São Manoel: Barragem amazônica derrota Ibama

O termo “controverso” é inadequado para descrever a hidrelétrica São Manoel. Está localizada apenas a 700 metros da terra indígena Kayabí e já provocou uma série de confrontos com os povos indígenas (ver aqui, aqui, aqui e aqui). Assim como aconteceu com outras barragens, espera-se que a represa de São Manoel afete negativamente peixes e tartarugas que são fontes vitais de alimento para os grupos indígenas Kayabí, Munduruku e Apiacá. Também destruira locais sagrados, bem como sepulturas e locais arqueológicos que são reverenciados pelo grupo (ver aqui), entre muitos outros impactos (ver aqui e aqui).  

São Manoel fica no rio Teles Pires, no Estado de Mato Grosso. É uma das 43 barragens “grandes” (30 MW de capacidade instalada) existentes ou planejadas na bacia do Tapajós (ver aqui). A barragem recebeu sua licença de operação em 05 de setembro de 2017, assinada pela presidente do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que é o órgão federal responsável pelo licenciamento ambiental. Isso permitirá que o reservatório seja enchido. A presidente do IBAMA ignorou o parecer do departamento de licenciamento do orgão, que concluiu que “A ausência dos dados solicitados e o não cumprimento das exigências exaradas ao longo de vários pareceres técnicos emitidos pelo IBAMA, aqui identificados, impede à presente análise visualizar a real magnitude dos impactos ambientais …. Portanto, o presente parecer não apresentará sugestões de condicionantes para licença de operação enquanto houver pendências de informações…” (ver aqui, p. 131).

“Condicionantes são mecanismos legais inventados relativamente recentemente para agilizar (ou seja, enfraquecer) o sistema de licenciamento. Elas se referem aos requisitos especificados nas licenças que devem ser atendidos antes que o próximo passo no processo de licenciamento seja aprovado, ou pelo menos esta foi a maneira que o termo foi usado até o passado recente. Originalmente, condicionantes não eram parte do sistema de licenciamento ambiental do Brasil: desde o advento do sistema em 1986 até 2002, as exigências do IBAMA tinham que ser cumpridas antes da próxima licença na série de três (prévia, instalação e operação) ser concedida. Então, começando com os governos do Partido dos Trabalhadores, a concessão de licenças com listas anexadas de condicionantes rapidamente se tornou o procedimento normal, a fim de permitir a construção da infraestrutura seguir, sem esperar para satisfazer os requisitos para cada passo. As barragens do rio Madeira foram as primeiras a serem concluídas com condicionantes ainda não satisfeitas, mas a notória barragem de Belo Monte, cujo reservatório foi enchido em 2015, levou o uso desta brecha para um novo patamar, e a história mostrou, neste caso, que pouco é feito para cumprir as condicionantes depois que a licença final é concedida (ver aqui, aqui e aqui).

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para São Manoel tem uma lista longa de inadequações. O parecer técnico do departamento de licenciamento do IBAMA, de 133 páginas explicando a recomendação contra a aprovação da licença de operação, é um testamento para esses problemas (ver aqui). O tratamento dos impactos sobre os povos indígenas, que é o impacto mais dramático, é relegado a um Apêndice ao invés de ser incluído como parte do relatório principal. Isto também ocorreu em 2014 no caso da barragem de São Luiz do Tapajós (ver aqui), atualmente “arquivada”. O consórcio de São Manoel essencialmente não cumpriu suas promessas sobre o “componente indígena”, incluindo o calendário para a preparação do documento e, sobretudo, o envolvimento dos grupos indígenas (ver aqui).

As relações com os grupos afetados não foram melhoradas pela matança de Adenilson Kirixi Munduruku em 2012, quando a Polícia Federal invadiu uma aldeia Kayabi (ver aqui, aqui e aqui), nem quando a cachoeira de Sete Quedas, que é o local mais sagrado dos grupos afetados, foi dinamitada em 2013 para abrir caminho para a represa de Teles Pires, 40 km a montante de São Manoel (ver aqui e aqui). O RIMA (uma versão simplificada do EIA para distribuição pública) concluiu que a barragem de São Manoel “é viável do ponto de vista social e ambiental” (RIMA, p. 105).

O EIA contém uma lista de 23 páginas de 337 leis, decretos e portarias que os autores consideraram aplicar à hidrelétrica de São Manoel (EIA, Vol. 1, capítulo 3, p. 81-104). Incrivelmente, a lista não incluiu o decreto mais significativo e relevante: Decreto nº 5.051 de 19 de abril de 2004 (ver aqui), que converte a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em lei brasileira. A Convenção e o Decreto exigem que os povos indígenas “impactados” por um projeto sejam “consultados” e dê seu consentimento livre, prévio e informado ao projeto. Os grupos afetados definitivamente não foram consultados (veja aqui e aqui). O termo “consulta” na Convenção OIT-169 significa que as pessoas têm voz na decisão de construir ou não o projeto em questão (ver aqui e aqui). Isto não deve ser confundido com uma “audiência pública”, onde os participantes podem fazer sugestões (que podem ou não serem aceitas) sobre a mitigação e compensação ou para pequenas alterações no design do projeto, mas não a existência do projeto em si (ver aqui).

O licenciamento e a construção de São Manoel foram temporariamente interrompidos em várias ocasiões por liminares judiciais com base em não ter consultado os povos indígenas (ver aqui e aqui). Estas ordens foram repetidamente revertidas por meio de orgãos do poder executivo procurar juízes selecionados que estão dispostos a aplicar uma “suspensão de segurança” para cancelar a liminar (ver aqui). A “suspensão de segurança” é um dispositivo criado pela ditadura militar de 1964-1985 (lei 4.348, de 26 de junho de 1964) e permite que qualquer juiz reverta uma decisão judicial que cause “grave dano à economia pública”. Isto foi expandido e ampliado desde o fim da ditadura (lei 8.437 de 30 de junho de 1992 e lei 12.016, de 07 de agosto de 2009). Uma vez que barragens são sempre importantes para a economia, ordens para detê-las podem ser facilmente derrubadas independentemente de quantas leis, proteções constitucionais ou acordos internacionais forem violados (ver aqui, aqui, e aqui).

A decisão da presidente do IBAMA para ignorar o parecer da sua equipe técnica faz parte de um padrão infeliz que começou com as barragens do rio Madeira (ver aqui) e foi repetida com Belo Monte (ver aqui, aqui e aqui). A pressão política sobre o Ministro do Meio Ambiente e sobre o IBAMA (que está subordinado a esse Ministério) tem se mostrado um meio eficaz para obter a aprovação de projetos, não importando quão grave sejam os impactos ou quão flagrantes são as irregularidades no licenciamento.

Além disso, desde 2015 o pessoal técnico no departamento de licenciamento do IBAMA vive sob crescente pressão para aprovar projetos de infraestrutura, e para fazê-lo rapidamente (ver aqui, aqui e aqui). Em junho de 2017, o Ministério do Meio Ambiente mudou suas políticas sobre a concessão de bônus de pagamento para a equipe técnica, com base na produtividade. Anteriormente, os funcionários recebiam o bônus baseado no número de pareceres técnicos que eles produziam – uma medida aparentemente destinada a acelerar sua produção, mesmo se as análises fossem menos completas. Agora, os incentivos foram ainda mais inviezados, dando o bônus só para pareceres favoráveis, não para aqueles que recomendam contra a aprovação de uma licença (ver aqui).

O parecer de 25 de agosto de 2017 recomendando a não aprovação de São Manoel até que todas as condicionantes sejam atendidas ilustra uma mudança recente na prática: a equipe técnica já não mais assina os pareceres técnicos, a fim de minimizar o risco de acusação de “má-fé” ou dos funcionários serem responsabilizados pessoalmente por perdas financeiras dos proponentes do projeto. Isto foi ameaçado em várias ocasiões por construtores de infraestrutura e promotores do governo, como nos casos das barragens Santo Antônio, Jirau e Belo Monte (ver aqui e aqui).

São Manoel ilustra ainda outra tendência preocupante. Esta é a crescente influência da China na construção de barragens na Amazônia. Em 2014, a empresa China Three Gorges adquiriu uma participação de 33% de São Manoel (ver aqui). A China Three Gorges estava preparando-se para entrar na licitação para a barragem de São Luiz do Tapajós até que seu EIA foi “arquivado” em abril de 2016. Essa barragem também iria inundar terra indígena. Atualmente, a Zhejiang Electric Power Construction (ZEPC) está negociando uma parte da barragem de Belo Monte (ver aqui e aqui). Claramente, investidores chineses não são intimidados pelos custos de ter a reputação de investir nos projetos hidrelétricos mais infames do Brasil. Os múltiplos impactos da China na Amazônia estão aumentando rapidamente (ver aqui e aqui), e é provável que o investimento em barragens continue (ver aqui).

 

Este texto é traduzido de uma versão em inglês publicada no site da Mongabay, disponível aqui

  

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link

 

FONTE: AMAZÔNIA REAL

http://amazoniareal.com.br/sao-manoel-barragem-amazonica-derrota-ibama/

 

 

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