Testemunha de massacre contra os Yanomami, Claudia Andujar é homenageada em Roraima

Na sala de cinema do Centro Amazônico de Fronteira da Universidade Federal de Roraima, em Boa Vista, ecoou entre os participantes uma declaração-homenagem à fotógrafa que deu visibilidade ao mundo a luta pela sobrevivência do povo Yanomami.  “A minha segunda mãe se chama Cláudia Andujar. Estou fazendo parte da história de 40 anos de convivência dela na Terra Indígena Yanomami. Eu tenho muito orgulho de homenagear minha segunda mãe!”, disse Dário Yawarioma, filho do líder Davi Kopenawa Yanomami, que postou a declaração em uma rede social.

 

Sim, Claudia Andujar, de 85 anos, é chamada de mãe por muitos índios Yanomami, etnia que ela conheceu por causa da fotografia em 1971, quando trabalhava na revista Realidade. Daí ela vem se dedicando a lutar pela preservação da cultura desse povo. Em 1978 foi expulsa da reserva, que fica entre os estados do Amazonas e Roraima, pelo governo militar.  “O governo brasileiro era militar e ficou muito desconfiado do que eu estava fazendo aqui e me expulsaram, mas porque eu era uma testemunha do massacre”, disse Claudia Anjudar em entrevista à Amazônia Real.

Claudia, então, começou a lutar pela demarcação da terra dos Yanomami. Foi uma das fundadoras da organização não governamental Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY). “Lutei por isso, mas não foi fácil, pois eram anos extremamente difíceis, mas eles entenderam o que eu estava fazendo. Em 1992 a Terra Indígena Yanomami foi demarcada.”

Atualmente, o povo Yanomami está ameaçado pela invasão do território por garimpeiros de ouro e madeireiros. Sobre o momento político em que o país é presidido por um governo de direita, Claudia diz: “Espero que a gente não volte aos tempos dos militares, mas parece que estamos a caminho. Creio que todo esse interesse político no Brasil é pela exploração das terras, a ocupação da Amazônia, desmatamento, mineração, os projetos hidrelétricos. É isso que eu vejo hoje. Eu acho um desastre e não sei como isso vai continuar. É o que posso dizer.”

Claudia Andujar nasceu na Suíça, em 1931. Porém, com um mês de vida, sua família mudou-se para a Hungria e depois para os Estados Unidos fugindo da Segundo Guerra Mundial. Aos 13 anos, ela teve o pai judeu e outros familiares mortos no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia.

“Em 1944 a Transilvânia [hoje Romênia] foi ocupada pelos alemães. O plano era fazer campos de concentração e retirar todos de suas casas e levá-los para esses campos. Foi o que aconteceu com muitas pessoas e meu pai foi um deles” disse.

Nos Estados Unidos, Claudia e a mãe foram morar em Nova Iorque, onde viveu dos 14 aos 17 anos.  “O primeiro trabalho que consegui lá foi de vendedora em um supermercado. Depois fui trabalhar em uma empresa e estudava à noite na faculdade de ciências humanas. Foi lá que conheci Júlio Andujar, com quem casei. Ele era refugiado da Guerra Civil Espanhola”, disse.

Passou alguns meses casada com Júlio. Ele foi enviado para a Guerra da Coréia (1950-1953) e ela não quis ficar casada e lembrar tudo o que tinha passado com seu pai. Depois da separação, mesmo sem concluir a faculdade de ciências humanas, Claudia foi morar com a mãe em São Paulo.

“Minha mãe veio para o Brasil a convite de um namorado dela que escapou da Segunda Guerra. Ele era húngaro, pediu refúgio ao Brasil e convidou minha mãe. Assim cheguei aqui em 1955 a convite dela. Primeiro vim a passeio, só que gostei tanto do povo brasileiro que quis ficar. Trabalhei muito tempo como professora de francês e inglês”, afirma a fotógrafa.

Conhecida por ser a primeira fotógrafa a registrar o povo Yanomami, Claudia nunca fez um curso de fotografia – aprendeu sozinha essa arte.

“Aprendi a fotografar com a vida, observando e fotografando. Lógico que depois fui perguntando de uns amigos fotógrafos algumas técnicas. Com o tempo fui tendo máquinas mais sofisticadas. No começo da minha carreira fotografava para mim, era um prazer. Até hoje nunca fiz um curso profissional numa escola de fotografia”, disse sorrindo.

Claudia mora em São Paulo e esteve em Roraima a convite dos Yanomami para participar da assembleia que escolheu a nova coordenação da Associação Hutukara Yanomami. Na sala de cinema da UFRR, fotógrafos de Boa Vista conversaram com a artista sobre fotografia e assistiram a uma exibição do filme sobre a fotógrafa A estrangeira”, do diretor Rodrigo Moura.

Leia a entrevista exclusiva concedida à reportagem da Amazônia Real a seguir.

 

Amazônia Real – Como surgiu o interesse em fotografar os índios?

Claudia Andujar – Eu gostava muito de ir para o interior do litoral paulista, então comecei a viajar para conhecer o povo de lá. Foi quando observei que eram pessoas que me faziam recordar o povo onde vivi na minha infância, na Transilvânia. Um povo simples e acolhedor. Como não sabia falar português comecei a fotografar para conhecer melhor o país e aprender a dialogar com as pessoas.

Em 1958, em São Paulo, eu conheci alguns antropólogos, em especial o Darcy Ribeiro. Ele viu meu trabalho de fotografia e esse interesse humano que eu tinha. Então, ele me perguntou: ‘Por que você não vai numa aldeia indígena?’. Ele fez esse questionamento porque eu ficava fotografando pessoas nas comunidades no litoral de São Paulo. Fotografava pescadores, ribeirinhos, etc. Eu me sentia muito bem-vinda no meio deles. Era uma comunicação muito próxima.

Depois desse conselho (do Darcy), viajei para conhecer os índios Karajá, no Brasil Central. Fiquei um mês fotografando e fiz muitas amizades. Depois voltei para São Paulo para revelar os filmes e mostrar meu trabalho para pessoas ligadas à fotografia e à antropologia.

Depois de algum tempo, alguns amigos sugeriram mostrar meu trabalho para algumas revistas americanas, como a Life. Foi quando entrei no ramo de profissionais da fotografia, porém não quis voltar para os Estados Unidos, eu ficava um mês ou dois, pois amava o Brasil (risos).

 

Amazônia Real – Como foi o seu primeiro contato com o povo Yanomami?

Claudia – No ano de 1971 conheci o suíço René Feierst que viveu uma época com os índios Yanomami. Ele sugeriu para ir com ele até a Missão Catrimani, que fica no município de Caracaraí, aqui em Roraima, onde vivia um padre e o missionário Carlos Zaquine, que já morava com eles há seis anos. Eu tinha 30 anos e decidi ir até lá e fui bem recebida, gostei muito dos Yanomami que viviam na região.

Encontrei um povo que me recebeu com afeto e estava aberto à comunicação, apesar de eu não falar nenhuma palavra em Yanomami.

Eles fizeram várias perguntas, queriam saber da minha vida. Se eu tinha filhos, marido e tantas outras coisas. Fui aceita muito bem.

Foi um momento muito gratificante. Eu os acompanhava com Zaquine durante a caça, a pesca e isso me abriu a possiblidade de realmente começar a conhecer a cultura Yanomami. Isso me interessava mais do que qualquer outra coisa. Eu fotografava, mas queria mesmo era conhecer a cultura deles.

Depois voltei a São Paulo para revelar todo o trabalho que tinha feito, pois aqui em Roraima não tinha condições de revelar os filmes e ver o resultado.

Nessa época consegui duas bolsas da Fundação Guggenheim (1971 e 1974) e uma da Fapesp, em 1976. E isso, obviamente, permitiu-me ir para São Paulo e voltar à área Yanomami quantas vezes desejasse e precisasse. 

Amazônia Real – Em 1978, a senhora foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional pelo governo militar e expulsa do território indígena pela Funai. O que significou esse momento para sua história?

Claudia – Quando cheguei aqui a Roraima os Yanomami tinham pouquíssimo contato com os brancos. Tinha a missão Catrimani na região deles, porém eles não tinham contato com outras pessoas. Em 1974, o governo brasileiro, que era um governo militar, decidiu abrir a estrada – a Perimetral Norte. Eu estava lá quando tudo isso aconteceu, registrei muitas coisas com minha câmera. Eu vi o sofrimento dos índios com a abertura dessa estrada. A destruição das árvores, desmatamento etc… Um desastre com todas as doenças que entram e que mataram centenas e centenas de Yanomami.

O governo brasileiro ficou muito desconfiado do que eu estava fazendo aqui e me expulsaram, mas porque eu era uma testemunha do massacre. Expulsaram-me com a desculpa de que eu era uma estrangeira que estava tentando roubar a terra dos índios para os americanos ocuparem a Amazônia.

Isso tudo me conduziu a ter a necessidade de interferir e defender os Yanomami de alguma forma.

 

Amazônia Real –  Então foi nesse momento que a senhora retornou a São Paulo e organizou um grupo de estudos em defesa da criação de uma área indígena Yanomami.  Este foi o embrião da ONG Comissão pela Criação do Parque Yanomami, CCPY (depois Comissão Pró-Yanomami). Você assumiu então a coordenação da campanha pela demarcação desta terra indígena, o que finalmente ocorreu em 1992. O que foi mais difícil nesse movimento em prol da demarcação?

Claudia – Sim, retornei para São Paulo, mas com isso na cabeça: ajudar os Yanomami de alguma forma. Na época tinha outras coisas acontecendo com outros povos da Amazônia. Movimentos em defesa da causa indígena, antropólogos, gente ligada à questão indígena que decidiu defender os índios. Eu me juntei a esse grupo e foi lá que fiquei convencida de que eu tinha que lutar pela demarcação da Terra Yanomami. Impedir a continuação da estrada Perimetral Norte, e a entrada dessas pessoas que levaram tantas doenças ao povo Yanomami.

Quando comecei esse trabalho já tinha cidadania brasileira, mas para falar com as autoridades em Brasília foi difícil, porque como hoje tinha um sotaque quando falava.  E aquela informação passada pelo governo militar de que eu queria tomar a Amazônia para os estrangeiros ainda corria em Brasília. Mas eu tinha que enfrentar tudo isso, e enfrentei. Pedia audiências com o presidente da Funai e outras autoridades. Comecei a fazer esse trabalho em Brasília e falar sobre o desastre que era essa estrada.

Por fim, o que aconteceu foi que o governo não tinha mais dinheiro para continuar a obra e ela parou. Mas eu batalhei muito para que a terra dos Yanomami fosse demarcada como deles. Lutei por isso, mas não foi fácil, pois eram anos extremamente difíceis, mas eles entenderam o que eu estava fazendo e, em 1992, a terra Yanomami foi demarcada.

Amazônia Real – Como a senhora vê o Brasil hoje governado pela direita?

Claudia – Eu não vejo! (risos). Quer dizer, eu acho terrível. Espero que a gente não volte aos tempos dos militares, mas parece que estamos a caminho. Creio que todo esse interesse político no Brasil é pela exploração das terras, a ocupação da Amazônia, desmatamento, mineração, os projetos hidrelétricos. É isso que eu vejo hoje. Eu acho um desastre e não sei como isso vai continuar. É o que posso dizer.

 

Amazônia Real – Voltando a falar de fotografia. Como a senhora convenceu fotografar os Yanomami diante do mito de que a fotografia rouba o espírito do índio?

Claudia – Realmente até hoje tem uma geração – a velha geração – que acredita que a fotografia rouba o espirito da pessoa. Fotografá-los era um desafio. Mas não foi difícil, pois eu me envolvi muito com eles, respeitava o seu jeito de viver e sua cultura. Eu virei uma amiga e hoje todos me chamam de mãe. Nós desenvolvemos uma confiança mútua muito grande e fotografá-los foi uma coisa que aconteceu naturalmente.

 

Amazônia Real – Hoje os jovens Yanomami que têm acesso ao celular adoram expor suas fotos nas redes sociais da internet. Como a senhora avalia essa mudança de comportamento?

Claudia – Eu acho que a coisa é muito mais complicada do que a fotografia em si. Vamos dizer que a parte da fotografia eu acho ótima. Por exemplo, nessa assembleia que participei lá no Catrimani (TY) falaram que iam mostrar um vídeo que eles estão produzindo, mas infelizmente não deu tempo. Eu tenho muita curiosidade de saber como eles se veem. Esse é um lado positivo de eles quererem se enxergar. Uma maneira de se comunicar com o mundo.

Agora, eu fico um pouco preocupada com o consumo de coisas eletrônicas como tabletes, celulares etc…. O celular virou uma “febre” entre eles, quase todos têm. Creio que essa é também uma preocupação das lideranças indígenas.

Eu acredito que vão encontrar uma maneira de esclarecer que esse consumo exagerado não é bom e pode até interferir na cultura deles também. Isso é uma coisa extremamente complexa.

 

Amazônia Real – Nos últimos anos a senhora buscou em seus arquivos a ressignificação da sua obra. E de uma forma bem criativa aproximou da fotografia contemporânea. Como se deu esse processo?

Claudia – Quando trabalhamos na demarcação da Terra indígena Yanomami era um tabu para eu mostrar meu trabalho de fotografia, pois eu era muito visada, odiada e perseguida pelas autoridades e mostrar o meu trabalho em público teria sido o fim. Provavelmente teriam destruído tudo, então eu o escondi por algum tempo.

A demarcação aconteceu em 1992 e depois começamos um trabalho de saúde (CCPY) e um trabalho de educação lá no Demini (TY). Foi logo depois disso que achava que era hora de retomar o trabalho de fotografia que existia.

Tinha um pessoal em São Paulo que se interessou pelo meu trabalho e foi assim que consegui a publicação do primeiro livro. Fiz um laboratório dentro da minha casa e comecei a trabalhar minha fotografia. Mas, na verdade, o que mostro hoje, a grande maioria, é da época em que eu morava com os Yanomami.  Decidi mostrar através do meu trabalho de fotografia a parte espiritual dos Yanomami e do xamanismo, mas eu já tinha esse trabalho, porém tentei fazer sobreposições nas minhas imagens, por exemplo, uma imagem de uma pessoa junto com a natureza, eu fiz justamente para penetrar mais e tentar explicar o que é a cultura dos Yanomami.

Os Yanomami acreditam que tudo que está vivo pertence ao mundo dos vivos, isso é tanto uma estrela, a lua, a natureza, as folhas de uma árvore etc. Então, eu quis mostrar esse pensamento dos Yanomami de como sentem e observam ao seu redor, pois tudo faz parte da natureza. Isso eu coloquei nos livros e exposições.

 

Amazônia Real – Seu livro “Amazônia”, com George Love, foi um marco na fotografia. A Amazônia foi apresentada de forma inovadora em 1978. Em quase 40 anos o que mudou no seu olhar sobre a Amazônia?

Claudia – Infelizmente estão destruindo aos poucos a Amazônia, principalmente com esses grandes projetos, mineração, hidrelétricas e tantos outros. Eu espero que a gente não consiga destruir a Amazônia.

Hoje eu acho que a coisa mais importante é entender que a Amazônia é vital não só para as pessoas que moram aqui, mas para o mundo. Se eu puder fazer alguma coisa para o mundo entender isso, eu vou fazer. Eu acho que é a coisa mais importante que podemos fazer nesse planeta.

Eu olho a Amazônia com muita preocupação. Do jeito que está indo, está sendo destruída pouco a pouco.  A natureza não vai mais existir se continuar como está. Será o fim da Amazônia, infelizmente.

O povo está um pouco mais consciente, do que há 20 anos. É uma consciência que está nascendo. Diferente de como a política vê a Amazônia. É uma luta muito grande.

Em 2015, o Instituto Inhotim, em Belo Horizonte (MG), dedicou sua 19ª. galeria permanente ao trabalho da fotógrafa Claudia Andujar. O pavilhão de 1.600 metros quadrados exibe 400 fotografias realizadas pela artista entre 1970 e 2010 na Amazônia brasileira e com o povo indígena Yanomami, segundo o site do museu.

Janaína de Souza, especial para a Amazônia Real

As reportagens da Amazônia Real podem ser republicadas dando os créditos dos autores de texto e fotos, conforme a Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional.   

 

      

21/10/2016 18:35

NOTA

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