“Os índios estão sob fogo cerrado”. A frase, da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora emérita da Universidade de Chicago e professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP), explicita o sentimento de especialistas em relação à questão indígena no Brasil, às vésperas do Dia do Índio, comemorado dia 19. “As terras indígenas e as unidades de conservação, terras mantidas fora do mercado, estão sendo mais do que nunca cobiçadas.”
O cerne do conflito é a disputa pela terra. A extensão das terras indígenas no Brasil chega a 13% do território nacional, distribuídas desigualmente. A Constituição diz que a terra indígena demarcada é da União, mas os índios têm direito a usufruto exclusivo.
A maior extensão de terras indígenas está na Amazônia, onde tudo tem grandes proporções – municípios, latifúndios, unidades de conservação. Foi ali, e também no Centro-Oeste, que a maior parte das terras indígenas extensas e contínuas foi reconhecida depois que a Constituição garantiu os direitos indígenas, em 1988. A demarcação que sobrou fazer é a de terras mais disputadas, mais caras e de histórico de ocupação mais complexo.
No Nordeste, Leste e Sul, os índios vivem em territórios bem pequenos. Os milhares de guaranis-kaiowás confinados em áreas diminutas no Mato Grosso do Sul, ou vivendo à beira das estradas enquanto aguardam solução para o seu caso, constituem o lado mais dramático desse quadro. Os guaranis são o povo indígena mais numeroso do Brasil e se espalham pelo Mato Grosso do Sul, pelas fronteiras com Paraguai e Argentina e também pelo Estado de São Paulo.
Segundo dados de 2010, do IBGE, existem 240 povos indígenas no Brasil. Falam 154 línguas. Embora alguns povos estejam ameaçados de extinção, a população indígena vem crescendo. Eram 896.917 no último Censo.
“Trata-se de um mosaico de microssociedades”, diz o catálogo da exposição “Povos Indígenas no Brasil”, que está no Parque Ibirapuera, em São Paulo, organizada pelo Instituto Socioambiental, o ISA. “Metade das etnias tem uma população de até mil pessoas, 49 etnias têm parte da população habitando países vizinhos e há 60 evidências de povos ‘isolados’”.
Na outra ponta estão dezenas de projetos de lei tramitando no Congresso e que ameaçam terras indígenas e novos processos de demarcação. Há projetos de mineração que se sobrepõem a esses territórios e projetos hidrelétricos que o governo quer impulsionar e que afetam povos indígenas. No Centro-Oeste, terras que índios reivindicam são muitas vezes ocupadas por produtores rurais que têm título expedido pelo Estado.
“Essa é uma semana do índio de pouca comemoração e muita apreensão”, diz Adriana Ramos, secretária-executiva-adjunta do ISA, ONG reconhecida pelo trabalho com os índios. “Estamos vivendo momento de grande ameaça aos direitos constituídos e de multiplicação de conflitos, inclusive fomentados por discurso de políticos e representantes empresariais.”
Uma das maiores ameaças vem da Proposta de Emenda Constitucional 215/2000. O projeto tira do Executivo a competência de aprovar as demarcações e transfere o processo ao Congresso. Na visão de indigenistas, se aprovado, não haverá novas demarcações de terras indígenas no país. O governo disse ser contrário à iniciativa e a considera inconstitucional. No fim de 2013, foi instalada uma comissão especial para analisar a PEC. No colegiado, a maioria é de deputados ruralistas.
Há ainda projetos de abrir terras indígenas para arrendamento com fins agropecuários ou de mineração”, diz Adriana. “Essas propostas são ‘vendidas’ como alternativas econômicas a populações que vivem em situações de fragilidade. Mas elas se contrapõem ao modo de vida tradicional desses povos”, critica. Essas iniciativas operariam em um vácuo deixado pelo poder público. “O Estado dá pouco apoio a alternativas econômicas condizentes com o modo de vida indígena. Poderia desenvolver o manejo sustentável de produtos da biodiversidade. Extração de óleos da floresta, fibras, frutas, turismo. Tudo isso poderia ser implementado.”
“Hoje, a situação é difícil”, reconhece o antropólogo Marcio Meira, que esteve à frente da Fundação Nacional do Índio (Funai) de 2007 a 2012, o mais longevo presidente do órgão. “Os setores da sociedade que são historicamente anti-indígenas, têm agido de forma muito agressiva, principalmente no Congresso Nacional”, avalia. “O centro é a base ruralista. Qual o agravante? Que essa base hoje tem muita força. Boa parte das exportações do Brasil vem daí”, diz Meira.
Segundo o antropólogo, “esse poder tem tentáculos” no Judiciário e no Executivo. “Há muitos processos de judicialização das terras indígenas e muitos juízes nos últimos anos têm se manifestado contrários aos índios, com decisões polêmicas.” Ele lembra que, dentro do governo, existem ministérios mais favoráveis aos povos indígenas, mas há outros com posições mais conservadoras.
Meira enxerga, também, alguns avanços nos últimos anos. Um dos principais teria sido na área da educação, com o ingresso de índios nas universidades. As estimativas são de que existem 1.700 indígenas em universidades federais, recebendo bolsas de R$ 900. “É um investimento de R$ 20 milhões anuais, algo que não existia há um ano.”
Os índios têm direito a Bolsa Família e aposentadoria rural. “Mas a saúde indígena ainda tem muito gargalo”, afirma o antropólogo. E embora hoje não haja quase nenhuma terra indígena sendo homologada, há alguns casos de desintrusão, o que demanda investimento e esforço enorme do governo. O caso mais famoso é o da terra indígena Awa-Guajá, no Maranhão, iniciado este ano, e depois suspenso para que o Incra encontrasse uma solução para os produtores rurais. Eles tinham que sair da terra e não sabiam para onde ir.
A última homologação de terra indígena no Estado de São Paulo ocorreu há 16 anos, informa Otávio Penteado, assessor de programas da Comissão Pró-Índio SP, no boletim da entidade. No Estado, há 17 terras indígenas em processo de demarcação e estima-se que há outras 16 sem processo iniciado. Mais da metade das 29 terras indígenas de São Paulo não está demarcada, o que deixa a população sem acesso às políticas públicas. São Paulo, segundo a ONG, é a cidade brasileira com mais índios no espaço urbano – seriam quase 12 mil, segundo o Censo de 2010.
“É nas áreas indígenas que se concentram algumas das maiores riquezas do Brasil em termos minerais e de biodiversidade”, diz o professor Antonio Carlos de Souza Lima, professor do Departamento de Antropologia do Museu Nacional do Rio de Janeiro, da UFRJ, referindo-se a terras na região Norte. “São notadamente as mais bem conservadas.”
Ele defende uma proposta de educar a sociedade brasileira para valorizar e respeitar a diversidade que há no país. “A primeira coisa é ter a plena consciência de que isso tem que fazer parte da educação brasileira, que vivemos em um país multicultural e pluriétnico. Com populações que têm direito a viver de acordo com modos diferentes dos cultivados pela sociedade contemporânea”, diz. “A conscientização tem que sair das boas intenções e avançar do papel para as práticas.”
O Brasil tem há seis anos legislação que regulamenta a obrigatoriedade de ensino, nas escolas, de história e cultura afro-brasileira e indígena. “Essa lei até hoje não é aplicada. Ninguém cumpre”, diz Souza Lima. “Todo mundo centra a questão no tema da terra, porque é a defesa mais imediata aos ataques”, afirma. “Mas isso não substitui um projeto de longo prazo para esse tema.”
“O brasileiro não conhece o Brasil”, diz Souza Lima. “Tem que entender que índio que vive nu na aldeia, distanciado de tudo, não é a regra hoje em dia. Até filhos de ianomâmis frequentam escolas e universidades. Ao incorporar certos elementos da sociedade não indígena, eles o fazem de acordo com a sua própria lógica. E por isso não deixarão de ser índios.” Segundo o professor, “é fundamental ouvir o que os próprios indígenas têm a dizer sobre os seus projetos e o que têm passado. Isso tem que ser ouvido pelos escalões mais altos da administração”.
O governo, no âmbito do Ministério da Justiça, prepara um projeto que altera os procedimentos de demarcação das terras indígenas. A minuta, divulgada há alguns meses, desagradou indigenistas e ruralistas.
Em outra frente, na Secretaria-Geral da Presidência, procura-se estabelecer parâmetros que regulamentem a consulta prévia. Trata-se de pôr em prática o artigo 6 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O tratado versa sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas e tribais, foi aprovado em 1989 e começou a vigorar em 1991. O Brasil foi um dos 20 países que ratificaram a convenção, com posterior aprovação no Congresso e promulgação pelo Executivo. A convenção internacional ganhou status de lei.
A Convenção 169 diz que a consulta aos povos afetados por algum projeto tem que ser feita de boa-fé. O governo tem vários projetos de hidrelétricas na Amazônia que afetarão grupos indígenas. A ideia da consulta, segundo algumas interpretações, é que ela teria que ser prévia, livre e consentida. A ideia do veto é debate superado: a meta é ter o consentimento dos afetados ou chegar a um acordo. O problema é que a convenção é genérica, é preciso criar um padrão sobre a consulta. Bolívia, Peru e Chile percorreram essa trilha. No Brasil criou-se um grupo interministerial em 2012, que procura avançar nesse campo.
Enquanto o governo tenta avançar nessa frente, os índios sofrem com a invasão de suas terras por garimpeiros e madeireiros, pela contaminação de recursos hídricos por mercúrio ou agrotóxicos e pela pressão do entorno, segundo indigenistas.
Na visão de Manuela Carneiro da Cunha, a isso se soma “o cerco legislativo, uma investida sem precedentes do Congresso”, diz ela. “Desde a Colônia até os anos 90, a legislação sempre declarou os direitos dos índios. Mas era um movimento inócuo, porque ninguém respeitava. Hoje, quando os índios tentam fazer valer seus direitos, tenta-se esvaziá-los.
Por: Daniela Chiaretti
Fonte: Valor Econômico
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