Antropólogo diz que índios foram esquecidos à medida em que a democracia foi se consolidando

É na comunidade onde nasceu, Carara, no rio Içana, que Gersem José dos Santos Luciano Baniwa começa, como professor, a caminhada de líder indígena. Tinha 20 anos em 1985 e acabara de concluir o ensino médio. Vivia dois momentos antagônicos.  Um como parte de um povo que estava fadado à extinção ou sobreviver deixando de ser índio. Outro, vivenciando as tradições culturais baniwas – “um dos períodos mais ricos da minha vida”, registrada. Hoje, doutor em antropologia social, o diretor do Departamento de Políticas Afirmativas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Gersem Baniwa se declara determinado a travar todas as lutas para reinventar a democracia no Brasil. 

“Tenho a alegria e a satisfação de ter participado desse acontecimento tão importante para a sociedade brasileira e, particularmente na Amazônia, para nós povos indígenas, que foi a luta pela redemocratização. Não apenas testemunhei, estava no processo e isso é muito forte a toda minha geração. Quem não viveu integralmente aquela realidade pouco pode imaginar o que era ser índio no Brasil antes do processo de redemocratização. Resumo essa vivência como um modo de ter sensação de liberdade”.

No campo indígena, vê a operação de um milagre e recorda que a infância e a adolescência dele foi triste porque eles eram o povo sem futuro e estavam na fase final da história deles. “Imagine o que é você crescer ouvindo isso”. No final da década de 1970 e na virada para 1980, alguns intelectuais afirmavam que na virada do milênio não haveria mais índios no Brasil.

“O mínimo que sobrava para nós era sobreviver fisicamente. E o que seríamos entre os brasileiros? Por isso, quando olho para aquela época, sei que realizamos um milagre. Estamos vivos, vamos quebrar a casa de 1 milhão de pessoas. Estamos aprendendo a não mais andar de cabeça baixa, e vamos retomar as nossas lutas”.

A alegria por ser parte das lutas pela redemocratização brasileira e na Amazônia e por não terem desaparecido não encobre o posicionamento crítico desse antropólogo a respeito do modelo democrático nacional/regional.

É esse olhar que Gersem Baniwa registra nesta entrevista na série Democracia e Amazônia. Afirma que a imagem indígena de resistência do povo que não se entrega foi bem aproveitada na luta pela redemocratização e serviu para enriquecer falas como as dos deputados federais Dante de Oliveira (autor da Proposta de Emenda Constitucional nº 05/1983 que reinstauraria as eleições diretas para a Presidência da República, mas foi rejeitada pela Câmara, em 1984), e Ulysses Guimarães (o “Senhor das Diretas Já”).

“Lamento avaliar, 30 anos depois, que infelizmente na medida em que a democracia foi se consolidando também os indígenas foram sendo esquecidos”.

Democracia forjada nas oligarquias

A democracia na Amazônia tem, na visão de Gersem Luciano Baniwa, uma característica particular: é democracia ditada, sustentada e forjada pelas antigas oligarquias. Tem no seu comando os mesmos que foram antidemocráticos no passado. “São eles aqui que estão nos espaço de Poder. É uma elite que mantém as mesmas visões preconceituosas sobre os índios. O que mudou, nesse caso, foi o regime político. Os indígenas, para essa elite, são pessoas inferiores, cidadãos de segunda categoria”.

O professor enfatiza que a ideia de democracia é coisa boa, o problema é que os espaços democráticos não atendem as expectativas das populações indígenas. “Assim, é uma democracia que não nos representa.

O Estado brasileiro é pluriétnico, mas no Congresso Nacional nós, os índios, não estamos presente. A democracia colocada nesse patamar tem uma feição perversa. Penso que no caso brasileiro é urgente elaborarmos em outro modelo de democracia. Para indígenas, ela precisa mesmo é ser reinventada, sem abandonar as coisas boas do que todos conquistamos até esse estágio. Temos um longo caminho a seguir”.

Construir novas alianças

Ao avaliar o processo de redemocratização brasileira, o pesquisador propõe que no Amazonas os indígenas revitalizem o movimento e façam novas alianças estratégicas porque somente assim será possível reconquistar o espaço histórico dos povos indígenas.

“Temos que fazer com que a sociedade nos enxergue como parte dela e parte importante – aquela que contribui com a democratização e com o desenvolvimento. Nós somos e seremos a salvação dessa sociedade. A outra parte que não é terra indígena está caminhando rapidamente para a exaustão e destruição. Essa crise da água mostra claramente o que essa outra forma de viver faz com as pessoas e com a natureza”.

A sociedade amazônica, na avaliação do professor, está sendo convocada a assumir seus compromissos, o que passa necessariamente pelo reconhecimento dos povos indígenas, caso contrário esta região repetirá o que fez e faz a sociedade nacional, alijou os indígenas.

Saiba mais: Cotas

As leis das cotas, de acordo com Gersem Baniwa, ainda não são empregadas de fato e não são porque os índios são vistos como segmento menos importante. O olhar é de concessão de favor e isso não pode continuar. “É pela teimosia que os índios chegam e se formam nas universidades. Ou seja, é nosso protagonismo que vai criar espaços. E teremos que continuar em luta. Nesse aspecto, a democracia que temos não é suficiente para garantir o respeito e a cidadania”.

Escola somente no papel

Para exemplificar o nível do descaso em relação aos direitos indígenas, Gersem Baniwa cita um caso classificado de ” vergonhoso e terrível” por ele. No mês de janeiro, ele foi ao Município de Pauini (a 925 quilômetros de Manaus, no Sul do Amazonas) para ministrar aula a um grupo de 35 lideranças indígenas do magistério. Nenhuma das 39 escolas que aparecem em registros como se estivessem funcionando tem prédio escolar.

“As aulas são dadas em espaços improvisados pelas comunidades – tapiris onde tábuas são pregadas para servirem de mesa. A merenda escolar não chega ali. O que existe é alguma atividade de ensino, mas de forma absolutamente informal. Todos os professores são temporários, e disseram receber abaixo do salário mínimo. Talvez, até recebam o salário e com os descontos, fique abaixo do valor do mínimo”.

“De qualquer forma estamos diante de uma violação da regra, porque não se aplica o teto salarial para professores indígenas. Em geral, o que encontramos é um dado: no exercício da educação indígena os direitos são ignorados. Por que isso? É por que os professores são índios? No caso de Pauini, os professores sequer sabem dos direitos que têm”. Naquele município são 900 crianças e jovens, na faixa de 5 a 20 anos que não têm escola para estudar e, no papel, as escolas existem.

“Essa realidade é vergonhosa para o nosso País, sétima economia do mundo, e para o nosso Estado, que não é pobre, se considerar o que é arrecadado pela Zona Franca de Manaus. Eu fiquei chocado porque conheço a realidade brasileira nessa área em função dos anos que atuei no Ministério da Educação com educação escolar indígena e pude conhecer as várias regiões”.

FONTE:  A Crítica

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http://acritica.uol.com.br/noticias/democracia-assujeitada-amazonia-serie-especial_0_1332466756.html

 

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