Estiagem severa e queimadas atingem centro-sul da Amazônia Legal

Uma estiagem extrema atinge a região centro-sul da Amazônia Legal e afeta uma população de 400 mil pessoas diretamente. O aumento das queimadas, que ocorrem na maior parte dos casos após desmatamentos da floresta, prejudica a qualidade do ar em cidades do Mato Grosso, Tocantins, sul do Amazonas, Maranhão e do Pará. No leste do Acre é a redução do nível dos rios que compromete o abastecimento de água potável em sete municípios e na capital Rio Branco.

Para o ecólogo Philip Martin Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e a bióloga do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Nacionais (Cemaden), Liana O. Anderson, as alterações atuais do clima nestas regiões da Floresta Amazônica, que normalmente entre os meses de junho a outubro enfrentam a estação seca, são resultados do grande fenômeno El Niño, também chamado de Godzilla.

O fenômeno, que tem origem no aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico na costa peruana, teve seu pico no final de 2015, enfraqueceu em maio de 2016, e entrou forte no segundo semestre do ano, “baixando extremamente as vazões dos rios e causando o ressecamento da vegetação da floresta e os incêndios florestais no sul da Amazônia”, diz Fearnside.

Especialmente no estado do Acre, o climatologista Gilvam Sampaio, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), diz que a origem da grande estiagem está do outro lado do continente americano: é a elevação da temperatura no Atlântico Norte. 

No boletim da hidrologia dos rios divulgado esta semana pelo Serviço Geológico do Brasil, órgão ligado ao Ministério de Minas e Energia, a região centro-sul da Amazônia Legal continua sem previsão de chuvas que mude o atual quadro da seca extrema. A informação é baseada em estudos do Center for Ocean Land Atmosphere Studies, o COLA (sigla em inglês para Centro de Estudos do Oceano-Continente-Atmosfera), que fica na Virgínia, nos Estados Unidos, e recebe informações da Nasa.

Segundo o COLA, em decorrência da permanência da massa de ar seco na faixa central do país, as precipitações (chuvas) mensais ficaram abaixo da média no mês julho, variando de 10 milímetros (mm) a 20 mm, e a tendência é que o quadro permaneça assim na primeira quinzena de agosto na região sul da Amazônia Legal. “O modelo permanece indicando pouca ou nenhuma possibilidade de chuvas nesse período, ainda em decorrência da permanência da massa de ar seco, que vem dificultando a formação de nuvens e chuva nesta região”, diz o centro norte-americano, conforme o boletim do CPRM. O órgão é o responsável por divulgar os alertas da gravidade dos fenômenos como secas e enchentes para que as Defesas Civis regionais atuem no socorro às populações.

A falta de chuvas fez os estados do Acre, Mato Grosso e Maranhão decretarem a situação de emergência. O Amazonas e Tocantins estão em alerta, e Pará e Rondônia ainda avaliam os danos causados pelas estiagem. Os incêndios florestais acontecem facilmente. As árvores estão secas e as folhas aptas a entrar em combustão. Veja o mapa abaixo:

Em Rio Branco, o rio Acre, na bacia do rio Purus, atingiu seu nível mais baixo dos últimos 45 anos (a medição hidrológica começou em 1971) no dia 5 de agosto, com 1,38 metros – o menor tinha sido registrado em 2011, com 1,50 m. Na capital, dos 370.550 habitantes, 65% são atendidos pela rede de abastecimento público, mas dificuldades na captação das estações podem levar ao menos 241 mil pessoas a enfrentar o racionamento na distribuição de água potável. Na cidade há bairros que já enfrentam a falta d´água depois que os poços artesianos secaram.   

Sob efeitos do Godzilla

O ecólogo Philip Martin Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), foi um dos primeiros cientistas no Brasil a prever um quadro difícil para o clima amazônico ainda no ano passado por causa dos efeitos do El Niño Godzilla. “Em 2015 a temperatura da água no Pacífico chegou a níveis recordes, provocando um El Niño superforte: O El Niño “Godzilla” foi o responsável pelas secas extremas no norte da Amazônia (em especial em Roraima) e mais chuvas na parte Sul do país. Seu pico foi em novembro-dezembro de 2015. É [atualmente] o responsável pela seca extrema no Acre e nas regiões vizinhas como Rondônia e sul do Amazonas”, disse Fearnside.

Ele explicou como o El Niño Godzilla alterou a estação seca da região, que normalmente começa em junho e vai até outubro. “Estamos em agosto, que é época seca no sul da Amazônia, independentemente das anomalias nos oceanos. A grande pergunta é: por que choveu menos que o normal de janeiro a junho, o que contribuiu para as condições de vazão extremamente baixa e ao ressecamento da vegetação que leva aos incêndios atuais?”, indagou o cientista, respondendo em seguida: 

“No mês de junho a temperatura da água na parte oriental do Pacífico entrou levemente no lado La Niña (água mais fria que a média), enquanto a água no centro do Pacífico ficou em temperatura neutra, e no oeste do Pacífico a água continuou quente”, disse.

Segundo Fearnside, simultaneamente aos efeitos do El Niño no clima, começou o período anual de estiagem – que é normal para o sul da Amazônia – por conta da atuação da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT). Esta zona se forma na latitude onde o Sol incide diretamente sobre o Planeta, onde há mais intensidade solar. “A ZCIT migra para o norte ou para o sul da Linha do Equador, conforme a estação do ano. A partir de 22 de junho, passa para o norte da linha do Equador. Quando o ZCIT fica na região amazônica, o ar carregado de vapor d’água que evaporou do Oceano Atlântico é trazido pelos ventos predominantes, que se deslocam de leste para oeste, causando a época chuvosa na região”, explica.

Fearnside disse que, no momento, a ZCIT está sobre o mar do Caribe. Nesta área, ele afirma que o ar aquecido pela incidência direta do Sol sobe até aproximadamente 1.800 m de altitude, e o resfriamento do ar nesta subida forma a água a condensar e cair como chuva. Este ar, explica ele, depois se divide em duas “células”, chamadas de Células de Hadley (ocorre nas zonas de baixa latitude, isto é, nas regiões entre a Linha do Equador e dos trópicos de Câncer e de Capricórnio). “Uma célula leva este ar, agora seco, para o norte e outra para o sul. O ar desce à superfície da terra depois de se deslocar aproximadamente 30 graus de latitude, e no local onde ele desce vai ressecar a terra”, disse.

O resultado dos efeitos é uma seca extrema na Amazônia, diz o ecólogo do Inpa. “Neste caso, o ar da Célula de Hadley no lado sul está descendo sobre o sul da Amazônia, assim continuando com a seca que começou com o El Niño. A sequência de secas concatenadas desta forma está levando a condições para o grande número de incêndios observados, e também aos níveis extremamente baixos de vazão no rio Acre”, afirma Philip Fearnside. 

A bióloga com pós-doutorado no Instituto de Mudanças Climáticas da University of Oxford, na Inglaterra, Liana O. Anderson, fala sobre a pesquisa da agência especial norte-americana (Nasa) que apontou 2016 como um dos anos de maiores impactos da estiagem na Amazônia, com a ocorrência de grandes incêndios florestais. Para ela, o que o centro-sul da região amazônica enfrenta é também consequência do El Niño Godzilla.

Liana Anderson diz que o cenário de rios com vazantes históricas e uma vegetação com “estresse térmico” propiciam a proliferação do fogo. Na região sudoeste da Amazônia, segundo ela, a situação é mais grave já que o  déficit hídrico acontece desde a última estação chuvosa, em 2015.

“As chuvas já foram abaixo da média no ano passado. O tempo está seco, as temperaturas mais altas e a previsão de ventos fortes, o que acaba sendo um fator a mais para a proliferação de incêndios florestais”, diz Liana, que é pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Nacionais (Cemaden), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia.

Sobre o estudo da Nasa, a bióloga explica que ele foi elaborado a partir das análises das temperaturas dos oceanos, que permitem prever qual região do globo terá mais impactos com as chuvas, ou a sua escassez.

“Eles usam dados de temperaturas de oceano e, com isso, você consegue ter uma análise se vai chover um pouco mais ou um pouco menos. Como já vinha com esse quando de temperaturas anómalas do oceano, conseguiram identificar, com uma boa antecedência, que estava se formando um quadro que poderia vir a levar a essa seca”, explica Liana Anderson.

Segundo a cientista, foi detectada uma elevação da temperatura do Pacífico na costa oeste dos Estados Unidos, causa principal para a atual seca.

“Isso tudo ainda é efeito do El Niño que começou no ano passado e que teve uma intensidade bem maior do que os outros, por isso ganhou o nome de Godzilla. Ele foi o mais forte com temperaturas anómalas do Oceano Pacífico. Ele já começou a se dissipar, ele já não é um El Niño, mas ainda mexe com todo o ecossistema, com a atividade atmosférica da região”, afirma a cientista do Cemaden.

Aliado às sequelas deixadas pelo Godzilla, Liana Anderson destaca o aumento em curso da temperatura do Pacífico Norte, contribuindo para a Amazônia ter um 2016 de estiagem crítica. “Quando você tem esse aquecimento do Oceano Pacífico provoca o deslocamento das massas de ar úmido para fora da região amazônica, e acaba tendo esse quadro. Foi observado também na região do Pacífico, mais ao Norte, na costa da Califórnia, que a temperatura está acima do normal. Você tem estes diferentes sistemas interagindo e acaba que a consequência é ainda estamos sentindo temperaturas altas e a falta de chuvas,” diz a bióloga.

 

As águas do Atlântico Norte

Já para o climatologista Gilvam Sampaio, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a origem para a seca no centro-sul da Amazônia Legal está do outro lado da costa norte-americana: o Atlântico Norte. “As pessoas falam do aquecimento do Pacífico, o que não é verdade. O El Niño não provoca mudança da precipitação na região do Acre. Ele só vai provocar mudança na precipitação no norte e leste do Amazonas, no norte do Nordeste e no Sul do Brasil”, diz.

Segundo Sampaio, a elevação na temperatura do Atlântico não chegou a um grau Celsius, mas foi suficiente para desequilibrar o clima em algumas partes do mundo. “O que aconteceu de fato é o Atlântico Norte estar mais aquecido. Quando ele está mais quente você tem menos chuva nessa região, principalmente nesta época do ano: julho, agosto e setembro. O Atlântico Norte mais quente contribui para ter menos chuva nessa região. Além disso, o El Niño não impacta as chuvas na região [do Acre], mas ele faz com que as temperaturas fiquem mais altas”, disse o climatologista do Inpe.

Por causa da intensificação da estiagem e da vazante nos rios da bacia amazônica, o Ministério da Integração Nacional reconheceu na quinta-feira (4) a situação de emergência em municípios do Acre, Maranhão e Mato Grosso. A medida representa o apoio da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec) no socorro, assistência e no restabelecimento de serviços essenciais empregados nas ações de resposta ao desastre natural.

O reconhecimento da situação de emergência nos estados pelo governo federal permite o apoio financeiro em ações de abastecimento hídrico e o acesso ao benefício de renegociação de dívidas no setor de agricultura, a aquisição de cestas básicas e a retomada da atividade econômica dos municípios afetados. O reconhecimento federal é válido por 180 dias. No início da semana o governo já tinha anunciado que autorizou, por meio de Medida Provisória, a abertura de crédito extraordinário no valor de R$ 789,9 milhões para as ações emergências da Sedec garanta ajuda humanitária às populações atingidas por desastres naturais.

Seca está só começando

Sem chuvas, o Monitoramento de Queimadas e Incêndios do Inpe registrou nos estados do Acre, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Pará e Tocantins um aumento de 102% nos focos de incêndios no mês de julho de 2016 em relação ao mesmo período do ano passado: 12.546 focos contra 6.186. Para Alberto Setzer, pesquisador e coordenador do Centro de Monitoramento de Queimadas e Incêndios do Inpe, a temporada das queimadas, que geralmente no centro-sul e noroeste da Amazônia vai até o mês de setembro e início de outubro, está só começando.

“Estamos no começo da estação seca. Ainda é muito cedo para qualquer previsão, mas é preocupante. Não estamos nem em 10% no que deve acontecer o ano todo”, afirma Setzer.

O pesquisador diz que as queimadas na floresta amazônica não são naturais. “Elas não ocorrem sozinhas. São sempre resultado de uma ação humana. O que vai acontecer nos próximos meses com certeza depende do clima. Se o clima for seco, como está se esperando, então você tem condições para o uso e a propagação do fogo. Mas esse uso e propagação dependem do que o ser humano vai fazer nessa região e como as autoridades vão controlar isso”, explica Alberto Setzer.

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