A Amazônia na Rio+20

Confira o resumo da conferência promovida hoje (30), por Ennio Candotti, vice-presidente da SBPC, no Encontro em que se debateu a “Carta da Amazônia para a Rio+20”, promovido pelas secretarias de Desenvolvimento Sustentável dos governos da Amazônia.

A Amazônia: a conservação e a pobreza, o desenvolvimento e os cuidados com o ambiente, o conhecimento e a cultura, estão na pauta das discussões da Rio+20. 

Sucessivos governos pautaram suas políticas de desenvolvimento da Amazônia promovendo a exploração dos recursos minerais e dos potenciais hidroelétricos. Mais recentemente, o PAC planeja investimentos de R$ 200 bilhões em portos, estradas, mineração, hidroelétricas, linhões. Trata-se de investimentos de grande porte voltados para criar condições de promover o desenvolvimento social e econômico da região?

 

O Brasil prometeu também nos foros internacionais que reduziria sensivelmente, nos próximos anos, as taxas de desmatamento e incêndios na floresta. Não está claro, no entanto, com quais instrumentos será alcançada a prometida erradicação da pobreza na região, junto com a redução das emissões. 

 

Pouco se fala em investir em C&T. Muito pouco, se queremos saber um pouco mais sobre a biodiversidade e as culturas tradicionais amazônicas e como conservá-las. O que se sabe hoje, conhecimento produzido nos laboratórios da região ou fora deles (mais de 70%), deveria ser multiplicado por cem para dar um sólido suporte às políticas públicas e juras diplomáticas. Por cem deveria ser multiplicado também o número de quadros técnicos e pesquisadores na região.

 

As águas e os microrganismos sustentam a floresta 

Para esclarecer estas breves afirmações, examino alguns exemplos pouco explorados no presente debate sobre a Amazônia, que precede a Rio +20: 

 

1. O novo Código Florestal rebaixou as margens do leito dos rios (área que pertence à União e por ela deve ser protegida) da margem alta definida na cheia, para uma indefinida linha ‘regular’. Reduziu assim a devida proteção das florestas inundadas.

 

Desconheceu as pesquisas científicas que informam que, todos os anos por mais de duzentos dias, os rios inundam na Amazônia uma área de florestas de 500.000 km2 (duas vezes o estado de São Paulo). Área esta estratégica para recarregar os aquíferos e preservar os ciclos climáticos e reprodutivos da floresta. É essencial protegê-la, para conservar a floresta.

 

2. Há imensos aquíferos no subsolo amazônico que se estendem do Atlântico aos Andes, em profundidades de 100 a 1500 m.

 

A dinâmica das águas subterrâneas é determinante para entender o ciclo das águas de superfície e climas da região, além de permitir que seja oferecida água potável para o povo que lá vive.

 

3. A floresta vive e se regenera, em solos pobres, graças à reciclagem de seus descartes: folhas, troncos caídos; os microrganismos e fungos, que com água e luz os transformam em nutrientes. O ciclo é sustentável. Sabe-se, no entanto, que pequenas e vorazes perturbações podem comprometê-lo irreversivelmente.

 

Pouco se conhece da ação destes microorganismos e fungos e contam-se nos dedos os laboratórios (locais e nacionais) dedicados ao seu estudo. Se hoje a floresta é derrubada para substituí-la por soja e gado, significa que os outros aproveitamentos, como por exemplo, produtos naturais e processos microbianos, toxinas e enzimas, têm valor de mercado menor. Inverter esta matriz de valores pouparia a floresta da devastação sem a necessidade do emprego do exército e da polícia.

 

4. Há também as dimensões sociais que devem ser examinadas: 26 milhões de brasileiros vivem nos estados da região. Há mais de 10.000 pequenos povoados nas margens dos rios e na floresta. As políticas públicas convencionais não conseguem pensar, enquadrar ou mesmo classificar estes povoados.

 

Meandros do rio

Para descrever as condições em que sobrevivem os ribeirinhos e florestinos basta lembrar os meandros dos rios, as grandes distâncias, a reduzida velocidade dos transportes, as condições climáticas e sanitárias únicas (onde encontramos doenças tropicais pouco ou nada estudadas), a ausência de uma engenharia de habitações e de portos flutuantes (os rios durante o ano sobem e descem 12 a 15 metros), as comunicações instáveis em atmosfera úmida, os desafios da educação, o abastecimento e a insegurança alimentar, a agricultura e pesca em áreas de várzea, periodicamente alagadas, o acesso à água potável, energia e combustível, sempre escassos quando não inexistentes.

 

Nestas condições a resposta aos desafios não pode ser técnica, mas política. É necessário preservar os pequenos povoados por questões relacionadas com: i) a ampliação dos conhecimentos dos biomas (inventário, microrganismos e interações) e climas (emissões etc.), ii) de conservação e monitoramento  ambiental e, não menos importante, iii) de defesa do território nacional e, finalmente, iv) por questões de direitos humanos, culturais e de cidadania, imperativos éticos e sociais que devem ser respeitados.

 

Cada um destes itens está relacionado com o exame da questão amazônica na política de conservação da Rio+20, com a defesa e a ampliação do conhecimento da biodiversidade e da cultura nos biomas e comunidades amazônicos:

 

i. Para realizar pesquisas em um laboratório tão vasto é preciso contar com estações de apoio, monitorar, colher amostras, navegar os igarapés, entrar e sair da floresta (nada trivial!). Para realizar o projeto de ampliação dos conhecimentos sobre os biomas e culturas deve-se pensar em um programa de educação e C&T em vários níveis de especialização que envolva os próprios ribeirinhos e florestinos.

 

Do que foi publicado até agora, não é isso que propõem as políticas de combate à pobreza e conservação dos ambientes amazônicos nos documentos preparatórios da Rio+20. Limitam-se, por vezes, a propor o combate à pobreza e pedir aos ribeirinhos e indígenas que sejam bons guarda-florestas. A participação ativa deles para enfrentar o desafio de ampliar os conhecimentos existentes sobre os ambientes de floresta úmida não é colocada.

 

ii. A questão da defesa, particularmente em áreas de fronteira, recomenda exame semelhante: é possível pensar um sistema de defesa sem contar, com comunidades presentes ao longo dos rios, educadas, instruídas e equipadas, com boa saúde, conectadas por um adequado sistema de transporte e comunicação?

 

Os indulgentes estoques de carbono

Os documentos que vem sendo elaborados pelos grupos de trabalho governamentais e não governamentais limitam-se a afirmar o valor do princípio de sustentabilidade propondo explorar os serviços ambientais da floresta, sendo o principal o sequestro de carbono.

 

Há curiosamente uma intrigante convergência de equívocos na pauta do sequestro ou renúncias associadas ao carbono:

 

1. Não está claro, segundo os mais recentes estudos, se a floresta amazônica como um todo absorve mais CO2 do que emite gases de efeito estufa, inclusive CO2. O mais provável é que exista um equilíbrio entre emissões e sequestros, com áreas em que uma função supera a outra.

 

2. A troca proposta pelos créditos de carbono: “eu continuo a produzir e emitir CO2 e você – mediante recompensa monetária – promete não queimar a floresta” não é eticamente sustentável uma vez que troca-se uma infração internacionalmente reconhecida (excessos de emissão) com uma promessa de não cometer outra infração (uma vez que o desmatamento na Amazônia é permitido apenas em 20% da área).

 

Perdoar as emissões contumazes e comprometer-se a não destruir a floresta é compromisso duas vezes equivocado: uma porque permite que os poluidores continuem poluindo, outra porque limita a possibilidade de produzir (como nas fábricas dos países centrais) emitindo algum CO2. No limite eu recebo alguma recompensa em dinheiro para não emitir – e também não produzir – sendo portanto obrigado a comprar, com o dinheiro da recompensa, a produção dos poluidores!

 

Entendemos que os mais recentes desdobramentos da troca mitigatória (REDD+) preocupam-se em premiar quem conserva a biodiversidade, o que é louvável, sem necessariamente vincular com a promessa de não queimar. Resta, porém, o fato de que a indulgência comprada pelo produtor – super poluidor – permanece indulgente.

 

É lamentável constatar que a floresta, uma das mais estimadas maravilhas naturais do mundo seja medida e discutida nos foros internacionais, pelo estoque de carbono que ela “sequestrou”. Será que não temos outro parâmetro para se estimar nos mercados do mundo o seu valor? Pergunto: se um dia descobrirmos que ela emite mais gases de efeito estufa do que ‘sequestra’ deveremos comprar créditos de carbono para evitar seu sacrifício aos deuses do aquecimento global?

 

Com isso, o que me parece mais grave, em troca de algumas moedas, desarma-se a discussão sobre o projeto nacional de conhecimento, conservação e exploração sustentável da Amazônia.

 

Abandona-se a discussão sobre a melhor maneira de canalizar os R$ 200 bilhões dos investimentos previstos pelo PAC para promover uma política de conservação, de descentralização do desenvolvimento social, dos investimentos em C&T nos estados da Amazônia.

 

Sem responder a estas perguntas, a troca “carbono emitido” por “promessa de não queimar” se torna emblemática de uma relação de poder “centro – periferia” que atribui aos amazônidas a guarda da biodiversidade e o provimento de energia e minérios para as indústrias do País, destinando aos institutos do centro a pesquisa e o desenvolvimento.

 

Vale então lembrar que o mote dos inconfidentes: “Libertas quae sera tamen” hoje não é mais uma inconfidência, mas o imperativo de um Projeto para a Amazônia que deveria ser inclusivo, generoso e Nacional.

 

* A versão completa está disponível no site do Museu da Amazônia: www.museudaamazonia.org.br. 

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