“Lugar de índio não é na escola”, conta Adriano Karipuna, de Rondônia, sobre o preconceito

O indígena Adriano Karipuna, 31 anos, do Conselho de Saúde de Porto Velho, em Rondônia, participou do VIII Fórum Social Panamazônico (Fospa) e apresentou um projeto de sustentabilidade em implantação na Terra Indígena Karipuna, na região de Jaci-Paraná, no rio Madeira. Em depoimento exclusivo ao antropólogo e jornalista Fábio Zuker, ele contou sobre o preconceito e racismo que sofreu para estudar. “Meus colegas, que nem ao menos colegas eram, apenas estudavam na mesma sala que eu, diziam: “lugar de índio é no mato’’, “tem que andar nu’’, repetiam. Fazendo “uûuûuû” [Adriano imita o som]”.

Agora o jovem militante da causa indígena se prepara para cursar uma universidade. “Sou liderança indígena, indicado pelo meu povo, e milito pela causa indígena. Tenho um grau curricular de palestra, e um pouquinho de conhecimento, em vários âmbitos. Não sou formado, mas pretendo me formar em Direito, que é uma área que eu gosto. Direito para defender o meu povo, com especialização em direito ambiental. Ou Medicina, para unir esse conhecimento com a medicina tradicional do meu povo, que tem muito poder de cura, mas que é de conhecimento secreto”.

Fábio Zuker acompanhou as plenárias do Fospa entre os dias 28 de abril e 1º de maio, em Tarapoto. Ele entrevistou para a agência Amazônia Real personagens que resistem, de baixo, à destruição de seus territórios e modos de vida na Floresta Amazônica.

Depoimento de Adriano Karipuna

Quando eu vim morar na cidade, aos 18 anos, passei por muito preconceito, por muito racismo: “lugar de índio não é na cidade”, “lugar de índio não é na escola”, como é que eu estudava, né? “Lugar de índio é no mato, andar nu”. Olha só o olhar dos caras… E são filhos de pessoas que tem conhecimento, ou seja, a educação não veio de casa. Eu já falava português e a minha língua, mas saí para buscar melhorias. Para mim e para o meu povo.

Além do racismo, outra dificuldade era a de locomoção, de logística, ir para a aldeia, e voltar para a cidade. E as pessoas desconhecem isso. A dificuldade de se manter também na cidade, financeiramente, né? Pois todo mundo precisa de dinheiro para poder se manter, pois na cidade tudo é pago: para você andar de ônibus, tem que pagar, para comer, tem que pagar, para se vestir, tem que pagar. E na aldeia tudo é de graça, pois a natureza dá. Vou até o rio e pego um peixe, porco do mato… e no mercado os preços das coisas são absurdos.

E olha só como eles me consideravam, meus colegas, que nem ao menos colegas eram, apenas estudavam na mesma sala que eu. “Lugar de índio é no mato’’, “tem que andar nu’’, repetiam. Fazendo “uûuûuû” [Adriano imita o som].

“Eles não sabem que no Brasil temos 265 línguas, 305 povos, né?”

Eles não conhecem a história do Brasil. Do país onde eles vivem. Não conhecem a história de seu município, de seu estado. No meu estado somos 15.800 indígenas, 23 povos em Rondônia; são 23 línguas diferentes. E os caras ficam dizendo coisas sem fundamento, e aí vem esse olhar opressor para o indígena.

E ainda, nem toda a imprensa divulga o que é real sobre os povos indígenas. Muitos da imprensa nos massacram [me olha receoso, muito elegante, quase que se desculpando por criticar a imprensa]. Dizem que somos um povo que tem que ser exterminado, que tem que sumir do Brasil, que somos um atrapalho para o desenvolvimento. No sistema capitalista, rola muito dinheiro, eles fazem essa leitura e a maioria da imprensa (tanto meios digitais como de televisão), tem esse olhar.

“E a sociedade brasileira, que são os brancos, como nós falamos, ela acredita, e começa a nos julgar.”

Sou liderança indígena, indicado pelo meu povo, e milito pela causa indígena. Tenho um grau curricular de palestra, e um pouquinho de conhecimento, em vários âmbitos. Não sou formado, mas pretendo me formar em Direito, que é uma área que eu gosto. Direito para defender o meu povo, com especialização em direito ambiental. Ou Medicina, para unir esse conhecimento com a medicina tradicional do meu povo, que tem muito poder de cura, mas que é de conhecimento secreto. Tem muitos indígenas estudando hoje em dia. Engenharia ambiental, agricultura. Medicina ainda é difícil. Tem só duas indígenas da nossa região que estudaram medicina, que foram estudar em Cuba….

Minha aldeia está localizada junto ao rio Jaci-Paraná, e é demarcada. Mas as ameaças são de latifúndios, garimpeiros e madeireiros. Principalmente gado e venda de terra ilegal. Não posso dizer que estejamos combatendo, mas temos coibido isso. E atualmente também teve um empreendimento que teve um grande impacto ambiental, que é a Santo Antônio Energia (no Rio Madeira). À princípio, esse impacto foi indireto, mas acabou atingindo a aldeia porque teve um alagamento pela barragem em 2014, e a gente ficou isolado: ninguém podia ir até a cidade, e ninguém podia ir até a aldeia, já que o nosso trajeto é pelo rio.

“E tem também uma estrada, que não dava para passar pois estava alagada. Ou seja, fomos afetados. Indiretamente, mas fomos.” 

De modo mais amplo, o indígena hoje é muito oprimido no Brasil. Muitos passam por preconceitos, dificuldades e ameaças. Hoje a guerra está no Congresso Nacional. Há vários retrocessos para o indígena no Estado Brasileiro, e principalmente para o meu povo. Um exemplo é o projeto chamado PEC 215, que nós indígenas chamamos de PEC da Morte. E o que diz essa PEC? Ela quer tirar o direito dos povos indígenas de viver na sua terra, em suas aldeias, seu território. Outro projeto de lei do governo brasileiro chama-se Portaria 303, que também garante que o latifúndio tome as nossas terras.

No entanto, meus parentes indígenas do Brasil estão reunidos em Brasília [referência ao acampamento Terra Livre de 2017, considerada por muitos como a maior mobilização indígena a nível nacional] para tratar de várias situações como saúde, meio ambiente, direito à terra, demarcação, educação, reconhecimento como povo de resistência. Houve inclusive confronto entre indígenas e seguranças do Congresso Nacional; bastante divulgado na internet. E isso é muito triste para nós, na condição de indígenas brasileiros.

Por que eu digo que é muito triste? Pois nós somos um povo que protege a Natureza, e não somos reconhecidos por isso. Não recebemos nada por proteger a natureza. Pelo contrário, somos vistos como animais. Que nós temos que ser exterminados. E nós povos indígenas o que estamos fazendo? Buscamos que se tire esse olhar de extermínio, os retrocessos. O pessoal fala de Descobrimento do Brasil, e eu não falo de descobrimento, falo de roubo.

“Nós fomos roubados. Vieram roubar nosso pau-brasil, nosso urucum, e assim sucessivamente.” 

Os primeiros brancos que a gente teve contato foram os seringueiros, o pessoal que veio trabalhar no seringal. Hoje eles são nossos parceiros. Na época, não tinha pecuária de gado, nem soja, né? Nem latifúndio. Nem madeireiro. Nosso inimigo naquela época, em 1912, ou até antes, eram os seringueiros. Por conta da borracha, do látex. Teve muita briga, muitas mortes. Mas hoje estamos próximos. A minha região está muito desmatada, por conta da soja. [Fazemos uma breve pausa para mudar de lugar, por conta do som alto da apresentação de música andina. Quando nos levantamos, apesar do barulho, Adriano me chama a atenção para eu não esquecer a caneta que acabara de deixar cair na grama, e me pergunta, rindo, se eu não tinha ouvido o barulho que fez. Afastamo-nos um pouco, e continuamos a conversa com música ao fundo durante o resto da entrevista]

Nossos rios estão secando mas não sou contra quem planta. Sou contra quem tira as terras dos indígenas, dos pequenos agricultores, tiram o campesino, como se fala aqui em espanhol. E não estão nem aí. Querem acabar com a Natureza, e isso eu sou contra. Por que? Porque isso mata a gente, mata a gente na unha, como o povo fala. Eu como arroz, feijão, que vem da plantação. Mas eu sou contra porque eles não querem saber do povo indígena, do pequeno agricultor, não querem saber de nada, querem destruir, só pensam neles. A minha vinda para o Fórum Social Panamazônico está relacionada à apresentação com um projeto de sustentabilidade no qual estamos trabalhando na aldeia, de proteção da natureza amazônica na minha Terra Indígena Karipuna.

“Para o meu povo, nosso meio de se manter é outro. Pesca, farinha, castanha, açaí. Nossa renda, né?”

A gente vende na cidade. Temos já o comprador certo. Os vendedores do mercado compram tudo, somos fornecedores VIP [fala com um sorriso algo jocoso], pois não temos agrotóxicos. Se levamos vinte sacos de farinha de mandioca, eles compram tudo, e querem mais ainda! Se a gente traz açaí para vender, não dá pra tanta gente que quer. Tudo natural, qualidade boa. E agora temos plano também de produzir banana, café e criação de galinha caipira…

Hoje temos oito grupos que falam a nossa língua. Antes éramos oito mil, mas após a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré que destruiu o nosso território na época da borracha, sobraram apenas quatro pessoas. Hoje somos 29 pessoas que se auto reconhecem como Karipuna. Segundo minha mãe, há milhares de anos éramos um povo só. Mas aí teve conflito interno, por conta de território, de disputa de casamento. Por conta de tanto conflito nesse território, o povo decidiu emigrar, se dividir… mas nós Karipuna ficamos.

Para terminar, queria contar o mito Karipuna da criação dos animais, o mito que meu povo conta. Minha mãe me conta que numa aldeia, há muito tempo atrás, não havia alimentação. O pajé falou que ia dar um jeito pra gente comer. E ele colocou várias pedras, uma atrás da outra; pedras pequenas e grandes. E com o cajado de madeira ele cutucou, e transformou aquilo em porcos, ou em vários animais. Mas sempre tem aquele ambicioso, né? E o pajé falou: vocês podem até matar, mas tem um limite, cada família pode matar um ou dois. Mas teve um desobediente, que queria matar mais. Aí o pajé fez outro ritual, por ele ter desobedecido. Deu uma soprada [Adriano imita o sopro com a boca e a mão fechada], e fez ele virar o Curupira, o dono dos porcos, com os pés para trás.

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Acompanhe a série sobre os personagens do Fospa:

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