Suiá Missú – Xavantes, invasores e o Império da Lei

Uma das maiores operações de aplicação da lei jamais realizada na Amazônia brasileira começou no domingo 9 de dezembro. Nos últimos dias, conseguiu minar resistências locais e retomar para o patrimônio da União cerca de 50 fazendas ocupadas ilegalmente. Trata-se de uma terra indígena invadida, que é homologada pela Presidência da República e garantida por reiteradas decisões judiciais (Primeira Instância, Segunda Instância e o Supremo Tribunal Federal). 

A Justiça determinou a posse, mas faltava o cumprimento da ordem. Em campo, estava estabelecido um conflito territorial e ecológico entre um povo indígena, os xavantes (A’uwê Uptabi, em sua denominação), e a estrutura agrária que avança em busca de novas terras, formada por pequenos produtores rurais, posseiros, grandes fazendeiros, políticos profissionais, e grandes interesses econômicos do agronegócio. Em disputa estão 165 mil hectares de terra, dos quais 110 mil eram de cobertura de floresta amazônica e 20 mil de cerrado. Hoje, segundo a Funai, mais de 60% virou pasto e soja, e um terço é controlado por 22 “casas grandes” que não admitem interferências em seus negócios.

Caetano Veloso, em seu último disco, canta que “O Império da Lei” há de chegar, e em uma analogia podemos dizer que “há de chegar no coração do Mato Grosso, há de chegar lá”. O deslocamento desse império para cumprir a lei ocorre com sua força mais bruta: Forças Armadas, Força Nacional, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, e um aparato burocrático coordenado pela Presidência da República, que envolve, entre 12 órgãos, o Incra e a Funai. E a resistência a ele utiliza métodos amplos: pressões políticas no legislativo, executivo, judiciário, mídia. E também as cruéis: ameaças de morte, de sangue, de guerra, e racismo e intolerância. “A política é a guerra por outros meios”, disse o filósofo Michel Foucault.

Pergunte a algum xavante de Marãiwatséde sobre a recente decisão do STF, em que Joaquim Barbosa, em dezembro, confirmou decisão de Ayres Britto, de outubro, enquanto este era presidente do Supremo, em que suspendia uma liminar que impedia a retirada dos invasores. Ou sobre as manifestações na Rio+20. Ele dirá que é preciso compreender o seu retorno à região em 2004, a homologação de 1998, as denúncias internacionais de sua opressão em 1992, a Eco92 e, sem entrar em sua longa e milenar etnohistória, dos conflitos no nordeste na época da chegada dos europeus e aldeamentos em Goiás, já no século XVIII, ou nos primeiros contatos pacíficos com os colonizadores em 1960, e chegará ao mês de agosto do ano de 1966: data chave para se compreender o que ocorre hoje.

Quem primeiro sentiu força do poder do Estado na região do médio Araguaia não foram os fazendeiros, mas os A’uwê Uptabi. Em 1966, 233 homens e mulheres xavantes embarcaram em aviões da FAB com destino a uma missão católica 450 quilômetros ao Sul no estado do Mato Grosso. O território que ocupavam então, próximo ao recém criado Parque do Xingu (1961), havia sido deixado de fora da proteção indigenista por Jânio Quadros, que excluiu todas as áreas xavantes que constavam nos primeiros projetos apresentado pelos irmãos Villas Bôas, Darcy Ribeiro, Noel Nutels e Eduardo Galvão. A terra era objeto de cobiça de grandes fazendeiros e grileiros paulistas, liderados por Ariosto da Riva, um “colonizador” de São Paulo, e também por políticos matogrossenses. Até então “isolados”, ou tido como “arredios”, os xavantes refutavam relação com a sociedade hostil que os cercava e com o Estado. Restava a troca de violência mútua, com os índios atacando ranchos, e os “brancos” promovendo “expedições punitivas” dizimando aldeias, além de algumas trocas de alimentos e bens materiais eventualmente pacíficas.

Um gerente de Ariosto da Riva, que cuidava da área na época, reclamou que os índios estavam frequentando demasiadamente a sede para pegar facões, machados e farinhas, e estavam dando prejuízo. Com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) decadente, envolto em escândalos de corrupção (viria a ser extinto para dar lugar a Funai no ano seguinte), veio a decisão de “limpar a área”.

A articulação para o desalojamento desta comunidade foi mobilizada no início da Ditadura. Envolveu o exército, a força aérea, o SPI, a Igreja Católica, com o padre Mário Panziera tomando a frente, políticos locais, e o financiamento da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) para o agronegócio. Nas duas semanas seguintes à transferência, cerca de dois terços dos A’uwê Uptabi que haviam sido deslocados de seu território faleceram na missão Salesiana São Marcos.

Sobre os índios caiu uma bomba química conhecida como sarampo. O número de mortos, em torno de 160, não é preciso. Entre eles estava Ru’waê. Um senhor magro, alto, forte, que exercia uma liderança influente sobre seu povo, porém não absoluta – tanto que foi voto vencido e mudou-se contrariado a sua pretensão de resistir. Entre os filhos que deixou estão Paridzané (“Damião”), e Ruwa’wé (“Rufino”).

Os descendentes de Ru’waê nunca desistiram do retorno. Rufino foi o guerreiro, mantinha o grupo unido internamente, enquanto Damião o político que representava a comunidade diante dos brancos. Porém, o mesmo Estado que os havia deslocado, agia para impedir esse retorno. A terra foi para Riva e transferida ao grupo Ometto. Os índios, revoltados com o que acontecia, passaram a ocupar diferentes terras xavante, que conheciam por laços históricos. A fazenda transformou-se em Suiá Missú (referência a dois cursos d’água), o maior latifúndio do Brasil, palco de violência local e objeto de valor no mercado de terras, sendo então comercializada. Passou para as mãos da Liquigás, sucedeu-se para a italiana Agip Petroli, e aí permaneceu ao longo dos anos 1980.

Nesse período, os A’uwê Uptabi seguiram uma extenuante diáspora. Mudaram-se para o território de Sangradouro, depois Parabubue, Areões, e receberam exílio, finalmente, na terra de um grupo xavante com o qual possuem antigos relacionamentos de alianças: o grande chefe Warodi (falecido em 1988), da vizinha terra indígena Pimentel Barbosa, autorizou a construção da aldeia Belém, existente até hoje.

Nos anos 1970 e 1980, muitos territórios xavantes foram demarcados no estado do Mato Grosso – que serviram de refúgio aos de Marãiwatséde. Excluídos de seu território e enfraquecidos em razão da grande mortandade que sofreram, e ao exílio e à diáspora a que estavam submetidos, não conseguiram reunir força suficiente para recuperar a terra. No entanto, em nenhum momento deixaram de se considerar como A’uwê Uptabi de Marãiwatséde, o que chegava a causar conflitos por motivos históricos com os outros xavantes. Mas nada que impedisse uma eventual alianca contra os waradzu, ou “brancos”: Siridiwê, cacique da aldeia Ethenhiritipá, disse que se precisar ir para guerra para ajudar Paridzané a defender Marãiwatséde, seu povo está pronto. Assim como xavantes de todas as terras indígenas têm expressado solidariedade à luta de Paridzané.

Vem então o fim da Ditadura, a Constituição Federal de 1988, e a conferência Eco92, e a história da relação dos xavante com o Estado começa a mudar. É nesse período que ocorre a principal aproximação política com uma organização internacional, que veio a ser fundamental para a história da retomada: a italiana Campagna Nord Sud, que funcionou de 1989 a 1992. Liderada pelo parlamentar verde Alex Langer, a organização fiscalizava a atuação de empresas italianas no mundo. E o caso da Agip em terras xavantes foi exposto, causando grande constrangimento. A mobilização envolveu a ida de Paridzané para a Itália e matérias nos jornais italianos. A visibilidade da conferência internacional foi considerada uma esperança para o líder xavante para atrair atenção ao seu caso. Também para que pudesse ter um novo acesso às instituições do Estado, dessa vez para beneficiá-lo com os direitos adquiridos em 1988. Queria o retorno a Marãiwatsède e a demarcação da terra.

Em 10 de junho de 1992, durante a Eco92, o presidente da Agip Petrolli, Gabrieli Cagliari, declarou que a empresa iria devolver a terra aos xavantes. O sopro de esperança aos xavantes na Cidade Maravilhosa se transformou em um vento forte e turbulento no Mato Grosso: subsidiária brasileira rebelou-se. Renato Grillo, gerente local da fazenda Liquifarm Suia-Missu, discordou das intenções dos patrões italianos, e passou a incentivar as invasões. No dia 16 de junho, escreveu carta ao Ministro da Justiça informado que 250 posseiros haviam invadido a propriedade que estava sendo devolvida aos índios. Mas não poderiam ocupar tudo: mapas indicavam os locais destinados aos pequenos, aos médios e grande parte, pelo menos um terço no primeiro momento, tinha outro destino: o agronegócio. Em 30 de novembro a mesma empresa anunciou um leilão das terras, organizado pela Companhia Brasileira de Leilões, no Castro’s Hotel, em Goiânia, dispondo um cartaz com selo do Bamerindus. Além das terras, também foram comercializadas 14 mil cabeças de gado.

No meio da floresta, em torno no posto de gasolina ilegal que começava a aglomerar habitantes, o “Posto da Mata”, teve início um novo uso do racismo para deslegitimar o direitos dos índios, na iminência do retorno. Racismo semelhante ao perpetrado por Riva, Ometto e os militares em 1966. As fotografias da época mostram uma terra poeirenta (era o início da seca), e os longilíneos caules amazônicos com as copas espessas ao fundo. Uma gravação da Rádio Mundial FM, de 20 de junho de 1992, a partir das 3 da tarde, descreve  o encontro de posseiros e fazendeiros e o movimento de invasão deliberada.

Alguns trechos dos áudios revelam que uma das principais estratégias dos organizadores da invasão era utilizar o racismo e o ódio aos índios como uma ferramenta de união:

Primeiro, Mazinho, um político local:

– E se for colocar índio no seu ambiente natural tem que mandar pra onde tem mata virgem. Como é que vai colocar índio no meio do povo?;

Em seguida, Baú, o então prefeito de São Felix do Araguaia:

– Enquanto a empresa estava intacta nos respeitamos a propriedade. Temos que respeitar a propriedade para ser respeitados;

– O povo da região ficou preocupado com o retorno desses índios;

– Se a população achou por bem que deve tomar conta dessas terras ao invés de dá-las para os índios, nós temos que dar esse respaldo para o povo;

– É o próprio povo que está entrando e demarcando suas terras. Ainda não foi passada a escritura para os índios;

– Já conversamos com o governador, que dará todo o respaldo ao povo;

– Essa ojeriza do nosso povo aos xavantes é muito antiga;

– O xavante é um índio arrogante;

– O que já marcou o lugar primeiro o lugar é dele;

– Não tem a mínima possibilidade do retorno desses xavantes. Estamos canalizando a vontade do povo;

– Nós não queremos índios aqui senão vai desvalorizar toda a região;

– Conversamos com o governador e ele disse que não vai mandar polícia, podem ficar tranquilos;

Filemon Gomes Costa Limoeiro, atual prefeito de São Felix do Araguaia, seguiu o discurso:

– Ou nós ou eles, e preferimos ser nós;

– Hoje (a terra) ia ser jogada nas mãos dos índios;

– Aqueles que estão preocupados com os índios, que tem que assentar, tem um monte de país que não tem índio. Pode levar a metade;

– Na Itália tem índio? Não, não tem. Leva! Leva pra lá! Carrega prá lá! Agora, não vem jogar em nós não. Para atrapalhar uma região;

– Se colocar índio aqui acaba;

– A gente ajuda com caminhão, eu tenho caminhão pra carregar eles pra lá. Aqui não;

– Índio vem pra cá e não vai produzir nada;

– Que deixe essa área aqui pro pessoal que quer trabalhar;

– Xavante é de cerrado, em mata ele não entra, tem medo da onça

– Trazer esses índios vai prejudicar a região toda

Imaginando-se “livres” dos índios, planejavam construir uma “cidade” no Posto da Mata, seguindo um plano bandeirante de Ariosto da Riva. Riva estava vivo ainda na época e, segundo informa uma voz na rádio, estava feliz com a possibilidade da “cidade dos posseiros” e o “progresso”. “Vamos respeitar essa área da cidade porque depois vai dar problema”, ordenava a liderança aos posseiros que chegavam, seguro de si dos padrões urbanísticos pretendidos. Alguns mostravam restrições, perguntando se os índios não iriam voltar, e se voltassem, o que iriam fazer. Mas daí surge outro, mais durão, e diz em tom de quem se garante: “nós já temos uns caboclo bom lá do Bom Jesus já na linha de frente ali na Guanabara. Eu Acho que a gente tem que estar disposto a qualquer coisa. A terra é nossa. Disposto a qualquer coisa.”

Corajosamente, a antropóloga Iara Ferraz, engajada na defesa dos direitos dos índios e que assina o laudo de identificação do território para a Funai, afirma nessa mesma gravação, com voz firme, que a área está em processo de ser reconhecida. “É uma irresponsabilidade muito grande do prefeito e de todos que incentivaram a ocupação sabendo que está em curso um processo de reconhecimento de terra indígena. É uma irresponsabilidade. É um crime”, dizia ela aos posseiros.

A Funai em 1991 e 1992 mobilizou-se para demarcar Marãiwatséde, e os primeiros passos são dados nas gestões dos sertanistas Sidney Possuelo e, na sequência, Cláudio Romero, este identificado ao longo de sua vida com o povo xavante. Ao mesmo tempo, o poder político na região arma as estratégias de resistência do território que tentam conquistar. A antropóloga Iara Ferraz apresentou o laudo com agilidade, a terra é reconhecida pela Funai em 1992 e demarcada em 1995.

Em 1998 é homologada a Terra Indígena Marãiwatséde, registrada em cartório no ano seguinte, sem que nenhum xavante consiga entrar na área, ocupada e vigiada por mais invasores. À medida que a pretensão indígena ganhava cada vez mais respaldo do governo federal, a ocupação ilegal era intensificada. Na década de 2000, ano após ano, Marãiwatséde tem sido a terra indígena mais desmatada na Amazônia.

Liderados por Paridzané, os A’uwê Uptabi deixaram o exílio em Pimentel Barbosa e partiram, em 2004, com guerreiros, velhos, mulheres e crianças, para retomar a área. O conflito foi estabelecido com posseiros em um front marcado por um córrego, ao longo de seis meses. Três crianças faleceram nesse período. Em agosto desse ano, tendo em mãos uma decisão favorável, ainda em caráter liminar, da ministra do STF Ellen Gracie, os A’uwê Uptabi entram na primeira fazenda, Caru, e fizeram ocupações nas proximidades. Em 7 anos agindo quase que por conta própria, apenas com apoio da Funai local e pouco assistidos pela força do Estado, conseguiram retomar menos de 10% do território.

Em 2010, o Tribunal Regional Federal confirmou decisão de primeira instância, favorável aos xavantes, em ação que discutia a demarcação. O Poder Judiciário reconheceu a legalidade do procedimento administrativo de demarcação da terra indígena e, consequentemente, determinou a retirada dos ocupantes não-indígenas e a recuperação das áreas degradadas da TI Marãiwatsédé. A decisão garantiu a posse plena dos indígenas na totalidade da terra indígena – e não apenas na área da aldeia onde já estavam.

No entanto, o TRF não determinou o cumprimento da ordem. Conforme esclarece uma nota técnica da Funai: “Após receber em seu gabinete três representantes de um grupo de aproximadamente 300 mulheres do movimento, e de dois parlamentares da bancada do Estado do Mato Grosso, todos que se opõem à desintrusão, o Desembargador Federal concedeu tal ordem de suspensão. Embasado no seu entendimento de que “na atual situação de exaltação dos ânimos entre os envolvidos, a melhor solução é manter o status quo”. Um eterno “status quo” da ocupação ilegal era pedido.

No final de 2012, a questão chegou ao Supremo. Houve a definição da Corte, pelo presidente Ayres Britto e em seguida reconfirmada pelo novo, Joaquim Barbosa, determinando que fosse cumprida a sentença, confirmada pelo tribunal regional, em que o “status quo” deveria ter o sentido jurídico de manutenção da ordem jurídica, e não da ordem dos fatos opostos ao Direito, isto é, a invasão.

Nesse mesmo ano, Paridzané voltou ao Rio de Janeiro, agora para a Rio+20, e circulou tanto pelo espaço oficial da ONU, quanto pela Cúpula dos Povos. Era auxiliado pela Operação Amazônica, uma organização de apoio aos povos indígenas. Encontrou personalidades, políticos, apareceu novamente na mídia, e expos o drama e a angústia do exílio, da pressão e das ameaças. Em um dos discursos, mencionou algumas vezes a palavra morte. Terminando por dizer que queria morrer em Marãiwatséde.

O segundo semestre foi intenso. O governo preparou um plano de desintrusão, reunindo 12 órgãos e coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência. “O Estado, no caso governo federal, atuando para dar suporte para essa decisão da Justiça. É isso o que está acontecendo. Da parte do governo, da presidenta, essa é uma decisão irreversível”, afirmou Paulo Maldos, coordenador geral do grupo de trabalho em (Clique AQUI para ler).

Os mesmos atores políticos que deliberaram a invasão em 1992 reapareceram. O prefeito Filemon, os posseiros e produtores reunidos em uma associação, grandes fazendeiros, políticos, deputados, senadores. Ao contrário de advogados locais, a Associação dos Produtores Rurais de Suiá Missú (Aprosum), contratou o irmão da influente senadora Kátia Abreu, presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) – Luis Alfredo Ferezin de Abreu. A principal estratégia de defesa passou a ser a vitimização dos posseiros – uma tentativa de apresentar um “status quo” de inocência, e glorificar uma “reforma agrária” feita “pelo povo”. Em oposição às “vítimas pobres”, vinha o ataque aos índios, caracterizado por mensagens racistas e tentativas de desumanizar e desindigenizar a comunidade.

Nas redes sociais, jovens de São Felix do Araguaia passaram a expor um sentimento muito parecido com aquele exaltado por seus pais em 1992. No entanto, camuflados pela impessoalidade das redes sociais, se mostraram mais agressivos: “VAMOS FUDE COM ESSES FILHOS DA PUTA”, escreveu um no Facebook. “Eu entro com armas e munição”, comentou outro. A foto em discussão apresentava o dizer: “Vão mesmo deixar 500 índios preguiçosos que só dorme e come as nossas custas tomar a área de 7 mil trabalhadores?” O pequeno jornal Bbnews anunciou uma chamada: “Em pé de guerra: ONGs querem transformar o Araguaia em país indígena”.

A bandeira nacional foi queimada, e a violência passou a ser caracterizada pelo afrontamento, nas últimas semanas, às forças de segurança, ao “império da lei”. Uma rivalidade entre os irmãos Paridzané e Ruwa’wé foi acirrada. Ruwa’wé foi expulso da aldeia e a Funai foi inábil em tentar promover a paz para proteger a comunidade de pressões externas. Os invasores puseram em prática a “estratégia de Cortez”, e com dinheiro e promessa para alguns índios, trouxeram Ruwa’wé para o seu lado. De forma amarga, ele passou a se dizer contrário à terra pela qual lutou sua vida inteira. O governo do estado oferecia, mesmo sendo contrário à Constituição, uma outra terra, uma “permuta”. Ruwa’wé aceitou a oferta, uma sedutora área alagada que é o Parque Estadual do Araguaia. Um parque de conservação em troca de uma terra indígena é uma transação plausível na retórica de quem vê “terra” como “fazenda”, e “índio” como “espécie”, sendo ainda uma “espécie” possível de ser “transladada” para áreas sem qualquer sentido cultural com a sua existência.

Ameaças de morte quase foram às vias de fato com o bispo dom Pedro Casaldáliga e com o líder xavante Damião Paridzané – além também a pequenos produtores que queria retirar seus pertences e mudarem-se para um assentamento e ao prefeito de Alto Boa Vista, Wanderley Perin. Na tribuna do Senado, com um congresso bastante movimentado pelo lobby ruralista, o senador Cidinho Campos (PR), sugeriu a desumanização dos índios: “Hoje podemos dizer que, primeiramente, existem os direitos dos índios e, depois, vêm os direitos dos humanos”. A Comissão Pastoral da Terra considerou “a manifestação carregada de preconceito e ódio”. Em carta, afirmam: “Tudo isso vem trazendo um clima irrespirável e consequências graves não somente para o povo Xavante, mas para toda a sociedade. Provocam-se e acirram-se, a cada dia, ódios e chantagens vingativas e violentas.”

Na imprensa local e em sites falava-se em guerra, sangue, resistência e uma postura desafiadora e intimidadora. Realizaram bloqueios, que espalharam-se, em agrosolidariedade e agroaltruísmo, pelo estado. Uma equipe do jornal Folha de S. Paulo foi abordada em um destes bloqueios no interior do Mato Grosso, onde escutou: “gente de ONG a gente quebra”. O governo federal enviou um efetivo grande, e articulou toda a força do Estado, isolando a região, controlando a circulação. Aos poucos, a resistência foi minando. “Diarréia e dengue minam o ânimo dos moradores do Posto da Mata” anunciou um site local.

Primeiro, caíram os grandes fazendeiros. Em seguida, os médios. No último balanço da Funai, de 18 de dezembro, “41 fazendas vistoriadas desde o início da desintrusão até o fim do dia de ontem (17) e, destas, 18 estavam desocupadas.”

Com relação aos pequenos posseiros, a Funai, representando todo o grupo do governo, informa: “Até o momento, o Incra já cadastrou 183 famílias, 80 das quais se adequam ao perfil. As famílias reassentadas receberão um Contrato de Concessão de Uso da Terra, que se constitui no primeiro passo para o acesso à terra e aos créditos iniciais. Também serão integradas ao Cadastro Único do governo federal e, por meio dele, poderão acessar programas sociais como Bolsa Família, Brasil Sorridente, Brasil Carinhoso, entre outros. A partir de terça-feira (18), será realizada a mudança das primeiras cinco famílias que se cadastraram no programa de reforma agrária. Elas serão levadas ao assentamento Santa Rita, localizado em Ribeirão Cascalheira (MT).”

A primeira vez que eu estive em Marãiwatséde, no início de 2006, eu não imaginei que estava na Amazônia. Não por alguma imagem de cerrado, localizado próximo dali e presente originalmente em 10% da área. Mas pelo grande vazio. Era difícil encontrar a “mata alta”, a “mata perigosa”, a “mata fechada”, como Paridzané traduziu para mim a palavra marãiwatséde. Eu poderia estar no interior de São Paulo ou de Minas Gerais, as áreas hoje ocupadas por grandes empreendimentos do agronegócio, mas que foi toda dominada pelos extintos caiapós do sul no século XVIII e XIX (Hoje se imagina que o povo Panará, que vive no Mato Grosso, pode ser descendente de um grupo desses caiapó).

Havia uma angústia no ar. Um sentimento entre os índios de que a retomada estava prestes a acontecer, pois eles estavam dentro da terra e Paridzané descrevia as festas que já haviam realizado ali com grande alegria. Mas 17 crianças haviam morrido naquele ano – e quase todos os xavantes, em luto por perder um familiar, tinham os longos cabelos raspados. “Brígida”, como fui apresentado à mãe de Paridzané, tinha então mais de 90 anos, e contou palavras que havia dito a seu filho: “O espírito do seu pai está lá em Marãiwatséde. Quero morrer dentro da terra de Marãiwatséde.” Ela praticamente não falava, nem levanta de sua cadeira de rodas. Mesmo assim havia conseguido retornar, acompanhada do filho. Na época, Paridzané me disse: “Ela veio junto com a gente, resistiu, lutou, ficou acampada para entrar ao lado dos guerreiros. Era o sonho dela voltar. Desde que chegou, nunca quis ir para o hospital. Não quer mais sair.”

Não bastava a vontade dos índios, ou a vontade dos fazendeiros, para por fim as angústias, seja dos índios, seja dos posseiros inseguros da posse. Era preciso alguma força maior, um “império da lei” para dirimir os conflitos. E, principalmente, para reparar uma injustiça histórica. A operação de desintrusão ora em curso, representa uma nova relação do poder do Estado com os xavantes, e segundo classifica Paridzané em carta divulgada pelo Ministério Público Federal, ela é “ótima”.

“Agora a desintrusão já começou. Os anciões esperaram muito tempo para tirar os não-índios da terra. Sofreram muito. A vida inteira sofrendo, esperando tirar os fazendeiros grandes.

A lei federal, a constituição, as autoridades estão do nosso lado. As autoridades da Força Nacional, exército, polícia federal estão do nosso lado porque a presidente Dilma sabe que a terra é dos xavantes de Marãiwatsédé.

Agradecemos as autoridades e todas as entidades que nos apoiam nessa luta da verdade contra a mentira. A desintrusão é ótima.”

“Esse conflito é uma história de como o latifúndio opera”

Paulo Maldos é secretário Nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência e está na linha de frente no diálogo com os movimentos sociais, principalmente aqueles relacionados a conflitos no campo. No início de 2012, ele acompanhou a desocupação da região do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), e foi alvejado por uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar.

Pouco antes, no final de 2011, ao visitar um tekohá guarani-kaiowa no Mato Grosso do Sul, chegou a ser ameaçado por fazendeiros. Agora, Maldos é o coordenador-geral do grupo de trabalho criado pelo governo federal para promover a desintrusão da terra indígena Marãiwatséde. Ele esteve na área e presenciou cenas de violência, racismo, discriminação. Em Brasília, durante o processo, percebeu como funciona a Casa Grande brasileira, cujo lobby em torno de Marãiwatséde serviu para mostrar de que maneira, historicamente, formam-se as grandes propriedades rurais: “É uma história de como o latifúndio opera. Ele vai para as cabeças dos três Poderes, pressionando. A mídia é um grande instrumento deles para contar a sua versão das coisas. E, em campo, utilizam a violência.”

Como porta-voz das ações do governo na desintrusão, Maldos faz um balanço de uma das mais importantes operações de retomadas de um território indígena em toda a história do País: apesar de homologada, os índios ocupavam menos de 10% da área, totalmente tomada por fazendas, controlada principalmente por 22 grandes fazendeiros. Para se ter uma ideia, na TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, os principais ocupantes não-índios eram 7 arrozeiros em uma área cerca de 1% da reserva. Só na primeira semana, já foram retomados mais de 20 mil hectares em Maraiwatséde. “O Estado se organizar para prestar um serviço em defesa do direito originário de uma comunidade indígena é muito bonito”, disse Maldos na entrevista exclusiva abaixo.

CartaCapitalA retomada da terra indígena Marãiwatséde já foi vencida? Oclima no local já é de aceitação?

Paulo Maldos – É um processo que ruma para o seu final. Não digo que vai ser amanhã, mas ruma para um desenlace favorável ao reconhecimentos dos direitos indígenas e, particularmente, daqueles da comunidade de Marãiwatséde, que tem uma história de retirada forçada, exílio e volta à terra. O processo de demarcação correu concomitante a uma invasão deliberada, planejada pelos políticos da região.

CartaCapital – Uma invasão deliberada por políticos? Qual é a grande questão por trás?

Paulo Maldos A grande questão era evitar que a terra voltasse a ser dos legítimos donos e ficasse para o mercado. Esse é o pano de fundo dessa disputa: se é um território reconhecido como indígena, de propriedade da União, com usufruto exclusivo da comunidade; ou se é uma terra disponibilizada para o mercado de terras. Essa é a grande queda-de-braço. Só isso explica a virulência dos operadores políticos, econômicos e sociais, que se jogam contra esse processo. No caso concreto, os grandes invasores não admitem a terra fora do mercado. Eles consideram que possuem 7 mil, 9 mil hectares, e raciocinam pelo preço do mercado de terras no Mato Grosso, como se tivessem 50, 60 milhões de reais de patrimônio. Essa ocupação foi fruto de uma invasão deliberada, pura e simples, com a colocação de cercas e de pistoleiros. Eles acham que isso pode se chamar propriedade.

CartaCapitalNa terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, ocorreu um fenômeno parecido com a resistência dos plantadores de arroz?

Paulo Maldos – Essa é a mesma coisa que o Paulo Cesar Quartiero (o maior fazendeiro risicultor da área) fazia na Raposa/Serra do Sol. Quando houve a definição da terra indígena, o Quartiero tinha duas mil estacas de cercas prontas para serem colocadas para ampliar a sua chamada “propriedade”. Eles acham que são parcelas de território que devem fazer parte do mercado de terras. Se acham prejudicados por esses territórios serem reconhecidos como patrimônio da União de usufruto exclusivo das comunidades indígenas.

CC – E Marãiwatséde agora, como está?

PM – O que eu percebo é que a situação terá desenlace favorável dessa terra como patrimônio da União e de usufruto exclusivo da comunidade xavante de Marãiwatséde. É um reconhecimento feito 20 anos atrás, pela Funai, e homologado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1998. Foi muito judicializado, mas em todas as instâncias foi reconhecido o direito indígena. Todas. Por fim, reconhecimento pela última decisão do ministro presidente do STF, Ayres Britto, e confirmada pelo presidente  atual, Joaquim Barbosa. Estas decisões consolidam o quadro jurídico. Operamos a partir dele, de apoio aos oficiais de Justiça para terminar esse processo de retirada dos ocupantes, chamado desintrusão.

Todos os ocupantes foram considerados de má-fé pela Justiça. Do primeiro ao último, eles sabiam que se tratava de terra indígena. Houve um encontro, nos anos 90, em que os políticos incentivaram publicamente os pequenos, os médios e os grandes a entrar. Inclusive definindo territorialmente onde ficaria cada um. Foi uma invasão deliberada. Por um lado, com base no preconceito contra os índios, dizendo que eles não poderiam desenvolver a região. Por outro, na cobiça pela terra e no mercado de terras.

Demos apoio aos oficiais de Justiça para as notificações, e apenas no último dia houve tensão, incentivada, de novo, pelos políticos que estavam lá atrás incentivando a invasão do território em 1992. Foram eles que, de novo, apareceram no Posto da Mata, no último momento da notificação. Tentaram trazer tensão ao processo, mas ali praticamente todo o território já estava notificado. Todos estavam amplamente informados, e o juiz considerou que a notificação estava feita. Vencendo essa etapa, chegamos no final do final, que é a retirada dos invasores.

CC – Como está ocorrendo esse processo de desintrusão e a retirada dos invasores?

MD – Está sendo um processo pacífico, muito paciente. Tudo está georreferenciado, todas as posses. Estamos indo uma por uma para verificar in loco se tem gente ou não, dando os meios para aqueles que não puderam sair ainda, para saírem, retirarem o gado, os pertences. Estamos encontrando muita área abandonada. Muitos sítios que são apenas para tomar conta de gado, tem o cercado para o pasto e uma casinha de madeira e palha, onde vai o empregado de vez em quando. A gente encontrou uma região abandonada, com muito pouca infraestrutura para produção. Aqui e ali apenas algum plantio de soja, algum pouco gado, pois muita gente já retirou. É quase terminal o que a gente encontra lá.

CC –  E a tensão, onde tem acontecido?

PM – O foco de maior tensão desse processo se dá no Posto da Mata, que é um conjunto de casas, não chega talvez a 200, que surgiu em torno de um posto de gasolina, ilegal também. Ali se constituiu um núcleo que causa tensão ao processo. Outro é o núcleo que tem os 22 grandes invasores, que operam na política. Esses acionam prefeitos da região, políticos, a bancada do Mato Grosso, o governador. Agem para pressionar o governo federal, o Supremo Tribunal Federal, junto ao presidente da Câmara dos Deputados, ao Senado, e ministros aqui em Brasília. É uma de história de como o latifúndio opera. Ele vai para as cabeças dos três poderes, estabelecendo a tensão, contando a sua versão das coisas. Exigindo respeito à propriedade, mas contando muita mentira. E a mídia é um grande instrumento deles de contar a sua versão das coisas: que viveriam sete mil pessoas lá, que haveriam duas mil cabeças de gado, que tem título de propriedade. A capacidade de manipulação é fantástica. É um absurdo o quanto de mentiras existe nesse processo. A capacidade de faltar com a verdade veiculando uma situação absolutamente fantasiosa sobre o que é Marãiwatséde, sobre a história de Marãiwatséde e a população não índia. Inverdades a respeito da proporção das coisas: está para nascer o milésimo xavante de Marãiwatséde por esses dias. Mas através da mídia falavam em 150 índios, e sete mil não-indígenas. A gente conseguiu encontrar, durante todo esse processo, notificando gente na estrada, nos botecos, 455 pessoas. Esse número é bem distante dos sete mil alardeados. Então tem uma operação que eles fazem, no nível dos três poderes e na mídia, com números totalmente irreais.

Apesar desse modus operandis, o que houve de concreto foi o reconhecimento pela Justiça do direito indígena àquele território. Terra da União e de uso exclusivo dessa comunidade. O Estado, no caso governo federal, atuando para dar suporte para essa decisão da Justiça. É isso o que está acontecendo. Da parte do governo, da presidenta, essa é uma decisão irreversível.

CC – Qual o papel do governo e da Justiça na decisão da desintrusão de Marãiwatséde?

PM – Os dois estão bem firmes nesse reconhecimento. Ontem teve uma cerimônia no Itamaraty, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e dois dos premiados foram os bispos eméritos dom Tomaz Balduíno, de Goiás Velho, e dom Pedro Casaldáliga, lá de São Felix do Araguaia – este que é um conhecido defensor dos direitos indígenas, particularmente dos xavantes de Marãiwatséde.  Ele chegou na região nos anos 1960 e viu o processo de formação da fazenda Suiá Missú em cima do território xavante. Viu todas as práticas de destruição ambiental, de violência contra os posseiros na região. É testemunha de tudo isso. Por ter sido sempre defensor dos direitos indígenas foi, nos últimos meses, ameaçado de morte.

CC –Como ocorreram e como foram detectadas as ameaças de morte a dom Pedro Casaldáliga?

PM – Primeiro, foi a inteligência do estado do Mato Grosso, do próprio governo do Estado, através da Polícia Civil. O delegado me ligou para dizer que tinham detectado um plano de sequestro de dom Pedro por parte dos ocupantes “brancos” de Marãiwatséde. Depois, quando já estávamos indo para a região para montar a base, solicitamos aos órgãos de inteligência que fossem num circuito no Posto da Mata para ver o que estava acontecendo e realmente se identificou que havia dois planos. Um para assassinar o cacique Damião, da aldeia de Marãiwatséde, que a polícia civil também já tinha nos alertado. E outro para sequestrar dom Pedro Casaldáliga. Acreditavam que sequestrando dom Pedro Casaldáliga poderiam forçar o governo a voltar atrás. A gente colocou a Polícia Federal e outros para investigar isso. Duas semanas atrás, entre os fazendeiros corria a “decisão” – não sei que nome dar a isso – de que dom Pedro não passava daquela semana. Foi a gota d’água. O sinal vermelho, o máximo de alarme. A Polícia Federal, já na região, fez um acordo com ele de sair temporariamente de lá, para preservar a vida, enquanto levamos esse processo de desintrusão. Vamos esperar que essas questões se acalmem. Inclusive deixar claro para todo mundo nesse processo que dom Pedro Casaldáliga é uma figura histórica. Foi ele quem denunciou a formação criminosa da fazenda Suiá-Missú. A rigor, ele não tem nada a ver com a demarcação, homologação, desintrusão. Marãiwatséde é uma decisão que passou ao nível do Estado. Foi a Justiça, o Tribunal Regional Federal, o Supremo Tribunal Federal, foi a Funai, Ministério da Justiça, Presidência da República do Brasil, do governo anterior, Fernando Henrique Cardoso, que tomaram as decisões, implementaram. A terra está registrada como da União. A dom Pedro Casaldáliga não pode ser imputado nenhum tipo de responsabilidade em um processo. Ele, com todo o mérito e coragem, apenas denunciou a formação do o maior latifúndio brasileiro a época. Um latifúndio criminoso, que usava de práticas criminosas contra posseiros, contra indígenas, contra a população local para se impor. Foi ele quem denunciou quando passou a morar lá, como padre ainda. Como podem misturar as coisas? Querem agredi-lo por algo que ele não tem responsabilidade. Depois o Estado, provocado, tomou medidas para sanear e reconhecer os direitos indígenas sobre esse território. O Estado se responsabilizou. Dom Pedro é uma figura muito querida e importante para o Brasil e a Catalunha. Não se pode responsabiliza-lo por absolutamente nada, apenas ajudou a reconhecer os direitos indígenas.

CC –  E o período posterior à desintrusão? Haverá uma fiscalização para garantir que os invasores não voltem mais? E a presença do Estado na região, com tantas ameaças de morte?

PM – Os pequenos que querem retirar os pertences também são ameaçados. Dizem que se pegarem o caminhão deles, com as coisas deles, vão incendiar, que vão ser mortos. O que se pretende é que esse processo de desintrusão chegue a termo. A colocação dos pequenos em assentamentos de reforma agrária na região, que são destinados para isso. E também existe a possibilidade de se criar um assentamento pré-urbano, em Alto Boavista, para os que saírem do Posto da Mata, pequenos comerciantes e moradores. Ao sair, pretendemos, primeiro, regularizar essa situação de presença do Estado nesses assentamentos, e depois dar suporte para a comunidade de Marãiwatséde para a gestão de seu território.

CC –  Como vai ser dado esse suporte aos xavante?

PM – A presidenta Dilma lançou no Dia Mundial do Meio Ambiente, nesse ano, a PNGAT, Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas. É um conjunto de instrumentos que permite à comunidade indígena fazer a gestão do seu próprio território. Reflorestamento de áreas degradadas, produção de acordo com seus valores culturais, planejar a ocupação do território e uso dos bens ambientais que dispõe. Ter condições de se auto-sustentar. Vai ser uma ferramenta muito importante para a comunidade se reapropriar do seu território, recuperá-lo ambientalmente, porque foi extremamente degradado. Os invasores não-índios possuem R$ 158 milhões em multas acumuladas por crimes ambientais. Nunca pagaram um real. Foi uma área extremamente devastada, com queimadas sucessivas para formação de pastagem. E essa comunidade xavante está forçada a ter o tamanho que tem, isto é, mil pessoas morando na mesma aldeia, quando geralmente se fraccionam em aldeias bem menores. Agora, vão poder se multiplicar em pequenas aldeias para ocupar o território. Isso fora os xavantes de Marãiwatséde que estão espalhados na região, anciãos e famílias, ainda dispersos pela expulsão original de 1966. A Funai tem o projeto de recontatá-los. É um processo lento.

Ao mesmo tempo, é preciso ter uma política pública mais forte na região. Por meio do Incra, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e outros ministérios, para que o Estado esteja presente lá. Não é só ali que o Estado é bastante frágil, quase inexistente. É na região inteira. Em Confresa, por exemplo, que é um município vizinho, há poucos anos foi identificado cerca de mil trabalhadores em situação análoga a de trabalho escravo. É uma região de ocupação da época da Ditadura, desenfreada, com apoio da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), com práticas criminosas, devastação, expulsão de posseiros que estavam há décadas, feita na base do terrorismo, de queimada de casas, assassinato. A região toda tem uma história da violência, uma cultura da violência e da impunidade, da lei do mais forte e da ausência do Estado. A Amazônia toda é meio assim. Desde a ocupação desenfreada, com apoio governamental na época, criminosa, da Ditadura.

CC –  E com relação outras terras indígenas que vivem situação semelhante, e são impactadas por projetos do governo, como as terras indígenas Apyterewa e Cachoeira Seca do Iriri, na região de Belo Monte, que também estão invadidas? O governo vai tomar o mesmo posicionamento?

PM – A desintrusão de Apyterewa está quase terminada. Houve recentemente o sorteio dos lotes dos ocupantes não índios que irão para um assentamento, com uma participação grande das pessoas que estão lá para buscar seus lotes. Mas Cachoeira Seca ainda falta. A Constituição reconheceu os direitos dos povos indígenas sobre seus territórios. Houve, de lá para cá, uma fase de demarcação que se avançou bastante. Em regiões, digamos, com menos complicações. Durante o governo Fernando Henrique houve um processo bastante intenso de demarcação, com a participação das comunidades indígenas e todo o procedimento legal. Mas em regiões com ocupação rarefeita não-indígena. Isso facilitou os processos de demarcação e homologação. Em Raposa Serra do Sol se viu o início da complicação para obstruir o reconhecimento desses direitos. Há os invasores de má-fé, que não possuem título. Mas tem complicadores, como aqueles em que há ocupantes cujo avô recebeu um título de Vargas, no Mato Grosso do Sul. Nessas regiões o processo fica muito mais complicado, e as resistências se armam. Para essa minoria que exibe títulos de boa-fé, é preciso ver uma solução dar para esses títulos que o Estado cedeu. É necessário continuar todo o processo que a Constituição manda de demarcar e homologar todas as terras indígenas do País. Vai ser um processo sempre cheio de tensões, jurídicas e políticas.

CC – O governo informa que 22 grandes fazendeiros, donos de 31 fazendas, são responsáveis por grande parte dos 158 milhões de reais de crime e destruição. Além de estarem por trás de tantas ameaças de mortes. Tudo isso vai ficar impune após a desintrusão?

PM – A Polícia Federal abriu uma série de inquéritos. Isso está em curso. Há vários policiais federais na região e um delegado que abriu inquérito para todo tipo de crime que foi perpetrado. Há várias linhas de inquéritos. Ameaças de morte, agressões, agressões ao meio ambiente. Está tudo em processo. Tudo que foi praticado de crime está em inquérito. A informação vem sendo processada, agregada e organizada.

CC – Com relação ao racismo contra os índios: há algum plano ou política de combate ao racismo na região?

PM – Estamos tão envolvidos com o dia-a-dia que não conseguimos pensar a médio e longo prazo. Mas é uma preocupação nossa. A Secretaria de Direitos Humanos acompanha esse processo, e foi ela quem premiou dom Pedro Casaldáliga, de maneira simbólica, por causa de toda essa situação. Assim como no Mato Grosso do Sul, é um desafio combater o racismo e o preconceito antiindígena. É uma questão que a gente vai ter que lidar. A região foi muito mobilizada com base no racismo nos últimos meses. Fortalecendo o racismo pré-existente, desde os últimos 20 anos ou mais. É um desafio, não só lá como em outras partes do Brasil, particularmente no Mato Grosso do Sul. Não há nada definido ainda. A gente acha que empoderando a comunidade e trabalhando com as novas gerações isso pode ser reduzido.

Como hoje a política pública está muito territorializada,  existem mecanismos. Tanto a Funai, como a educação, e a saúde são constituídas com base nos territórios étnicos, e é possível desencadear processos de fortalecimento da comunidade para combater o racismo em bases territoriais. E isso envolve a saúde também. Por exemplo: semana passada teve um xavante que se acidentou na comunidade de Marãiwatséde, se feriu gravemente e foi retirado pela Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) da aldeia para o hospital em Água Boa. Quando a ambulância passou pelo bloqueio no Posto da Mata, tiveram que esconder o menino dentro do carro. Foram abordados e ameaçados. Por sorte não viram que o menino estava no carro. Se o carro voltasse, eles iriam queimá-lo e quem estivesse dentro poderia não sobreviver. Depois que passaram o bloqueio e chegaram no hospital, o médico se recusou a atender porque era um índio. Não atender uma pessoa porque é índio é uma coisa do século 19, mas está presente lá. Este tipo de racismo e preconceito é furioso. Racismo disseminado e manipulado, instrumentalizado por esses grandes invasores que historicamente tem interesses econômicos ali. São eles quem manipulam esse sentimento, colocam essa população contra os indígenas. E usam expedientes criminosos mesmo.

CC – Onde estão e quem são os criminosos?

PM – A gente identificou no Posto da Mata criminosos, literalmente. Os maiores agitadores ali são ex-presidiários. Com processos de sequestro, assalto a banco, assalto a mão armada, recém saídos da cadeia em Cuiabá. São os mais agressivos no Posto da Mata. Por exemplo: quando estávamos fazendo a notificação, e houve uma tensão no final da notificação, foi o prefeito de São Félix do Araguaia, chamado Filemon, que foi lá e ficou fazendo agitação e jogando a população contra os oficiais de Justiça e contra a Forca Nacional e a Polícia Federal. Filemon é o mesmo que está na origem da invasão, nas gravações de 1992 incentivando a invasão. O mesmo personagem volta 20 anos depois incentivando a população contra a notificação. E quem é que ele incentivou e acabou virando um carro da Força Nacional, quase matou o oficial que estava dentro do carro? Dos sete que viraram a caminhonete, três foram identificados: um recém saído da cadeia por sequestro, outro por assalto a banco, outro por roubo com mão armada. Eles operam em todos os níveis. Por um lado, sobre tribunais, deputados, senadores, ministros. Por outro lado, na mídia. E inclusive com criminosos foragidos da justiça – no Posto da Mata tem muitos foragidos da Justiça.

CC – Essa rede criminosa está concentrada no Posto da Mata?

PM – O Posto da Mata funciona como ponto de ataque não só para a área indígena. Tem ali a fazenda Bordolândia, que é uma área que foi destinada a reforma agrária. Ela tem uma reserva legal toda cheia de gado, invadida. A fazenda é vizinha a Marãiwatséde. A Polícia Federal foi lá fazer a desintrusão desse gado e se deparou com os que jogam gado lá dentro. Ao verificar, confirmou que moram em Posto da Mata. É um centro que exporta ilegalidade. Seja na área indígena, seja na área de preservação ambiental. O que eles não admitem nunca é o Estado, lei, regra, pagar imposto. Tudo isso não é bem visto lá.

CC – E qual o sentimento final do processo de desintrusão?

PM – Está sendo um processo pioneiro, instigante e estimulante. Foi criada uma coordenação com mais de 12 órgãos do governo para poder levar esse processo para frente. Atores que entraram nesse processo que é inusitado e um avanço enorme para o estado brasileiro. Setores das Forças Armadas, Ministério da Defesa, vários órgãos fazendo um planejamento estratégico juntos. Temos um lugar de reunião no Ministério da Defesa. Colocamos uma antena lá na base em Alto Boa Vista, onde  constituímos um coletivo do governo duas vezes por semana, um grupo daqui e outro de lá, para ir monitorando o planejamento estratégico que a gente fez. Trocando informações, se articulando, colocando recursos materiais juntos, helicópteros, carros, recursos financeiros, estrutura, gente, e inteligência e energia. Um processo muito bonito e único em termos de governo. O Estado se voltando a prestar serviços para uma comunidade. Quando eu vejo uma reunião com 12 órgãos públicos, e lá do outro lado, na teleconferência, Polícia Federal, Força Nacional, os órgãos todos, trocando informações para viabilizar a notificação e depois viabilizar a desintrusão. É fantástico, é um avanço imenso o Estado se empenhar para cuidar da questão indígena e colocar seus melhores recursos em defesa do direito e do patrimônio público, uma terra da União, mas de usufruto exclusivo dos índios. O Estado se organizar para prestar serviço em defesa desse direito originário de uma comunidade indígena é muito bonito

Por Felipe Milanez

FONTE  :   Carta Capital

VER A ÍNTEGRA EM : http://www.cartacapital.com.br/sociedade/esse-conflito-e-uma-historia-de-como-o-latifundio-opera/    e 

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/xavantes-invasores-e-o-imperio-da-lei/

 * A equipe do ECOAMAZÔNIA esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião deste ‘site”.   

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *