Código Florestal Brasileiro – Nova lei deve impedir recuperação ambiental de regiões mais devastadas e sensíveis a desastres

Se não for vetada pela presidenta Dilma Rousseff, a proposta de revogação do Código Florestal aprovada pela Câmara, no dia 25/4, condenará muitas regiões brasileiras que hoje sofrem com o desmatamento excessivo a conviver com suas consequências para sempre. A falta de cobertura vegetal torna esses locais mais vulneráveis a desastres climáticos e desabastecimento de água. Por isso, muitos já vêm sendo alvo de programas de recuperação de APPs (Áreas de Preservação Permanente).

O texto aprovado pelos deputados, no entanto, pode impedir essas iniciativas ao regularizar em massa atividades agropecuárias em margens de rio, encostas, topos de morro e outras áreas sensíveis consideradas APPs. Isso comprometerá os serviços ambientais prestados por elas: fornecimento e filtragem da água, polinização, controle de pragas, redução e mitigação da erosão, do assoreamento, de enchentes e deslizamentos (leia mais abaixo).

Pelo projeto aprovado pela Câmara, APPs desmatadas ilegalmente até julho de 2008 praticamente não precisarão ser reflorestadas. A proposta obriga a recomposição de só 15 metros da vegetação desmatada às margens de rios com até 10 metros. Em rios mais largos, dispensa a recuperação dos desmates realizados até julho de 2008.

A lei atual obriga a recuperação de margens de rio desmatadas numa faixa que varia de 30 a 500 metros. Mais de 90% das propriedades rurais serão dispensadas de restaurar a RL (Reserva Legal) desmatada: apenas as maiores de quatro módulos fiscais terão de fazê-lo, desde que o proprietário não alegue que a área já estava desmatada quando não era exigida sua proteção pela lei vigente à época (saiba mais).

Assim, as regiões mais devastadas do país praticamente não terão recuperação obrigatória, dependendo apenas de atitudes voluntárias dos proprietários.

Situação crítica

A maior parte do passivo ambiental do País está no centro-sul e Nordeste, onde está a grande maioria das 38 bacias hidrográficas que, segundo o Probio (Programa de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica) do MMA (Ministério do Meio Ambiente), têm menos de 20% de cobertura vegetal nativa. O índice é menor do que o de grande parte dos países da Europa e se aproxima ao do Haiti.

Trabalhos como o do pesquisador Jean Paul Metzger, da USP (Universidade de São Paulo), sugerem que uma área rural precisa de, no mínimo, 30% de vegetação nativa. Abaixo desse limite, os serviços prestados pelos ecossistemas estariam prejudicados. Bacias por onde passa o Rio Tietê (SP) tem menos de 10% de vegetação, por exemplo. A Bacia do Aguapeí-Peixe, no mesmo estado, tem 3,5%. Nessas regiões, as APPs são ainda mais necessárias, mas estão em situação crítica. Mais da metade delas está desmatada em Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Paraná.

Foi retirado do texto aprovado pelos deputados o dispositivo que, ao autorizar a recuperação de APPs em índices superiores ao definido na lei, poderia salvaguardar bacias com níveis críticos de desmatamento.

Impactos irreversíveis

Nas últimas semanas, aumentou a mobilização pelo veto de Dilma. A expectativa é que ela reponha a proposta aprovada pelo Senado, em dezembro, que obrigava a recomposição de 15 metros a 100 metros na beira de cursos de água. Os relatores da reforma do Código Florestal no Senado, Luiz Enrique (PMDB-SC) e Jorge Viana (PT-AC), apresentaram um projeto de lei com esse objetivo (veja o documento).

Com a nova proposta, ainda assim deve ser incorporado à produção agropecuária quase 42% do passivo estimado de 55 milhões de hectares de APPs desmatadas no País, segundo o pesquisador Gerd Sparovek, também da USP. Assim, poderá deixar de ser reflorestado um território do tamanho de Roraima. O Código Florestal diz que as APPs têm a “função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.

Quando a lei foi editada, em 1965, as pesquisas sobre essas áreas ainda engatinhavam. Mas a situação mudou nos últimos anos. “Em longo prazo, reduzir o tamanho de APPs na sua largura e extensão ou na exclusão de áreas frágeis hoje protegidas gera impactos ambientais irreversíveis”, aponta o livro “O Código Florestal e a Ciência – contribuições para o diálogo”, da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e da ABC (Academia Brasileira de Ciências).

“As larguras vigentes hoje para as APPs foram estabelecidas, digamos, de forma arbitrária no Código de 1965, mas em todos os trabalhos científicos que fizemos sobre erosão do solo e o papel da mata ciliar como corredor ecológico essa largura de 30 metros têm se mostrado como a largura mínima”, destaca Ricardo Rodrigues, professor da USP e um dos autores da publicação. Para ele, a necessidade de manter as atuais dimensões das áreas protegidas nas beiras de rio já é um consenso científico.

A queda na capacidade de armazenamento de água e na vazão dos rios é um impacto que a redução das APPs pode trazer, segundo os cientistas. Daí o risco de legalizar desmatamentos em regiões já devastadas. “[As APPs] são fundamentais para manter a produtividade em sistemas agropecuários, tendo em vista sua influência direta na produção e conservação da água, da biodiversidade, do solo”, destaca o documento da SBPC e da ABC.

De acordo com o livro, estimam-se em cerca de R$ 9,3 bilhões anuais as perdas provocadas pela erosão em áreas agrícolas, prejuízo que poderia ser evitado com a proteção e recuperação das matas ciliares. O trabalho da SBPC e da ABC destaca a importância das APPs de beira de rio como abrigo e fonte de alimento para a fauna responsável pela polinização e controle de pragas. A publicação indica que, em 107 culturas importantes para a alimentação humana, 91 dependem em algum grau de polinizadores naturais. Das culturas com maiores volumes de produção, 35% dependem diretamente desse serviço.

Apesar de sua importância, estimativas indicam que, pela lei vigente, nas margens de corpos de água, as APPs significariam apenas 7% da extensão propriedades.

Enchentes e deslizamentos

De novembro de 2009 a janeiro de 2012, 1.665 pessoas morreram e mais de 1,1 milhão ficaram desalojadas ou desabrigadas por causa de enchentes e deslizamentos em todo País, de acordo com a SNDC (Secretaria Nacional de Defesa Civil). De 2006 a 2011, o governo federal gastou R$ 6,3 bilhões com “desastres naturais”, principalmente inundações, deslizamentos e erosão, aponta levantamento da CNM (Confederação Nacional dos Municípios).

O prejuízo, no entanto, pode chegar às dezenas de bilhões de reais porque a maior parte dos recursos gastos com esses desastres não vem da União, mas dos governos estaduais e municipais, para os quais não há informações disponíveis. Dados do governo e dos cientistas comprovam que parte significativa desses eventos está ligada ao desmatamento, degradação e ocupação irregular das APPs. A tendência é que a importância dessas áreas na mitigação e prevenção aos desastres aumente com o agravamento das mudanças climáticas.

“A redução das APPs vai dar o aval para que milhares de pessoas permaneçam dentro das áreas de risco. É legalizar o risco. Estão apostando em uma nova tragédia”, afirmou o geógrafo Marcos Reis Rosa, na análise “Congresso Brasileiro vai anistiar redução de florestas em pleno século 21?”, do WWF.

Rosa foi um dos pesquisadores indicados pelo MMA para avaliar as causas da maior tragédia climática do País, em que morreram quase mil pessoas, em janeiro de 2011, na região serrana do Rio de Janeiro. O levantamento comprovou relação direta entre a ocupação das APPs e o desastre.

“O presente estudo demonstra que se a faixa de 30 metros em cada margem (60 metros no total) considerada Área de Preservação Permanente ao longo dos cursos d´água estivesse livre para a passagem da água, bem como, se as áreas com elevada inclinação e os topos de morros, montes, montanhas e serras estivessem livres da ocupação e intervenções inadequadas, como determina o Código Florestal, os efeitos da chuva teriam sido significativamente menores”, aponta o documento.

Segundo a pesquisa, 92% dos deslizamentos ocorreram em áreas com algum tipo de alteração (construções, agricultura, estradas). Deste total, até 70% estavam em APPs. Os técnicos descobriram que, mesmo em áreas florestadas, quando houve deslizamento, ele pode ter sido influenciado por algum tipo de alteração, como a construção de estradas e desmatamentos na base ou no topo dos morros.

Por causa de tragédias como essa, na tramitação do novo Código Florestal no Senado, pesquisadores sugeriram que a lei tivesse um capítulo específico para zonas urbanas. O texto aprovado pela Câmara, no entanto, não traz nenhuma inovação que aponte para a reversão da situação atual de descontrole das ocupações irregulares das APPs. Ao contrário, legaliza pastagens em encostas e topos de morro, tornando-os ainda mais vulneráveis a deslizamentos.

Proteção de APPs pode modernizar pecuária?

O pesquisador Gerd Sparovek acha que a proteção APPs pode incentivar a modernização da pouco produtiva pecuária brasileira. Dados do IBGE indicam que as fazendas no País tem uma lotação média de menos de uma cabeça por hectare, considerada muito baixa. Sparovek aposta que o cercamento das APPs, com a retirada do gado dessas áreas e a implantação de bebedouros canalizados fora delas, forçará os pecuaristas a criar mais animais em espaços menores. Isso poderia ser viabilizado com tecnologias como a rotação de pastagens, que permite ampliar a eficiência das propriedades com o uso programado e o descanso de áreas previamente subdividas. “Qualquer conduta mais razoável do ponto de vista ambiental fará com que a pecuária de corte extensiva do Brasil tenha que se modernizar. Mais moderna, ela se torna mais produtiva, e assim ocupa menor área para a mesma produção”, conclui o especialista.

O especialista aponta que 80% dos 55 milhões de hectares do passivo em APPs são ocupados por pastagens. Ele avalia que grande parte das APPs na Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica pode ser regenerada pelo simples isolamento, sem a necessidade de plantio de florestas. De acordo com a ideia de Sparovek, reduzir as APPs implicaria um benefício ambiental menor – por causa da área menor em floresta – para os mesmos gastos financeiros (cercamento, retirada do gado), sem ganhos em produtividade. Ao passo que manter as APPs segundo os parâmetros do atual Código Florestal representaria um grande benefício ambiental com ganhos proporcionais em produtividade da propriedade.

FONTE : ISA/EcoAgência – Por Oswaldo Braga de Souza – ISA – http://www.ecoagencia.com.br/?open=noticias&id=VZlSXRlVONVTVFjcjdEeWJFbKVVVB1TP  – O ISA começa a publicar a partir de hoje uma série de reportagens sobre os aspectos mais graves da proposta de revogação do Código Florestal aprovada pela Câmara.

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