Turismo marginaliza comunidades litorâneas no Rio Grande do Norte

Desde as últimas décadas do século XX, o turismo vem sendo proposto como uma das formas mais eficazes de alavancar o desenvolvimento sustentável, em países de economia periférica ou em desenvolvimento, por meio da geração de emprego e renda e da melhoria da qualidade de vida. Desde a década de 1960, o Rio Grande do Norte, ao priorizar o turismo de “sol e mar”, vem sofrendo profundas transformações no seu litoral. O processo se aprofunda a partir de 1990, com o interesse internacional por lugares turísticos, particularmente no seu trecho oriental, que corresponde ao Pólo Costa das Dunas. Ao longo dos anos, as políticas adotadas promovem impactos socioespaciais e ambientais dos mais diversos, principalmente sobre as comunidades litorâneas que habitam os 400 km de praias norte-rio-grandenses. Mas, os empreendimentos turísticos e as atividades daí decorrentes não propiciaram empregos nem geração de renda para as populações locais que pudessem configurar uma alteração significativa na oferta de trabalho. A predominância de atividades vinculadas à agricultura e à pesca constitui forte indicativo de que o turismo não tem gerado as vantagens anunciadas pelo discurso oficial.

Esta é a constatação da pesquisa desenvolvida pelo cientista social Antônio Jânio Fernandes, professor do curso de turismo da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, campus de Natal, em tese apresentada ao Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. O trabalho foi orientado pela professora Arlêude Bortolozzi, pesquisadora do Nepam (Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais) da Unicamp e docente do programa de pós-graduação do curso de geografia do IG.

A tese teve como objetivo analisar como as comunidades litorâneas vêm entendendo o desenvolvimento das políticas implantadas que não as fazem protagonista do processo e nem favorecem o surgimento de um modelo de turismo solidário e comunitário. Para o pesquisador, em nenhuma das iniciativas adotadas as populações afetadas foram consultadas de forma a promover uma participação efetivamente democrática e emancipatória, como prescrevem as orientações de uma política que se afirme sustentável. O estudo pretende contribuir para que os segmentos da sociedade civis mais envolvidos com essa realidade promovam espaços de reflexão solidária. A tese defende uma nova ética para as políticas de turismo promovidas no RN de forma a que passem a ser pautadas nas reais necessidades das populações locais.

Fernandes percorreu 33 comunidades das pouco mais de 70 que existem nos 23 municípios visitados, ouvindo as populações, observando, vivenciando situações em uma pesquisa qualitativa. “Queríamos trazer à tona, mais do que a palavra dos teóricos, a voz das comunidades que nunca foram ouvidas. A partir de suas angústias, mostramos a necessidade de um desenvolvimento solidário, resultante de um diálogo coletivo, permanente, processual e não estanque”, diz.

Constatações

Mesmo sendo filho desse litoral, ele se surpreendeu com o número de habitantes em uma região considerada vazia. Diferentemente também do que ouvia, encontrou não apenas pescadores, mas também marisqueiros, criadores de camarão, caranguejeiros que vivem do mangue, rendeiras, labirinteiras que praticam certo tipo de arte manual com linhas, pessoas que se dedicam ao artesanato de palha, de búzio, do cipó de mangue e que usam os recursos do meio ambiente sem danificá-lo, conseguindo sobreviver de forma humilde e pacata.

“A pesquisa mostrou, e as pessoas externam isso, que o turismo tirou a tranquilidade das suas localidades. Mencionam a questão da violência, da droga, da prostituição que em muitas comunidades não existiam e em outras assumiram maiores dimensões”, afirmou. É visível a ausência de políticas públicas. Na grande maioria das 33 comunidades visitadas não existe posto de saúde, as escolas funcionam de forma precária, falta saneamento básico, a eletrificação rural atinge apenas as áreas que o turista frequenta. Embora o autor constate a geração de emprego e renda em decorrência do turismo, as populações autóctones de zona litorânea continuam vivendo da mesma forma que antes do seu incremento, conforme mostram outros estudos. “Tentei aprofundar isso na pesquisa, mostrando que as comunidades litorâneas são formadas caracteristicamente por pescadores, mariqueiros, rendeiras, que continuam com vida precária, com ganhos comprometidos por atravessadores que se encarregam de fazer chegar os produtos ao predominante mercado turístico da capital”, afirma.

Segundo o pesquisador, o contraste se aprofunda mais quando se confrontam o litoral oriental – que vai do município de Baia Formosa, junto ao estado da Paraíba, até a cidade de Touros – e o litoral setentrional – que vai de Tibau até Pedra Grande – que apesar de apresentar um potencial imenso do ponto de vista socioambiental, ocupa posição secundária nas políticas públicas. Essa diferença de tratamento tem contribuído para um desequilíbrio socioambiental, pois 95% dos turistas restringem-se à região metropolitana de Natal, onde se concentram empregos e problemas.

Embora o incremento do turismo tenha levado à criação de diversas áreas de preservação ambiental, manifesta-se um desequilíbrio resultante da falta de associação da qualidade ambiental com desenvolvimento social que, segundo ele, seria contornado com o envolvimento das comunidades nesse processo. Ocorre ainda uma corrida para a construção de flats, de resorts, de hotéis. Em consequência, as populações litorâneas, que sobrevivem do que o mar oferece, passam progressivamente a habitar áreas mais afastadas do litoral. Com isso, as comunidades apartadas das políticas adotadas não se sentem responsáveis por elas, em que pese o crescimento do emprego e da renda. Não ocorrendo uma co-participação na produção do espaço, o capital imobiliário atua de forma agressiva, gerando grandes contrastes entre as paisagens anteriores e presentes, que perdem as características de um espaço das comunidades locais para atender a outros interesses.

O pesquisador reconhece que o planejamento participativo não elimina problemas, mas argumenta que estes ocorrem em proporções menores e os riscos são compartilhados coletivamente. “As políticas públicas têm que garantir maior solidariedade nos deveres e nos riscos. Têm que propor uma reflexão que chame as populações para uma discussão ampla e profunda”.

O trabalho procurou investigar do ponto de vista ético como as políticas públicas interferem no espaço litorâneo pelo fato de o turismo no Nordeste estar voltado especificamente para o litoral. Para Fernandes, o ponto de vista ético, expresso na convenção do meio ambiente, defende a necessidade de planejar hoje com a preocupação com o amanhã. Não se pode pensar apenas no agora, diz. “Vive-se o grande impasse de um planejamento, em qualquer área, voltado para uma visão economicista. É quanto o estado, o município e o agente econômico vão ganhar. Essa ética na minha perspectiva não é sustentável, não é cristã, é um modelo que tende à falência”.

Acrescente-se a esse quadro o viés da cultura nacional que orienta as políticas públicas para iniciativas que trazem visibilidade. A urbanização da praia dá muito mais destaque na mídia local e nacional do que envolver a comunidade no processo de criação do turismo. Ademais, o processo de discussão com a sociedade civil é longo e demorado e sofre entraves decorrentes de interesses de grupos que articulam partes das comunidades para atitudes antagônicas, que impedem a geração de políticas públicas mais adequadas às comunidades.

Outros enfoques

Outra questão colocada pelo autor é a necessidade de criar políticas que envolvam outras localidades do estado além do litoral, pois considera que o Nordeste tem inúmeras áreas que podem se tornar turísticas. A sugestão remete à sustentabilidade ao propor que os conceitos de turismo de massa e de roteiros de massa sejam desvinculados. “Pode-se ter um turismo sem roteiros massificados. À medida que uma política planejada facilite a diversificação dos destinos, criam-se condições de uma localidade suportar com menos impactos o número de turistas que a visitam”, explica.

Fernandes destaca a importância da mídia na discussão crítica dos modelos de desenvolvimento adotados no País. Para ele a academia e a mídia precisam promover um diálogo mais intenso sobre a ocupação do litoral. Exemplifica a omissão da mídia através da cacinicultura – criação de camarão no cativeiro – que causa profundos danos em comunidades litorâneas. A mídia destaca o primeiro lugar da fruticultura irrigada na produção do estado e os segundo e terceiro postos ocupados alternadamente pela cacinicultura e o turismo, considerado o maior gerador de empregos no RN. Entretanto, estudos, relatórios e publicações mostram que grande parte dos empregos gerados restringe o desenvolvimento pessoal, pois envolve serviços de camareiras, recepcionistas, agentes de viagem. Além do que, por causa dos períodos de veraneio, a empregabilidade é sazonal, o que gera rotatividade. O pesquisador acredita que o problema poderia ser contornado com a inclusão do turismo no sertão. Lembra que o RN tem 179 sítios arqueológicos não explorados. Ele defende investimentos pulverizados para evitar a concentração turística em áreas já impactadas pela precariedade do fornecimento de água, de serviços sanitários, de transportes e pela falta de segurança.

Fonte: Ecodebate

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