Waimiri – Atroari: expropriados ontem e hoje

A expropriação da Terra Indígena Waimiri-Atroari, iniciada em fins da década de 1970, no Estado do Amazonas (aproximadamente no município de Presidente Figueiredo) alicerçou a mais incisiva tentativa de amealhar áreas de populações tradicionais e indígenas na Amazônia a partir da implantação de grandes projetos de investimento.  

Já em 1987, época de preparação para a Constituição, que viria a ser consolidada um ano depois, um forte lobby de empresas privadas fez com que fosse acertado que a mineração nessas terras indígenas estava liberada para a disputa por empresas privadas, bem como a alagação a partir de barragens pela estatal Eletrobrás. Ambas as medidas agrediram a soberania indígena e facilitaram a inserção de empresas de capital estrangeiro na Amazônia.

Nesse período, os educadores Egydio Schwade e sua esposa, Doroti Schwade, bem como os antropólogos Stephen Baines, da Universidade de Brasília (UnB), e Márcio Ferreira da Silva, do departamento de Antropologia da Universidade de Campinas (Unicamp), trabalhavam com pesquisa na área e tiveram de sair das aldeias sob pena de prisão, caso não obedecessem as determinações. “Não havia escola capaz de ‘compensar’ os prejuízos causados àquele povo pelo projeto hidrelétrico em questão. O lugar da escola deveria ser o da crítica às práticas do órgão tutelar do setor elétrico” (SILVA, 1994, p. 40)*.

Silva, ao avaliar a interposição do Estado na educação indígena, criticou o posicionamento governamental em relação ao trato com membros da etnia e complementou sua posição destacando que “julgava (e ainda julgo) que os Waimiri-Atroari estavam pagando um preço muito alto por uma escola, por melhor que fosse” (ID., op. cit., p. 40-41).

A análise se pautou no trancamento da etnia a opiniões externas que não corroborassem os planos do Programa Waimiri-Atroari (PWA). E mesmo que tivessem sido propostos pela Amazonas Energia novos interesses ao Estado de direito indígena, relacionados à boa governança, à democracia e aos direitos humanos dentro da aldeia, a autodeterminação teria sido (como foi) comprometida pela reconformação de mundo imposta aos étnicos.

Em estudos relativos ao impacto do reservatório e da mineração na vida dos índios Waimiri-Atroari, Márcio Silva é um dos precursores da noção de que as redes sociais fundadas por parentesco e compadrio dentro da etnia importariam fundamentalmente para o resgate da educação.

“Observava na escola Waimiri-Atroari algo muito diferente. Dois irmãos consideravam natural um fazer a tarefa do outro. Um pai e um filho, da mesma forma, não se sentiam obrigados a fazer, cada um, o seu dever. Paralelamente, minha pesquisa sobre parentesco revelava uma série de práticas sociais (fora da escola) do mesmo tipo: entre os Waimiri-Atroari, um homem solteiro tem acesso sexual às esposas dos irmãos, sem que isto seja considerado adultério. Analogamente, duas irmãs podem, se quiserem, casar com um mesmo homem. Como era possível então que dois irmãos pudessem fazer juntos um filho e não pudessem fazer juntos o dever da escola?” (ID., op. cit., p. 42).

Baines, por sua vez, afirmou que os Waimiri-Atroari passaram a adotar habitus estranhos ao que levavam no passado, seguindo regimes de trabalho e modelos sociais que não pertenciam a sua história tradicional; seguindo também uma dinâmica comportamental ocidentalizada, orientada pela produção e não pela necessidade de socialização e bem viver. De maneira que a interiorização do sistema social aplicado pelo convênio Funai/Amazonas Energia teve viés psíquico negativo porque adotou o modelo de índio ocidentalizado e não autônomo.

Em relação ao problema da alagação dos milhares de hectares dos Waimiri-Atroari e da mineração nas terras imemoriais, o governo federal, hoje, utiliza-se de imagens arquivadas do PWA para justificar a expansão de projetos de usinas hidrelétricas na região amazônica, os quais, se aprovados em sua totalidade pelo governo golpista de Michel Temer, atingirão um grande número de sociedades indígenas até 2020 e não chegarão perto de resolver o problema energético brasileiro, que aumenta em função das metas do Produto Interno Bruto do país.

A suposta necessidade dos Grandes Projetos de Investimento serve de desculpa para que o governo planeje elevar em 5% seu PIB a cada 12 meses nos próximos anos, atingindo 2017 com alta de 20% no comparativo com 2009, a custa da construção de hidrelétricas em novas áreas indígenas. Todavia, é crível supor que houve reducionismo da problemática relativa às ações afirmativas para populações indígenas por parte do governo federal desde o ano de 2009 – no caso das hidrelétricas e da expropriação mineral.

O mais preocupante é que o Estado lida com índios usando-se das mesmas estratégias que poderiam ter sido pensadas para diálogos com posseiros, grileiros, capatazes ou garimpeiros de territórios amazônicos (e estes em verdade prejudicam ecossistemas). E assim a tática de cooptação a partir de favores e/ou pequenos benefícios vai ganhando cada vez mais lugar de destaque, ao invés da ponderação equilibrada. E o grave é que, com objetivo de integrar os Waimiri-Atroari à economia nacional, a usina comprometeu o modo de vida deles por ter degradado de imediato não apenas o recurso hídrico, mas também parte do regime espiritual, dos costumes, das crenças e dos comportamentos ritualísticos e grupais em razão da territorialidade assimilada ao longo de uma existência comum.

* Nota.

SILVA, Márcio Ferreira da. A conquista da escola: educação escolar e movimento de professores indígenas no Brasil. Em aberto. Brasília, ano 14, n.63, jul./set. pp. 38-53. 1994.

RENAN ALBUQUERQUE

Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios waimiri-atroari, sateré-mawé, hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária. 

28/06/2016 17:26

NOTA

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