de melhores condições de vida”. Desse total, ao menos 30 mil permanecem no Brasil.

A maior parte dos venezuelanos parte de Pacaraima para Boa Vista, capital de Roraima, num percurso de 250 quilômetros feito geralmente de ônibus ou carro. Com a fronteira fechada para veículos, os taxistas passaram a cobrar mais caro pelo trajeto. Eles estão abastecendo os veículos em Boa Vista, onde o litro da gasolina custa, em média, R$ 3,90 – enquanto que nos postos venezuelanos se paga menos de R$ 1.

Quem vive em Pacaraima abastece os veículos num posto de combustível instalado do lado venezuelano, antes da Aduana daquele país, construído especialmente para atender aos brasileiros.

 

Brasil decidiu agir

Veículos de turistas brasileiros ficam retidos na Venezuela (Foto: Cora Gonzalo/Amazônia Real)

Com a tensão na fronteira aumentando, o governo brasileiro decidiu agir por meio do Itamaraty e do governo de Roraima. Autoridades brasileiras e venezuelanas fizeram um acordo ainda na segunda-feira (19) para abrir a fronteira entre as duas nações para brasileiros, especialmente os turistas, que se encontravam retidos em solo venezuelano com seus veículos. No dia seguinte (20) é que foi liberada a passagem de venezuelanos, mas a pé.

Com o acordo, o governo de Nicolás Maduro aceitou a travessia de brasileiros e venezuelanos em Santa Elena do Uairén das 7h às 16h (18h em Brasília), quando é fechada novamente. Normalmente, a fronteira abria das 7h às 22h todos dos dias.

O acordo contemplou também o fluxo de entrada e saída de veículos apenas para brasileiros cadastrados no consulado.

Em Pacaraima, o atendimento de imigração da Policia Federal, que esteve fechado durante os dias de conflito, voltou a funcionar, emitindo vistos a turistas.

O governo de Roraima disponibilizou o número da Secretaria de Assuntos Internacionais (+55 95 99146 9977) para os brasileiros se cadastrarem em uma lista, caso estejam de saída do país vizinho.

“É importante seguir esse procedimento para atravessar a fronteira em segurança. Nosso governo tem conversado diariamente com autoridades venezuelanas desde o agravamento dessa crise que culminou com o fechamento da fronteira, para garantir assistência aos brasileiros, sejam aqueles que estavam a turismo como os residentes no país que queiram regressar para o Brasil”, disse a governadora de Roraima, Suely Campos, em nota à imprensa.

Em uma audiência pública realizada na Câmara Municipal de Santa Elena, as autoridades venezuelanas decidiram permitir que seus cidadãos voltassem a comprar alimentos no Brasil.

Mas como não podem atravessar com seus veículos para Pacaraima, os venezuelanos retornam para Santa Elena com sacolas e fardos de comida nas mãos pela rodovia Troncal 10.

 

Malas de dinheiro 

A moeda nacional, o nota de 100 Bolívares foi recolhida pelo governo venezuelano (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O decreto de Nicolás Maduro começou a vigorar no último dia 13 de dezembro. Nas 72 horas após a decisão, os venezuelanos tiveram que depositar as notas de 100 bolívares (a de maior valor no país) em bancos públicos e perante o Banco Central da Venezuela (BCV) para tirá-las de circulação.

Segundo a agência de notícias EFE, por causa da inflação que desvalorizou a moeda nacional, o BVC anunciou que seis novas notas irão circular no país: de 20.000, 10.000, 5.000, 2.000, 1.000 e 500 bolívares, e mais três moedas de 100, 50 e 10.

Com a medida, os donos de comércio no Brasil onde os venezuelanos faziam compras e que recebiam a moeda vizinha ficaram com grande quantidade de cédulas de bolívares guardadas, sem saber o que fazer.

Para o comerciante Rogério Araújo, o prejuízo é total. “É financeiro, emocional, abala tudo. Nós sempre recebemos o bolívar aqui e atendemos os venezuelanos com carinho, mas a Venezuela não tem respeito com a gente. Não acredito que aqui tenha essa máfia internacional que eles alegam”, desabafou.

Rogério Araújo disse que pretende parar de receber o bolívar, pois, além dos problemas decorrentes com a troca das cédulas de 100, “há muita incerteza quanto ao valor real da moeda venezuelana, cada dia mais desvalorizada”. Os venezuelanos são maioria no comércio nas cidades fronteiriças de Roraima, comprando alimentos e produtos de higiene pessoal.

De acordo com Elizete Mesquita, dona de uma papelaria em Pacaraima, com o decreto de Nicolás Maduro a cidade ficou parada e muitos comerciantes tiveram prejuízos.  “Eu já sabia da troca da moeda porque estava circulando [a informação] nas redes sociais, mas não sabíamos quando e nem que a fronteira fecharia. Isso tudo foi surpresa para muita gente e ninguém sabe o que fazer,” disse.

No dia 14 deste mês, segundo dia do fechamento da fronteira, houve uma reunião em Pacaraima entre autoridades brasileiras e venezuelanas para discutir o problema das notas de 100 bolívares. No encontro, ficou decidido que os brasileiros fariam um levantamento da quantidade de dinheiro que têm, e as autoridades venezuelanas levarão a informação a Caracas para tentar encontrar uma solução.

Muitos venezuelanos que vivem na fronteira estavam armazenando o dinheiro em casa, pois os bancos passaram a limitar a quantidade de saques. Com a moeda cada vez mais desvalorizada, as quantias são insuficientes para pagar as contas.

Em Pacaraima é comum ver pessoas com malas de bolívares para comprar alimentos. Elas atravessam o país com dinheiro vivo, pois nos bancos não conseguem sacar as quantias necessárias.

Nos bancos também era raro o caixa fazer os pagamentos, por exemplo, de salários com notas de 100 bolívares, o equivalente a menos de R$ 0,20. O valor geralmente era pago com notas de 20, 10 e até 5 bolívares, o que representava maços de dinheiro com quase nenhum valor monetário. “Eu sempre tenho que levar uma bolsa enorme para sair do banco com 20 mil bolívares. Numa comprinha no supermercado gasto tudo na mesma hora”, contou a aposentada Marcia Diaz.

 

Correria aos bancos

Em Santa Elena do Uairén, Venezuela, fila de carros no posto fechado (Foto Alberto Cesar Araujo/Amazônia Real)

Na Venezuela, o prazo dado pelo presidente Nicolás Maduro para que a população trocasse as notas de 100 por moedas foi, inicialmente, de 72 horas a partir do anúncio da medida, no dia 13 de dezembro. Isso levou milhares de cidadãos aos bancos públicos do país para depositar o dinheiro que tinham. Outras pessoas preferiram queimar o dinheiro pois não tinham como chegar às agências bancárias em tempo hábil; os comércios não estavam mais recebendo essas cédulas.

Muitas pessoas reclamaram que, após enfrentar filas para depositar as notas de 100, iam aos caixas eletrônicos e continuavam recebendo as mesmas cédulas. Os bancários não sabiam o que fazer pois ainda não tinham recebido as novas notas nem moedas.

Após protestos e saques, Nicolás Maduro anunciou, em cadeia nacional, que as notas seriam aceitas até dia 2 de janeiro, o que revoltou ainda mais a população que enfrentou longas filas para fazer a troca ou, ainda, queimou o dinheiro. “O presidente está nos fazendo de palhaços”, disse à Amazônia Real Juan Ramirez, após saber da decisão.

 

Toque de recolher

Fronteira do Brasil com a Venezuela (Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Em Ciudad Bolívar (distante 800 quilômetros da fronteira com o Brasil), houve conflito com mortes e foi necessária a intervenção militar. O governo decretou toque de recolher das 18 às 8h. Mesmo assim, mais de 80% dos estabelecimentos comerciais da cidade foram saqueados, segundo informou a imprensa venezuelana.

A brasileira Marinalva Brito disse que estava hospedada em um hotel na cidade de Puerto Ordaz, localizada no estado de Bolívar, no noroeste da Venezuela, quando o estabelecimento foi alvo de assaltantes. Ela disse que os criminosos arrombaram as portas dos quartos e atiraram em hóspedes para roubar dinheiro. “Nós acordamos com o barulho das pessoas gritando, chorando e muitos tiros. Ficamos apavorados e nos deitamos no chão, mas graças a Deus não conseguiram arrombar a nossa porta”, contou a Marivalda.

Ela disse que quando saiu de Puerto Ordaz para o Brasil (numa distância de 835 quilômetros) a fronteira já estava fechada. Lá tiveram ajuda de caleteros, pessoas que carregam mercadorias e transportam pessoas na fronteira. “A única alternativa foi atravessar pelo caminho clandestino. Pagamos R$ 200 a uns venezuelanos para nos levarem por uma rota mais longa, por dentro de uma comunidade indígena, uma parte de carro e outra a pé. Graças a Deus estamos no Brasil após todo o terror vivido na Venezuela”, desabafou Marinalva em entrevista à Amazônia Real.

Na rodovia o carregador “caletero” leva mantimentos na fronteira (Foto: Cora Gonzalo/Amazônia Real)

 

 

Cora Gonzalo, especial para a Amazônia Real

*Cora Gonzalo é venezuelana, jornalista e professora da Universidade Estadual de Roraima, em Pacaraima.

23/12/2016 20:21

 

 

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