A corrida pelo ouro ameaça os Yanomami da Amazônia brasileira

Um monomotor com dois funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) sobrevoa a Terra Indígena Yanomami em meio à mata fechada da Amazônia brasileira quando passa pela casa coletiva dos Moxihatetea, um grupo de índios que vivem isolados. Na maloca circular entreaberta já foram contadas até 80 pessoas, que são monitoradas à distância desde os anos 70 pelo órgão. No entanto, durante o sobrevoo do último dia 18, nenhum deles estava lá. Era a segunda vez em um período de um mês que ninguém era visto.

Os funcionários não sabem o que pode ter acontecido com o grupo, que por opção não mantém contato nem mesmo com os Yanomami de aldeias mais próximas. Mas temem que eles possam ter sido dizimados. A menos de 30 quilômetros dali, uma clareira na mata denunciava os motivos da suspeita: dois homens usavam uma mangueira com jato de alta pressão contra um barranco. Garimpavam ouro. “Há a possibilidade de os índios que vivem aí há décadas terem fugido. Mas nossa maior preocupação é que eles tenham sido dizimados pela ação dos garimpeiros”, afirma João Catalano, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami e Ye’kuana da Funai, que coordenou o voo de fiscalização da área indígena acompanhado pelo EL PAÍS. “Agora teremos que planejar uma expedição até a maloca para tentar descobrir algo.”

A preocupação do coordenador é que a terra Yanomami esteja perto de presenciar uma nova tragédia que poderia vitimar muitos índios. Isso porque o garimpo, que pela violência ou pelas doenças levou à morte centenas de indígenas antes da demarcação da área, no início dos anos 90, voltou com força àquela região da Amazônia, denunciam os índios e a Funai.

No sobrevoo acompanhado pelo EL PAÍS, Catalano procurava novos focos da ação de garimpeiros. Em três horas, achou dez: oito balsas usadas para retirar ouro do fundo dos rios e dois gigantescos garimpos na mata, além de três pistas de pouso clandestinas, curtas e perigosas. Todos os locais foram georeferrenciados para que a equipe possa chegar de barco, o único meio de transporte disponível. Naquele ponto, a viagem deve demorar até quatro dias desde Boa Vista. “O ideal seria termos um helicóptero para descermos no lugar”, diz Catalano.

No início de dezembro, uma operação por barco que durou 10 dias conseguiu flagrar 38 balsas e deter 98 garimpeiros não muito longe dali. Segundo a Polícia Federal, para onde eles foram levados e liberados após prestarem depoimento, cada balsa retirava até três quilos de ouro por mês. Na cotação do último 23 de dezembro, o grama do ouro era vendido a 101 reais. Assim, as 38 balsas juntas faturavam 11,5 milhões de reais mensais (303.000 reais cada).

A Funai estima, com base em relatos dos índios e nos sobrevoos, que ao menos 3.000 garimpeiros estejam agindo no momento dentro da terra Yanomami, uma área de 9,6 milhões hectares (mais do que toda Portugal), que compõe a maior terra indígena do país, onde existem 300 aldeias e 25.000 índios que falam cinco línguas diferentes.

O tamanho é um dos fatores que dificultam a fiscalização, mas a ação dos órgãos de vigilância do Governo também não tem sido muito efetiva. A Primeira Brigada de Infantaria de Selva, órgão do Exército que atua com 3.123 homens em Roraima, fez apenas duas operações contra os garimpeiros neste ano acompanhados da Funai. A Polícia Federal, que tem o poder para prender os garimpeiros em flagrante, diz que realiza ações de inteligência: investiga os facilitadores e receptadores do bando, o que de fato levou à denúncia de 38 pessoas neste ano pelo Ministério Público Federal (elas respondem em liberdade). Resta à Funai, com apenas 18 servidores, um baixo orçamento e sem veículos eficazes, o flagrante dos criminosos.

Nos últimos três anos, o órgão fez 28 operações de combate aos garimpeiros, flagrando 2.000 pessoas em 200 balsas nos rios. Mas o trabalho, que atrai pessoas de diversos Estados e de outros países, não cessa. “Prender garimpeiro é como enxugar gelo. Prende-se dez agora e depois terão mais dez para fazer o mesmo tipo de serviço. A gente precisa fazer uma investigação mais inteligente, ao lado de uma fiscalização maior do Estado”, afirma Fabio Brito, procurador de defesa do Meio Ambiente.

A Funai possui hoje duas bases de vigilância em pontos estratégicos da terra indígena desativada. Segundo o coordenador Catalano faltam recursos para mantê-las. Restam outras duas ativas, para os 9,6 milhões hectares. Uma delas, visitada pelo EL PAÍS, fica a 14 quilômetros dos isolados Moxihatetea (e a 44 quilômetros da área de garimpo que os ameaça). O local funciona com um único funcionário, Antônio de Oliveira Souza, de 56 anos, que já chegou a ficar ali, sozinho, por 45 dias seguidos. Atualmente, dois Yanomami o acompanham. “Não temos porte de arma, nem colete balístico. Corremos o risco de sermos atacados por onças, garimpeiros e até pelos próprios isolados que não sabem que estamos aqui para protegê-los. Se desativarmos essa base, os garimpeiros tomam conta”, diz ele.

Em busca do Eldorado

Nesse miolo da Amazônia fica uma das áreas mais ricas em ouro do Brasil, acredita Crisnel Francisco Ramalho, de 67 anos, presidente do Sindicato dos Garimpeiros de Roraima. “O Eldorado está lá”, defende ele. A ação do garimpo é tão importante no Estado que na praça principal da capital Boa Vista há uma estátua de homenagem ao garimpeiro –que foi alvo de polêmica neste mês, quando o coordenador da Funai sugeriu sua derrubada; um deputado fez uma nota de repúdio às declarações defendendo que o monumento é um “símbolo do trabalhador”. Mas não existe hoje em Roraima nenhuma licença para a extração de ouro, segundo o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Portanto, ninguém que garimpe ouro hoje no Estado o faz legalmente.

O crescimento dos garimpeiros na área Yanomami já tem tido efeitos drásticos em algumas dessas aldeias. Na maloca Papiú, às margens do rio Couto Magalhães, um dos preferidos pelos garimpeiros desde os anos 80, há relatos de índios aliciados. “Alguns ajudam em troca de rede, de dinheiro”, conta o agente de saúde Arokona Yanomami. Outro índio afirma que o pagamento para levar grupos de garimpeiros pela mata fechada chega a 7.000 reais.

No início deste ano, durante uma operação da Funai que destruiu 20 balsas perto da Papiú, um Yanomami da aldeia que ajudava a equipe do Governo acabou morto por dois índios armados da Venezuela, país que faz fronteira com a área. A aldeia os acusa de agirem a mando dos garimpeiros, por vingança, e planeja revidar –já tentaram localizar os venezuelanos por seis vezes, mas ainda não tiveram sucesso. “Há a possibilidade de um conflito interétnico”, lamenta Catalano.

Quando em 1987 houve uma invasão súbita de garimpeiros na região, cerca de 20.000 dos 40.000 trabalhadores se concentraram no entorno da Papiú. Metade dos índios doentes atendidos na Casa do Índio de Boa Vista com malária em 1989 eram dessa região. Também saltaram os registros de pneumonia, tuberculose e de doenças sexualmente transmissíveis. Em 1991, quando o então presidente Fernando Collor de Mello decidiu expulsar os garimpeiros da Amazônia para demarcar a área no ano seguinte, após pressões internacionais às vésperas da ECO 92, as mulheres da aldeia fizeram um ritual: queimaram todas as saias que passaram a usar depois do contato com os brancos do garimpo. Muitas as tinham recebido em troca de sexo. As peças haviam se tornado o símbolo dos males que aquela interação representou para o povo.

No dia do sobrevoo de monitoramento, quando o EL PAÍS esteve na aldeia com a Funai, uma menina de 12 anos chamou a atenção. Era a única de um grupo de aproximadamente 15 mulheres que cobria o corpo. Usava um sutiã de algodão e renda preto e uma saia curta colorida. Arokona, com a anuência da avó da menina, contou que ela foi levada por um Yanomami aliciado até a área onde os garimpeiros estão. Lá, teve relações sexuais com os homens brancos. Estava com outras duas meninas da mesma idade. Ao levantarmos voo, foi possível ver a clareira do garimpo bem perto dali.

Davi Kopenawa contra a ‘xawara’

Na semana passada, dentro da grande maloca circular da aldeia Demini, na fronteira entre Roraima e Amazonas, um xamã circulava aos gritos outro Yanomami deitado em uma rede. O índio estava doente, havia sido impregnado pela xawara. Perto da cena, o cacique Davi Kopenawa explicava que a xawara era o sinônimo de epidemia, da doença trazida pelo homem branco ao começar a desenterrar pedras preciosas da profundeza da terra. “O sol bate nas pedras e libera a xawara, que bate no peito do céu e gruda na sombra do Yanomami.” O contato de Davi com a xawara é antigo. A primeira vez que ele soube da existência dos homens brancos foi quando uma comissão do Governo que buscava demarcar os limites do Brasil com a Venezuela chegou à aldeia Toototobi. Ele não sabe quando foi (provavelmente na década de 40), mas se lembra que era muito pequeno. Os Yanomami ajudaram os homens, carregando mercadorias morro acima. Depois apareceu a doença, uma grande epidemia de gripe, e ninguém os ajudou. “Nós Yanomami somos muito fracos e a epidemia era muito forte”. Cerca de 1.000 pessoas morreram, acredita ele. Uma década depois, chegaram alguns evangélicos na aldeia. Estavam com sarampo, que se espalhou levando umas 200 pessoas, incluindo a mãe de Davi.

Na década de 70, militares apareceram naquela região da Amazônia para abrir uma estrada, a Perimetral Norte. “Eram 60 pessoas, derrubaram a floresta, passaram com tratores, caminhão e trouxeram outra epidemia de sarampo”, conta Davi. Mais 500 Yanomami morreram no contato.

Não demorou muito para que surgissem novos invasores. Em 1976, perto do rio Couto Magalhães, onde fica a aldeia Papiú, homens da Funai e garimpeiros chegaram para pesquisar onde havia ouro. Com as portas abertas pelo próprio Governo, garimpeiros invadiram a área em meados nos anos 80. Chegaram a 40.000. “Mais de 2.000 Yanomami morreram de malária, de arma de fogo.” Os homens se espalharam por toda a região, até chegarem na área onde Davi havia passado a morar, a aldeia Demini. “Demorou muito para recebermos ajuda”, relembra ele, que ao lado da Comissão para a Criação do Parque Yanomami começou uma campanha pela demarcação da área e pela expulsão dos garimpeiros. A tragédia chegou à ONU –que concedeu a ele em 1991 o prêmio Global 500, passo importante para que ele começasse a ser ouvido no exterior.

“Quando fui falar na ONU, tinha um monte de gente, então pedi ajuda para expulsar o garimpeiro”, conta Davi, orgulhoso. A partir daí houve uma pressão para que o Governo Collor fizesse a demarcação da terra, o que aconteceu em 1992. “Começaram a expulsar os garimpeiros, a botar fogo nas balsas, dinamitaram 132 pistas clandestinas na terra Yanomami.” Agora os garimpeiros estão de volta. “O governo brasileiro não dá apoio. A Funai não tem dinheiro suficiente para fazer vigilância. Ninguém vigia a terra Yanomami. Por isso os garimpeiros entram”, lamenta. No final do primeiro semestre deste ano, ele fez um documento denunciando a situação e acabou ameaçado de morte. Desde então, saiu uma única vez da aldeia, quando foi para a Festa Literária de Paraty, em agosto, para anunciar o lançamento de A queda do céu, o livro que escreveu com a ajuda do antropólogo francês Bruce Albert e que será publicado em abril de 2015 pela Companhia das Letras, após fazer sucesso na França, onde foi editado antes. Aproveitou para denunciar que estava sendo perseguido. A Polícia Federal diz que aumentou a vigilância em torno da Hatukara Associação Yanomami, ONG que ele dirige em Boa Vista onde dois pistoleiros estiveram à procura dele. “Não sou criminoso, não estou roubando. Tenho o direito de proteger meu povo, minha cultura.”

Crisnel em busca do Eldorado

Crisnel Francisco Ramalho, de 67 anos, preside um sindicato que, em tese, não reúne trabalhadores da área. Como não há nenhum garimpo legal em Roraima, nenhum dos cerca de 1.000 associados do Sindicato dos Garimpeiros de Roraima pode atuar como garimpeiro, ao menos no Estado. Mas isso não impede que ele batalhe pelo direito deles ou que use o cargo para pedir a criação de um projeto legal de extração do Eldorado que ele diz existir no solo da terra Yanomami.

“O garimpo é uma atividade como qualquer outra, para sobrevivência. Não sou contra o garimpeiro estar trabalhando ilegal, não, por que ele está trabalhando pela sobrevivência dele. Se eu não tivesse condições hoje, estaria lá também”, afirma ele, que atualmente está aposentado das atividades.

Crisnel começou no garimpo em dezembro de 1979, quando ouviu no Pará, onde vivia, que havia um garimpo em Roraima que dava ouro em abundância. Chegou com 82 garimpeiros, numa área que hoje é dos Yanomami. Também passou um tempo em garimpos da Guiana Inglesa, fazendo viagens pela mata por trilhas que duravam três dias. Em 1983, foi para um garimpo a 200 quilômetros de Boa Vista, que demorava 11 dias para chegar a pé. “Começamos a descobrir o Eldorado, o potencial de ouro da região, era uma época em que não se falava em demarcação indígena. Tinha ouro de 18 a 22 quilates, o de melhor qualidade. Por lá tem ouro em abundância nos rios.” Refém de uma sinusite, ele afirma que nunca trabalhou em balsas de mergulho nos rios, apenas em solo. Descer para o fundo da água, onde garimpeiros ficam submersos por até quatro horas com um tanque de oxigênio improvisado, poderia deixá-lo surdo. “Não existe nenhum treinamento para fazer esse trabalho. Um vai ensinando o outro. Há muitos casos de gente que morreu fazendo isso. Balsa é o tipo de garimpo mais arriscado, funciona 24 horas, não para”, conta ele. “Os garimpeiros se arriscam a ser presos, a ficar no prejuízo, a pegar malária, dengue, a ser furado por arraia no rio, enfrentam cobras venenosas.” Mas a dificuldade compensa financeiramente, conta. “Tem balsa que consegue tirar de cinco a seis quilos de ouro por semana”. Grande parte do dinheiro, entretanto, não fica com os garimpeiros: 70% vai para o dono do garimpo (as pessoas que investem mais de 100.000 reais para construir as balsas ilegais nos rios); os outros 30% são divididos por todos os sócios do barranco ou da balsa (como são chamados os que garimpam).

Ele viveu a época do auge do garimpo na região, quando mais de 40.000 trabalhadores vasculhavam a Amazônia em busca de ouro. “Havia mais de 400 voos diários para o garimpo”, conta. E também estava presente quando os homens do Exército chegaram para expulsar todos, meses antes da demarcação. “Teve muita matança de garimpeiro. Resolvi sair porque não queria arriscar a perder minha vida”. Foi quando voltou de vez para Boa Vista e resolveu formar o sindicato. Entre as funções da entidade, está prover ajuda jurídica para quem é flagrado garimpando no Estado. Ele afirma, entretanto, que há muito tempo não realiza essa função, pois, garante, os associados hoje preferem trabalhar em áreas da Venezuela, Suriname e Guiana Francesa. “Hoje não há garimpo legal em Roraima. Mas o potencial do ouro do Estado está na reserva indígena. O Eldorado está lá.”

Por: Talita Bedinelli
Fonte: El País

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