Funai prevê chegada em massa de índios isolados na fronteira do Acre

O coordenador-geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Fundação Nacional do Índio (Funai), Carlos Lisboa Travassos diz, em entrevista exclusiva à agência Amazônia Real, que a equipe responsável pelo contato com os índios desconhecidos da fronteira do Acre com o Peru enfrentou a desconfiança e o medo para convencê-los a tratar com remédios dos “brancos” uma gripe capaz de exterminar todo a tribo, que vive em local de difícil acesso da floresta do oeste da Amazônia brasileira.

Travassos afirma que o índios isolados recém contatados foram identificados como o povo do rio Xinane, pertencente ao tronco linguístico Pano. Sem resistência para doenças como pneumonias, eles foram convencidos a tomar os remédios pelos intérpretes da etnia jaminawá, que falam dialetos da mesma língua. O próximo passo é vacinar todo o grupo.

Na entrevista à Amazônia Real, o coordenador-geral de Índios Isolados diz  que a situação na fronteira é crítica. Na região há várias tribos compartilhando o mesmo território pacificamente. Mas a perspectiva é de que haja uma aproximação massiva do grupo indígena isolado na base da Funai do rio Xinane, o que exigirá, segundo Travassos, de uma resposta do governo brasileiro na proteção da integridade física e cultural da etnia. Ele disse que a Funai pediu ajuda ao Itamaraty para intermediar a participação do governo peruano nas ações.

A base do Xinane fica localizada na Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira, entre os municípios de Feijó e Jordão (Acre), com acesso possível apenas de aeronave ou barco, o que exige recursos para logística e a contratação de servidores. Nesta região vivem os ashaninka e há vestígios de mais duas tribos desconhecidas, o povo do Riozinho e o povo do Rio Humaitá.

Carlos Travassos disse que o contato na aldeia Simpatia dos índios ashaninka, que aconteceu no dia 26 de junho, por pouco não deu certo.

Poderia ter tido um resultado muito ruim na questão da gripe e da disseminação incontrolável de um surto epidêmico, que a gente não tem como atuar.  As estruturas que existem precisam ser melhoradas substancialmente se o nosso país não quiser ver uma situação lamantável que seria uma perda de índios isolados”, disse Travassos.

Amazônia Real – Como aconteceu o contato entre os índios isolados e o povo ashaninka?

Carlos Lisboa Travassos –  Estava havendo uma movimentação desse grupo de índios isolados na aldeia Simpatia, dos índios ashaninka, desde o começo do mês de junho. O Guilherme (Siviero, chefe da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira)foi para a região, fez uma caminhada na mata e percebeu os vestígios de índios isolados. Ele retornou para Rio Branco (AC) e voltou no dia 13 de junho com uma equipe da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde) e o sertanista José Carlos Meirelles, que é da assessoria indígena do governo do Acre. No dia 26 de junho aconteceu o primeiro contato dos índios isolados. Eles apareceram atravessando o rio Envira. A aldeia Simpatia fica bem na margem do rio. Eles assopravam barulhos de animais.  Foram contatos razoavelmente rápidos, algumas horas e depois retornaram para mata. Foi assim nos dias seguintes. Os diálogos foram realizados por dois intérpretes muito habilidosos, que conhecem os dialetos da língua Pano, o mesmo tronco linguístico dos índios isolados: José Corrêa Jaminawa, 70 anos, e o Almerindo Jaminawa, 60 anos. São pessoas muito experientes que conseguiram manter uma comunicação plena com os índios e uma relação de confiança.

AR – Quantos índios apareceram na aldeia Simpatia?

Travassos – Primeiro fizeram o contato cinco homens. Eles são muito jovens, numa faixa de 12 a 21 anos de idade. Têm altura média dos outros indígenas (1,70 metros) e físico muito forte, são muito saudáveis.  Disseram que há muito tempo nos observavam. Reconheceram os servidores da Funai da base do Xinane, reconheceram o Meirelles. Contaram que observavam as aldeias que têm por ali há muitos anos. Eles disseram que todos os anos descem as cabeceiras do rio Envira para coletar quelônios (tartarugas, tracajás) durante o verão e para caçar e pescar. Eles têm uma atividade produtiva nesse período de seca na Amazônia. A maloca deles fica na outra margem de afluentes do rio Envira, já no território peruano. Nessa época do ano, o rio seca e as águas dão na canela. O tempo todo eles atravessam o rio de um lado para o outro.

AR – Dos quatro grupos avistados naquela região, esse povo é do rio Xinane avistados nos últimos 30 anos?

Travassos – Não queríamos divulgar muito, mas não tem jeito, esse é o povo do Xinane sim.

AR – Como vocês os identificaram?

Travassos – Conversando, eles foram descrevendo a rota que deveríamos fazer para chegar na aldeia deles. Facilmente descobrimos que fazia parte do grupo. Uma vez por ano fazemos um sobrevoo para monitorar a região, com aeronave em altura específica para não assustar os índios. Tiramos pouquíssimas fotos. Nunca fotografamos esses índios dentro da maloca.

AR – Quais são os traços culturais deles que os diferenciam dos outros grupos de isolados?

Travassos – É principalmente a casca de envira (uma  árvore da floresta tropical), na qual eles amarram o pênis. Eles usam uma fibra também de envira amarrada na cintura, na qual levam um facão. Outra característica marcante é o corte de cabelo,  sempre bem curto. O arco e a flechas são feitos de madeira de pupunha (palmeira nativa). A ponta da flecha é feita de taboca, um tipo de bambu. É uma flecha bem belicosa.

AR – E sobre os não-índios da equipe,  o que eles perguntaram?

Travassos – Percebemos que eles estavam muito desconfiados com os brancos, não indígenas, o que mostra uma experiência não muito boa com nossa etnia. Eles estranharam bastante que cada um de nós tem um cabelo de um jeito. Um é mais escuro, outro é louro, outro é moreno. Perguntaram porque éramos tão diferentes assim. Como poderiam recorrer a gente se cada um era de um jeito? O intérprete disse que existiam muitas pessoas como nós, cada uma tinha um jeito diferente, mas que as pessoas que estávam naquela base eles poderiam confiar.

AR –  Os índios pediram para provar a comida de vocês?

Travassos – Foi bem curiosa essa parte. A gente estava com uma alimentação muito básica, de equipe de campo. Tínhamos uma preocupação de oferecer comida que fizesse mal pra eles, porém, em algum momento, eles vieram experimentar a nossa comida, que era arroz e feijão. Eles  acharam tudo horrível, imprestável. Eles não comem sal. Se alimentam de macaxeira, bananas, peixes. É a alimentação que eles comem.

AR – Como os índios contraíram o vírus da gripe?

Travassos – No dia 4 de julho eles apareceram na aldeia Simpatia. Eu já estava lá.  Depois retornaram para mata. No dia 5 de julho nós percebemos que eles contraíram gripe. O médico (Dr. Douglas Rodrigues, representante da Secretaria de Vigilância em Saúde) fez a primeira medicação para controlar a febre. E aí eles retornaram para mata. Então foi um momento de muita tensão nossa porque não sabíamos se tinha mais pessoas no acampamento que eles estavam, quantas pessoas eram. Depois não sabíamos se eles tinham retornado ao grupo maior, que também seria o pior dos mundos para gente. Seria disseminar uma gripe para um grupo inteiro num local de difícil acesso. Mas, felizmente, a gente encontrou com eles no meio do rio Envira e os convencemos a viajar até a base do rio Xinane.

AR – Como eles aceitaram viajar da aldeia Simpatia para a base do Xinane?

Travassos – Nós dependemos muito da qualidade dos dois intérpretes jaminawa.  São pessoas muito maduras, que conseguiram um diálogo muito bom e conseguiram explicar que a gripe não era um xamanismo, um feitiço, era algo que todos nós acabávamos contraindo e que só sarava quando tomava o remédio. Então esse convencimento se deu quando perceberam que a saúde deles estava piorando. Eles voltaram ao acampamento e buscaram o restante do grupo, que eram duas mulheres, que não tinham aparecido. Eram mulheres de dois deles.

A base do Xinane fica distante cerca de 3 horas de viagem de voadeira (canoa de alumínio com motor de popa). Foi a primeira vez que eles entraram num barco com motor. Na base  tem um chapéu de palha (uma cabana) onde permaneceram acampados por quatro dias e meio em tratamento, de 6 de julho a 10 de julho. Isso permitiu quebrar o ciclo que os médicos dizem de disseminação do vírus da gripe. Eles só retornaram ao acampamento deles quando tivemos certeza de que não iriam levar aquela gripe ao restante do grupo. No último dia em que eles estavam bem melhor da gripe, saíram para caçar e chamaram a equipe para comer com eles. Juntos, como uma relação.

AR – Como foi o tratamento com remédios?

Travassos – Primeiro eles estabeleceram uma relação de confiança com os intérpretes jaminawá.  Os intérpretes conseguiram explicar para eles quem eram aquelas pessoas que estavam ali. Porque não usávamos armas, qual era o nosso trabalho. Foi um momento de muita desconfiança, mas essa desconfiança tem toda uma dinâmica, uma formalidade em que foram construídos os laços de confiança. A grande sorte dos índios isolados foi que esses intérpretes conseguiram ministrar essa situação, que era tensa e não sabíamos se teria êxito. Então, eles perceberam que o primeiro medicamento que o médico ministrou deu efeito, a febre baixou. Todos os medicamentos foram orais.

AR – Eles foram vacinados contra gripe e outras enfermidades?

Travassos – Não. Como nossa preocupação era ministrar os remédios da gripe, numa possível aproximação deles queremos estar preparados para vacinar e imunizar todos.

AR – A equipe da Coordenação quer ir até à aldeia?

Travassos – Não. Informamos a eles que em novo contato devem procurar a base da Funai no rio Xinane, onde vão permanecer os funcionários. Dissemos que essa aproximação na aldeia Simpatia foi muito perigosa, não pelos índios ashaninka, mas por parte das doenças.

AR – Os índios isolados disseram quantos vivem na aldeia?

Travassos – Eles deram um número aproximado ali no jogo de informações, na confiança de 10 famílias morando na maloca (cerca de 50 índios). Mas, se todo mundo retornar à base vai ser complicado.

AR – O que levou esse grupo a se aproximar tanto das casas dos ashaninka e formalizar o contato?

Travassos – Essa situação é reincidente todos os anos quando os rios Envira, Tarauacá e outros daquela região do Acre secam. Nossa grande preocupação é quando estabelece o contato como ocorreu. Eles, de forma nenhuma, tiveram uma aparição agressiva na aldeia ashaninka. E por sua vez, os índios da aldeia Simpatia não tiveram nenhuma reação violenta contra eles. Inclusive ofereceram roupas, utensílios, facilitando esse contato. Agora o que motivou eles a estabelecer o contato? É algo que a gente não consegue obter nos primeiros diálogos porque existe ainda uma situação de querer estabelecer confiança. O trabalho dos intérpretes no momento do contato foi mostrar que aqueles não-índios que moram na casa, que é a base do Xinane, estão ali para protegê-los e apoiá-los. Eles não sabiam disso, não imaginavam que aquelas pessoas eram aliadas deles.

AR – Eles relataram a violência de não-indígenas por arma de fogo?

Travassos – Nos diálogos que estabelecemos trocamos muitas informações.  Perguntamos quantos grupos de índios isolados vivem na região, se eles conheciam outros não-índios. Num certo momento disseram que conheceram outros não-índios, mas que eram pessoas muito malvadas, que atiraram neles e que teriam morrido pessoas. Eles fizeram os barulhos das armas de fogo e gestos das pessoas alvejadas. Disseram que encontraram esse não-índios nas cabeceiras do rio Envira. As cabeceiras do rio Envira ficam dentro do território peruano, então achamos que esse pode ser um fator que possa ter levado eles a se aproximar da aldeia Simpatia e estabelecer o contato, mas eu não apostaria que esse é o fator principal. E nem saber se são madeireiros ou narcotaficentes. Como fazemos parte do governo, nós solicitamos informações ao governo peruano por meio do Itamaraty. Enquanto governo, nós só podemos solicitar essas informações. A gente não pode  entrar no território peruano, não podemos sobrevoar o território,  a gente fica limitado a fronteira seca.

AR – Há quanto tempo aconteceu essa violência? Foi recente, foi anterior ao contato?

Travassos – Perguntamos se foi nesse ciclo do verão, eles falaram que não. Teria passado algum tempo. Mas, acreditamos que tenha sido dois ou três anos atrás. Alguns verão anteriores. O que eles falaram é que foram atos de violência por não índios nas cabeceiras do rio Envira, que não fica no território brasileiro. Essas informações foram repassadas por eles. Isso eu posso afirmar porque é nosso dever pedir informação. É uma situação delicada e cabe a diplomacia brasileira fazer esse diálogo com o governo peruano.

AR – O que esse contato com os índios significa para a estrutura política e econômica da Funai?

Travassos – Nossa perspectiva é de muita preocupação porque é uma situação muito específica, onde você tem que ter uma resposta muito rápida por parte do Estado Brasileiro. São regiões de difícil acesso, com logística cara. Nós estamos com grande dificuldade com recursos financeiros e recursos humanos disponíveis para trabalhar. Então, o contato foi de alguma forma uma ação exitosa, uma série de fatores concluíram para isso, mas estamos esperando por uma situação bem mais crítica, que é uma situação de aproximação massiva desse grupo. De forma nenhuma a gente vai se negar a agir como a gente agiu, ou seja, responder o contato da melhor forma possível. Mas a gente percebe que a situação é crítica e que há necessidade de ter uma resposta do governo brasileiro como todo, do governo federal à altura que situação exige.

AR – O governo liberou recursos para esta ação do contato?

Travassos – Para essa situação nós conseguimos readequar os recursos da Funai. A Sesai buscou disponibilizar uma equipe capacitada. Informamos aos ministérios da Justiça e Saúde a gravidade da situação para que podemos ter um retorno positivo e fazer nosso trabalho da melhor maneira possível.

Nossa preocupação é grande porque pode ser que esse seja o primeiro de vários contatos desses grupos. Há índios isolados no Vale do Javari, no Amazonas. No Maranhão há a situação dos índios Awá-Guajá. Então a gente percebe que o que evitávamos, que era o contato que a gente pensava que ia durar alguns anos, eles podem estar ocorrendo a qualquer momento. Quero reforçar que foi (o contato na aldeia Simpatia) uma situação que por pouco não deu errado. Poderia ter tido um resultado muito ruim na questão da gripe e da disseminação incontrolável de um surto epidêmico, que a gente não tem como atuar. Os índios isolados não têm resistência. Houve uma série de situações favoráveis, as presenças dos intérpretes jaminawá, do Dr. Douglas Rodrigues, do sertanista José Meirelles, o esforço de toda a equipe que deu certo. Poderia não ter dado porque as estruturas que existem precisam ser melhoradas substancialmente se o nosso país não quiser ver uma situação lamentável, que seria uma perda de índios isolados por conta de um contato com surto epidêmico.

FONTE :  Funai prevê chegada em massa de índios isolados na fronteira do Acre – Amazônia Real (amazoniareal.com.br) 

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